Opinião

Influências das organizações religiosas no processo eleitoral

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26 de setembro de 2022, 17h04

Ao contrário do que previu uma parte relevante dos teóricos das ciências humanas, o processo de secularização das sociedades contemporâneas não levou à total substituição das explicações de mundo fornecidas pelas religiões por visões racionais e profanas. Em verdade, houve um aumento da influência religiosa na sociedade. Indícios dessa nova tendência seriam o surgimento de novas formas de crenças, o aumento da popularidade do papado e o crescimento do número de evangélicos. Esse movimento pode ser tomado como uma explicação para o aumento da influência das religiões na política e no Direito.

Outra perspectiva relevante é aquela desenvolvida por Roberto Dutra e Karine Pessôa [1], para os quais ocorreu uma moralização religiosa da política pela dificuldade de os partidos políticos desenvolverem programas para a condução de políticas econômicas e sociais como um todo. A falta de empolgação pelos programas partidários tem levado os atores eleitorais a lançarem mão de novos métodos para mobilizar as pessoas, o que inclui a criação de pânicos pela ameaça a valores considerados irrenunciáveis pela comunidade. Se antes os candidatos evitavam questões polêmicas, passou-se a ter uma tomada de posição alinhada à moral e à ética cristã, em especial em assuntos como o aborto e a sexualidade.

Nota-se ainda um maior empenho das organizações religiosas para eleger pessoas que representem os seus interesses nas instâncias formais de poder. A edição de leis e o desenvolvimento de políticas públicas contrárias aos interesses cristãos nos últimos anos criaram uma preocupação com a família e com a moral do país e um movimento coeso em defesa dos seus valores.

Seja por um motivo ou por outro, o processo eleitoral passou a receber maior influxo de ideais religiosos, de modo que no pleito de 2018 viu-se a ampla utilização de discursos moralizantes associados ao sagrado e o crescimento do apoio explícito de autoridades religiosas a determinados candidatos.

Visto isto, examinam-se quais limites essas influências das religiões encontram no ordenamento jurídico.

Como se sabe, as normas estabelecidas pelo Direito Eleitoral têm como objetivo cuidar da normalidade e da legitimidade do pleito, zelando pela igualdade da disputa e impedindo que fontes de poder social interfiram na vontade do cidadão de forma ilegítima.

Inicialmente, nota-se que a lei deixa claro que os recursos materiais de entidades religiosas não podem ser utilizados em favor de determinado candidato.

O artigo 24 da Lei nº 9.504/97 veda a candidato ou partido receber direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, de entidades religiosas. Essa proibição é reforçada pelo entendimento do STF no sentido de as pessoas jurídicas não poderem contribuir para as campanhas eleitorais (ADI nº 4.650).

Há ainda a proibição de propaganda nos bens de uso comum, o que inclui os templos (artigo 37, §4º). Nota-se que a mera presença de candidato em procissão e cultos não gera ilegalidade, devendo haver atos de campanha e promoção de cunho eleitoral, ainda que sem o pedido de votos (TRE-SP, RE nº 78.279, 14/3/2017; e RE nº 173.917 23/2/2017). Não obstante, são suficientes para configurar o ilícito: 1. O uso de broches ou bottons (TRE-PR, RE nº 26.695, 27/10/2016); 2. A distribuição de material de propaganda eleitoral no interior de templo (TSE, AI nº 781.963, 3/2/2017) e; 3. A presença de bandeiras, dos políticos, de populares e das cores do partido no culto religioso, transformando-o em ato partidário (RE nº 18.814, 3/4/2017).

Sobre o tema em debate, assume grande relevância a sistemática de coibição do abuso de poder político, econômico e dos meios de comunicação. Quanto à prática desses atos por meio da religião, transcreve-se a seguinte decisão:

"A utilização do discurso religioso como elemento propulsor de candidaturas, infundindo a orientação política adotada por líderes religiosos – personagens centrais carismáticos que exercem fascinação e imprimem confiança em seus seguidores -, a tutelar a escolha política dos fiéis, induzindo o voto não somente pela consciência pública, mas, primordialmente, pelo temor reverencial, não se coaduna com a própria laicidade que informa o Estado Brasileiro" (RO nº 537.003, 27/9/2018).

Constou no acórdão ainda que a realização de suposto evento religioso de grandes proporções, mas com caráter nitidamente eleitoral, com pedido expresso de votos, distribuição de panfletos e material de campanha, etc., configura abuso do poder econômico.

O TSE possui jurisprudência no sentido de que aos beneficiários desses atos que não o praticaram não pode ser cominada a inelegibilidade [2]. Não obstante, aqueles que o presenciarem sem qualquer protesto podem sofrer a penalidade (TSE, RO nº 537.003, 27/9/2018; RO nº 265.308, 5/4/2017).

Especificamente quanto ao abuso do poder político, cita-se a AIJE na qual se apurou a utilização de imóvel público para realizar evento religioso em que foram colocadas placas e fotografias de pré-candidatos. Na oportunidade, entendeu-se que a incidência dos incisos I e IV do artigo 73 pode se dar mesmo antes do pedido de registro de candidatura (TSE, Rp nº 66.522, 1/10/2014).

Também já se entendeu pela ilegalidade da expedição de decretos de permissão de uso de terrenos públicos em favor de Igreja no período final da campanha, data em que os pastores divulgaram nota de apoio aos candidatos ligados ao prefeito. (TSE, REspe nº 135.474, 4/2/2020)

Como exemplo de abuso do uso dos meios de comunicação social, menciona-se o caso em que um pastor evangélico conduziu programa de rádio retransmitido no Facebook enaltecendo as qualidades pessoais de candidato, realçando a sua ligação com uma igreja evangélica e efetuando pedido expresso de votos (TRE-RJ, AIJE nº 060887106, 18/11/2019).

Consigna-se que há corrente doutrinária e jurisprudencial que sustenta a existência da figura autônoma do "abuso do poder religioso", quando há pedido de votos utilizando elementos religiosos, ou seja, com o uso da fé em favor de um candidato. A expressão não é utilizada pelo TSE, que vincula tais atos a uma das modalidades previstas na LC nº 64/90. Não obstante, é possível encontrar decisões em outros tribunais utilizando-a:

"Não obstante o valor de R$ 300,00 não constitua quantia apta a gerar abuso de poder econômico, em relação ao abuso de poder religioso, tal circunstância não é importante. É dizer, como alertado pelo Juízo de origem, o pedido de voto originado de um líder religioso possui alto potencial de convencimento por envolver a fé dos fiéis de que o candidato indicado é o mais preparado para exercer o mandato eletivo. É possível até que, de acordo com o grau de devoção do eleitor, possa ele ver-se obrigado a votar naquele candidato, ungido e consagrado pelo seu mentor espiritual. Por tais razões, deve ser mantida a condenação dos réus referente a este capítulo da sentença" (TRE-RJ, RE nº 47.738, 8/2/2019).

Feitas estas considerações, não se pode deixar de abordar as práticas ilegítimas utilizadas em larga escala no pleito de 2022.

Trata-se da utilização do discurso religioso para demonizar os adversários políticos ou sacralizar os aliados, sendo comum a invocação de uma suposta luta do bem contra o mal. Os fiéis são convocados a se apresentar no exército de Deus como cabos eleitorais ao lado do bem. Por outro lado, aqueles que não se afinam politicamente com as pautas religiosas cooperam com o Demônio, cuja tarefa é destruir a família tradicional e promover toda a sorte de promiscuidades, depravações e imoralidades.

É neste cenário que o líder da Assembleia de Deus em Botucatu ameaça com "disciplina" quem votar em Lula; o pastor Wesley Carvalho da Assembleia de Deus Ministério do Gurupi afirma que os dissidentes pagarão um preço enorme diante de Deus no Juízo Final; o pastor Valdemiro Santiago da Igreja Mundial indica Bolsonaro como o candidato escolhido por Deus [3].

Não é difícil perceber que uso de tal discurso interfere diretamente na liberdade dos eleitores ao coagi-los, valendo-se de elementos que lhe atingem diretamente suas íntimas convicções, a seguir na direção indicada pelo padre, pastor, sacerdote, rabino ou quem quer que seja.

Instrumentalizar a fé para promover determinadas pautas políticas e favorecer candidatos não se coaduna com o regime constitucional em vigência. Trata-se de um uso ilegítimo do direito à religião

A dualidade é incompatível com a democracia. A demonização do outro também. Quando agentes mal intencionados se valem de estruturas sociais, quaisquer que sejam elas, para obter algum ganho no processo eleitoral, cabe às autoridades constituídas intervirem para fazer prevalecer o Direito. Apenas um processo realizado em conformidade com as normas preestabelecidas é capaz de conferir legitimidade aos mandatos, gerar reconhecimento da vitória conquistada e a pacificação social.

 


[1] Guerras culturais e a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano XIII, nº 39, janeiro/abril de 2021, p. 233-256.

[2] Há decisão do TRE-SP no sentido de que, ainda que tenha havido pedido de apoio político por parte de pastor, não havia prova de que o candidato estava no templo, razão pela qual se entendeu que não houve uso indevido do poder econômico (TRE-SP, Recurso Eleitoral nº 51.675, Acórdão, relator(a) des. Fábio Prieto de Souza, Data 14/6/2018).

[3] GONÇALVES, Eduardo. Campanha nas igrejas: estratégia de pastores para aumentar apoio a Bolsonaro inclui de punição a pedido de voto em 'orações'. O Globo, 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/09/campanha-nas-igrejas-estrategia-de-pastores-para-aumentar-apoio-a-bolsonaro-inclui-de-punicao-a-pedido-de-voto-em-oracoes-veja-videos.ghtml?utm_campanha=ebook. Acesso em 19/9/2022.

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