Opinião

Prova testemunhal em prestação de contas aplicável ao devido processo legal

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28 de setembro de 2022, 17h06

Institucionalizou-se, na Justiça Eleitoral, o repúdio pela produção de prova oral na etapa de checagem e contabilização das contas de campanha. Para o Tribunal Superior Eleitoral, com repique nas instâncias ordinárias, a comprovação da regularidade das despesas nos processos de prestação de contas não se compatibiliza com a prova testemunhal. Ainda segundo acentuado pela Corte, a eventual produção de prova testemunhal não é capaz de elidir, tampouco substituir, "a demonstração, por meio de documentos, das despesas efetuadas".

As menções acima transcritas, a primeira advinda da PC nº 238-59/DF (DJE 15/06/2018) e a outra desdobrada da PC nº 272-68/DF (DJE 12/03/2018), não são convincentes. Com a devida vênia dos que possam concluir de modo diverso, não é possível endossar tais magistérios. A rigor, inexistem razões aceitáveis para sustentar tal orientação pretoriana. Os seus fundamentos não resistem a uma análise mais circunstanciada porquanto lastreados em premissas no mínimo equivocadas, capazes de frustrar o exercício de um meio lícito de prova.

Com efeito, é da experiência comum que na análise de contas de campanha eleitoral predomine o exame técnico de documentos. Entretanto, ao contrário do afirmado pelos acórdãos antes referidos e seus sucessivos [1], havendo necessidade de ser produzida, a prova testemunhal é compatível à espécie. Embora não seja da sua essência, quando postulada, a mesma deve ser no mínimo avaliada. Ao inadmiti-la de plano, pura e simplesmente impedindo, por exemplo, a oitiva do profissional responsável pela contabilidade, de algum fornecedor ou prestador de serviço, reduz-se o processo de contas a uma espécie de protocolo reles, o que não condiz à sua importância no plano normativo, especialmente em vista de seus consectários.

Constitucionalmente falando, a interpretação conferida à ampla defesa nesta etapa do processo eleitoral deve ser mais e melhor prestigiada. Neste sentido, consoante salientado pela ministra Rosa Weber em excerto de voto na ADI nº 6.524/DF [2],

"nenhuma técnica de interpretação constitucional ostenta posição de ascendência sobre as demais. Inexiste uma relação de superioridade e subordinação entre métodos exegéticos distintos. A abordagem correta do fenômeno da hermenêutica pressupõe a disposição do intérprete em buscar soluções adequadas, que prestigiem a efetividade máxima das disposições constitucionais."

Pela doutrina, em obra imprescindível, Jorge CASTAGNET e Horácio BARLUENGA (1986, p. 26) [3] advertem que a lei processual pode tornar-se letra morta sem uma dinâmica jurisdicional que a interprete e crie cotidianamente novos horizontes.

De rigor, a cláusula constante do inciso LV do artigo 5º da CF/88 assegura aos litigantes, seja em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o direito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Este enunciado, a toda evidência, corporifica uma garantia processual que foi disponibilizada às partes. O constituinte, ao positivá-la, concebeu uma liberdade para a produção de prova que o Poder Judiciário não pode furtar-se confirmar. Dentro dessa perspectiva, indo direto ao ponto, se a prova deve ser compreendida na sua função persuasiva, "A ampla defesa", conforme observado pelo professor Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO (2015, p. 235), "reclama para aquele que postula um direito, ou se defende de uma acusação, o direito de usar, nesse intento, dos meios que estiverem ao seu alcance. (…). O contraditório é, no fundo, um dos meios de efetivar a ampla defesa" [4].

No que se refere ao seu andamento, não se ignora  ninguém ignora  que o rito das prestações de contas impõe-se de modo mais célere em relação aos candidatos eleitos e suplentes imediatos. Contudo, a oitiva de testemunhas não acarreta morosidade e alarga o direito de defesa do prestante. Neste diapasão, havendo fundamento fático-jurídico demonstrando imprescindibilidade ou dano iminente (determinação de devolução de valores ao Tesouro Nacional, impossibilidade de produção de prova documental, propriedade de um determinado bem cedido à campanha), é direito legítimo do candidato fazer prova ou contraprova testemunhal daquilo que alega. Todavia, a Especializada não vem comportando, em regra, dilação probatória.

Com isso, inúmeras vezes sem proceder no discernimento entre uma situação que é relevante e de outra que mostra irrelevante, portanto misturando alhos com bugalhos, decisões judiciais invocam a decantada celeridade do processo eleitoral para a negativa de um direito elementar que é o da produção de prova no âmbito da movimentação financeira. Porém, no curso do processo, cabe ao julgador rechaçar somente aquela prova que for desnecessária ou protelatória, cumprindo-lhe verificar a pertinência daquela requerida pela parte visando à solução da controvérsia estabelecida (CPC, artigo 370). "Em tema de direito probatório incumbe ao magistrado, no interesse do andamento do processo, velar para que sejam produzidas todas as provas indispensáveis à instrução do feito, indeferindo aquelas que sejam desnecessárias (artigo 130, CPC) [5], operação que conduz a um juízo de valor quanto à pertinência das provas requeridas com a matéria de direito deduzida no processo", explanou, com notório acerto, o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira [6] por ocasião do Recurso Especial n° 47.890/SP julgado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça cujo acórdão constou à edição de 23/09/1996 do DJ.

Relativamente à peculiar sistemática do processo de contas na Justiça Eleitoral [7], à míngua de disciplina diversa vetando a produção da prova oral, é de se ter presente alguns entendimentos refutando o modelo restritivo que predomina.

O primeiro está em que ninguém será obrigado a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, consoante diz a CF/88 (artigo 5º, LIV). Por força disso, para inviabilizar a prova por testemunhos, seria necessário que a legislação eleitoral vedasse tal hipótese, o que não é o caso.

Segundo, que o artigo 369 do CPC, expressando o genuíno desejo do legislador de dilatar o texto da codificação, assegura que "as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, (…), para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz" [8]. Nesta toada, a própria Exposição de Motivos do Projeto que o precedeu relacionou como objetivo do diploma "resolver problemas. Deixar de ver o processo como teoria descomprometida de sua natureza fundamental de método de resolução de conflitos, por meio do qual se realizam valores constitucionais".

Terceiro: o diploma processual civil em vigor manteve incólume a redação do CPC de 1973 (artigo 400) quando reafirmou que "A prova testemunhal é sempre admissível, não dispondo a lei de modo diverso" (artigo 442).

Quarto: a Resolução nº 23.478/16 do TSE [9], ao estabelecer as diretrizes gerais para a aplicação do CPC/15 no âmbito da Justiça Eleitoral, não repeliu a incidência do citado artigo 442. Pelo contrário. Valoriza-o a ponto do seu artigo 22 mencionar a implantação da "oitiva de testemunhas (…) por meio de videoconferência".

Quinto: havendo declaração particular escrita e assinada acerca da ciência de um determinado fato mais complexo da campanha eleitoral (CPC, artigo 408, parágrafo único), este, na maioria das vezes, somente resta provado pela prova testemunhal. Indeferido tal direito, o prejuízo do prestante em função, por exemplo, do extravio de um cheque, recibo ou talonário, estará fadado à irreversibilidade.

Sexto: processo, mesmo em sede de Prestação de Contas na Justiça Eleitoral, é instrumento para a efetivação de direitos (CF/88, artigo 5º, incisos II, LIV e LV).

Em verdade, o que há é uma cultura dominante na jurisprudência em torno da prova documental, mas que está a merecer reinterpretação de modo a viabilizar eficazmente "a solução integral do mérito" (CPC, artigo 4º) de processos que envolvem doações financeiras, prestadores de serviços e instituições bancárias, estas últimas com serviços crescentemente virtuais. Ou seja: instrumentalizar soluções novas para problemas novos valorizando o devido processo legal (CF/88, artigo 5º, LIV). Por outro lado, insista-se, a normatização de regência não veiculou nenhum conteúdo de censura à produção da prova testemunhal para esta etapa que antecede a diplomação. Daí que relegá-la a uma categoria de meio morto de prova implica em violação ao direito de defesa por força de questionável criação pretoriana. Na prática, o TSE vem derrogando o CPC nesta seara.

A restrição inconstitucional que vem sendo aplicada avilta os princípios elementares do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Com isso, na dinâmica dos processos, esclarecimentos ou justificativas aptas ao atendimento de diligências sugeridas pelas próprias áreas técnicas dos órgãos jurisdicionais da Especializada deixam de ser apresentados. E não é preciso detalhar que a erronia advinda desse critério é responsável por um número considerável (e desnecessário) de rejeições de prestações de contas. Dito de outra forma: a jurisprudência dominante frustra outro princípio medular que é o da economia processual.

O raciocínio de que prestação de contas e prova oral são incompatíveis na perspectiva do Direito Eleitoral, além de resultar em ofensa às cláusulas constitucionais adrede referidas, na prática, obsta o exercício de um ato legítimo pelo prestante. Destarte, no plano da realidade, é inolvidável que a inquirição de uma ou mais testemunhas pode, por exemplo, aclarar a ausência de um determinado documento ou divergência apurada a partir de extratos eletrônicos do fornecedor de algum material de campanha e do beneficiário dos cheques compensados, transferências e outras.

A propósito do relevo da forma na ciência processual, permanecem irretocáveis as ponderações expendidas pelo já mencionado ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira em obra monumental de sua autoria (1990, p. 42):

"Direito processual é direito formal. É que as formas correspondem a uma necessidade de ordem, de certeza, de eficiência prática e a sua regular observância representa uma garantia de regular o leal desenvolvimento do processo e garantia dos direitos das partes. Os menos argutos, especialmente os profanos na ciência do direito, insurgem-se contra o formalismo, a que atribuem o sacrifício e o sufocamento do direito.
Realmente, há que se reprovar o formalismo, que atribua à forma preponderância sobre o conteúdo e olvide que ela é meio e não fim. Mas não se pode deixar de reconhecer que o formalismo é uma necessidade, porquanto representa uma garantia para todos que são interessados no processo, e que a ausência de formas daria lugar a inconvenientes muito mais graves e gerais. Certamente, o formalismo acompanha a evolução dos homens, das sociedades e os seus costumes no tempo. E se é o resultado de experiência tradicional e de muitíssimos séculos, o que o legislador e o jurista têm a fazer não será senão adaptá-lo às necessidades e aos costumes do tempo.
(…)".

O que não se deve prestigiar é a idolatria da forma, que é perniciosa, recordando-se sempre que o processo não é mais que um instrumento, que as formas não têm um fim em si e que todas elas estão postas a serviço de um ideal, a justiça [10].

Sintetizando: a concepção do "indeferimento pelo indeferimento" naqueles casos em que se faz necessário ir mais fundo na apuração de fatos e provas, demonstra intransigência capaz de lacerar o devido processo legal prestigiado pelo inciso LIV do artigo 5ºda CF/88. Trata-se de um posicionamento que acaba por estabelecer retrocesso ao sistema jurídico na medida em que impede o candidato de melhor elucidar eventuais inconsistências. A jurisprudência não pode permanecer avessa às crescentes complexidades advindas das campanhas eleitorais. Deve renovar-se, abrindo novas clareiras na etapa contábil do processo eleitoral em estrita sintonia à concreção dos objetivos perseguidos pela prestação de contas estatuída pela Lei nº 9.504/97.


[1] Edcl AI nº 0601122-30/MS, j. 11/02/2021, DJE 03/03/2021; AI nº 0601122-30/MS, j. 12/11/2020, DJE 19/11/2020; AI nº 0600028-08/BA, j. 29/10/2019, DJE 11/02/2020.

[2] DJE 06/04/2021  ATA Nº 54/2021. DJE nº 62, divulgado em 05/04/2021.

[3] CASTAGNET, Jorge E. BARLUENGA, Horácio D. Las llamadas Medidas Cautelares en el Código Procesal Civil y Comercial de la Nación. En Práctica Procesal Civil y Comercial Nº 01  Medidas Cautelares. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1986.

[4] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

[5] O comentário do autor se refere ao CPC/73 (atualmente o artigo 370 do CPC/15).

[6] No seu Código de Processo Civil Anotado, o eminente processualista (1939-2013), integrante do Tribunal Superior Eleitoral na condição de titular entre 03/04/2001 e 02/04/2003, analisou que "a publicização do processo e a socialização do direito implicam, cada vez mais, a busca da verdade real" (1993, p. 83).

[7] Tendo em vista que a terminologia adotada pela norma de regência recaiu em torno da regularidade das contas, o mérito do exame das mesmas se circunscreve a quatro possibilidades, três resultantes de ação e uma por omissão: APROVAÇÃO, quando estiverem regulares; APROVAÇÃO COM RESSALVAS, quando verificadas falhas que não lhes comprometam a regularidade; DESAPROVAÇÃO, quando constatadas falhas que comprometam a sua regularidade; e NÃO PRESTAÇÃO de contas.

[8] Os meios legais de prova no Direito Processual Civil brasileiro são os seguintes: ata notarial (CPC, artigo 384), depoimento pessoal (artigos 385/388), confissão (artigos 389/395), exibição de documento ou coisa (artigos 396/404), prova documental (artigos 405/441), testemunhal (artigos 442/463), pericial (artigos 464/480) e inspeção judicial (artigos 481/484).

[9] DJE, 15/06/2016, pp. 56/58.

[10] TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Prazos e Nulidades em Processo Civil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1990.

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