Opinião

Ação afirmativa eleitoral de cômputo em dobro dos votos e cenário desafiador

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29 de setembro de 2022, 18h29

Mulheres e negros permanecem sub-representados na política institucional do Brasil, a despeito de nos últimos anos medidas diversas terem sido instauradas com o escopo de conferir maior diversidade às Casas Legislativas do país [1].

Ainda em 1995 foi editada a Lei nº 9.100 que previa nas eleições municipais do ano seguinte, uma cota mínima de 20% para candidaturas femininas. Dois anos depois, foi promulgada a Lei nº 9.504 (também conhecida como "Lei das Eleições"), elevando o percentual anterior para 30%, e prevendo pela primeira vez essa reserva mínima em eleições nacionais.

No que concerne à população negra, essas ações estatais de incentivo e inclusão no ambiente político são relativamente recentes: no ano de 2017 foi publicada a lei 13.488, que alterou a Lei das Eleições e passou a prever que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nos anos eleitorais, promoverá propaganda institucional, em rádio e televisão, destinada a incentivar a participação da comunidade negra na política (assim como das mulheres e dos jovens). Em 2020, o plenário do TSE [2] estabeleceu que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário), do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deve respeitar proporcionalmente a quantidade de candidatos negros apresentados pelo partido na disputa eleitoral.

Fato é que, no segundo semestre de 2021, uma nova ação afirmativa eleitoral foi implementada contemplando mulheres e pessoas negras. Todavia, seria esta capaz de finalmente reverter o déficit representativo dessas minorias na política brasileira? Para melhor responder esse questionamento, vale observar alguns aspectos de tal medida de discriminação positiva.

Instituída pela Emenda Constitucional (EC) nº 111/21, a nova ação afirmativa eleitoral atribui um peso diferente aos votos destinados a negros e mulheres nas eleições que ocorrerem de 2022 a 2030. De modo mais detalhado, a referida ação prevê que os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros serão computados em dobro fins de distribuição do Fundo Partidário e do Fefc. Em outras palavras, essa medida figura como um verdadeiro estímulo de caráter financeiro para as siglas partidárias, de modo que quanto mais votos receberem as candidatas mulheres e os candidatos negros de um determinado partido, maior será a fatia distribuída de verba pública para este partido [3].

Por conseguinte, essa correlação de "mais votos maior acesso ao dinheiro público" funciona como premissa da qual a ação afirmativa se estrutura, mas não apenas isso, também instiga as lideranças partidárias a adotarem uma nova postura, na medida em que incluir candidaturas femininas e candidaturas negras competitivas redundarão no benefício de um volume maior de recursos nos próximos anos. E é justamente nesse aspecto que reside o grande diferencial da ação compensatória de cômputo em dobro, pois para além de se preencher um percentual mínimo de candidaturas e de se distribuir mais equanimemente os recursos (panorama engendrado por outras ações afirmativas), se faz interessante, a partir de então, tornar estas candidaturas efetivamente capazes de angariar votos.

Voltando-se especificamente a regra de cômputo em dobro dos votos, dois pontos merecem ser destacados. O primeiro é que a contagem em dobro de votos será empregada unicamente para a distribuição de recursos públicos, logo, candidatos negros e candidatas mulheres não terão seus votos duplicados para que assim se elejam. O segundo ponto diz respeito à impossibilidade se aplicar mais de uma vez a contagem em dobro dos votos, a teor do que preconiza o artigo 2º, parágrafo único da Emenda nº 111 [4]. Tal limitação afeta diretamente as mulheres negras, pois não obstante a ação afirmativa em questão tenha como público alvo negros e mulheres, as candidaturas negras do sexo feminino terão seus votos contados em dobro uma única vez.

Com efeito, a restrição estabelecida no dispositivo citado acima parece desconsiderar o contexto de "dupla opressão [5]" pelo qual mulheres negras suportam ao longo de suas vidas, e que obviamente se projeta no ambiente político. Entende-se, em vista disso, que o racismo presente na sociedade brasileira coloca as mulheres em patamares distintos, o que torna, no caso das mulheres negras, o acesso aos espaços de poder ainda mais dificultoso. Sob essa perspectiva, a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas na política pode ser evidenciada através de dados disponibilizados pelo TSE, como por exemplo, a quantidade de mulheres afrodescendentes eleitas para as Casas Legislativas nas últimas eleições gerais: de 164 deputadas distritais e estaduais eleitas, 51 são mulheres negras; das 77 deputadas federais eleitas, somente três são negras; e das sete senadoras eleitas neste pleito, apenas uma se declarou parda, e nenhuma preta. Dessa forma, impossibilitar que o cômputo em dobro seja efetuado mais de uma vez é não compreender que o recorte racial se faz fundamental em uma medida que também se volta para o combate à desigualdade de gênero.

Malgrado a medida de cômputo em dobro esteja limitada portanto à uma única aplicação, o que, como exposto, pode reverberar no contexto das mulheres negras, observa-se, que tal ação afirmativa no geral dispõe de particularidades capazes de contribuir significativamente com a promoção de maior paridade de gênero e raça na política, principalmente no que concerne ao fortalecimento e a valorização de candidaturas de mulheres e negros. Além disso, diferentemente das outras políticas compensatórias instituídas, a ação afirmativa de "peso em dobro" se revela como um verdadeiro benefício, logo, a atuação dos dirigentes partidários em prol de conferir maior competitividade às candidaturas femininas e candidaturas negras não é interessante apenas para a democratização das disputas eleitorais, mas inclusive para os interesses próprios desses agentes políticos, que podem ter a benesse de receber mais recursos públicos.

Seu primeiro teste será o pleito eleitoral de 2022 e, como de praxe, enfrentará estruturas discriminatórias que se conservam ao longo de séculos. Contudo ainda que se sucedam reações contrárias à sua implementação e à sua efetiva aplicação, seja por meio de condutas fraudulentas ou por algum outro meio, a ideia não é que a mesma seja suprimida mas sim aprimorada.


[1] ZIGONI, Carmela; VELECI, Nailah. Perfil do poder nas Eleições 2018: importantes conquistas, poucas mudanças. Instituto de Estudos Socioeconômicos. 2018. Disponível em: https://www.inesc.org.br/perfil-do-poder-nas-eleicoes-2018-importantes-conquistas-poucas-mudancas/. Acesso em: 10 maio 2022.

[2]BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta nº 0600306-47. Relator: ministro Luís Roberto Barroso. Brasília, 25 ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2021.

[3] O Fundo Partidário e o FEFC, "alvos" da nova ação afirmativa, têm seus recursos repartidos de diferentes formas. O Fundo Partidário, regulado pela lei 9.096, tem 5% do total de seus recursos dividido igualmente entre todos os partidos, e o restante é distribuído aos partidos na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados. Já o valores do FEFC são repassados conforme cálculo previsto no artigo 16-D da Lei das Eleições (nº 9.504), isto é,  2% é dividido entre todos os partidos com registro no TSE; 35% é dividido entre os partidos que tenham ao menos um representante na Câmara dos Deputados, na proporção do percentual de votos por eles obtidos na última eleição geral para a Câmara dos deputados;  48% é distribuído entre os partidos na proporção de suas bancadas na Câmara; e 15% é dividido entre os partidos na proporção de suas bancadas no Senado. Nota-se desse modo que 95% do Fundo Partidário e 35% do FEFC serão diretamente impactados pela medida de cômputo em dobro.

[4] BRASIL. Emenda Constitucional nº 111, de 28 de dezembro de 2021. Artigo 2º, parágrafo único. A contagem em dobro de votos a que se refere o caput somente se aplica uma única vez. Brasília. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/emenda-constitucional-n-111-348247850

[5] Consoante aponta Grada Kilomba, em Memórias da Plantação, mulheres negras não são oprimidas apenas por homens — brancos e negros — mas também pelo racismo, tanto de mulheres brancas quanto de homens brancos. KILOMBA, Grada. Memórias da plantação — Episódios de racismo cotidiano. Grada Kilomba; tradução Jess Oliveira. 1º edição. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

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