Diário de Classe

A Crítica Hermenêutica do Direito e o seu legado processual

Autores

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

17 de setembro de 2022, 8h00

A partir de uma tematização geral da Crítica Hermenêutica do Direito (aqui), outros textos foram escritos para assentar algumas nuances da matriz teórica de Lenio Luiz Streck. Sobre o que constitui uma Teoria da Decisão (aqui) e sobre qual é a proposta streckiana (aqui), por exemplo. Desta vez o tema é outro: afinal, qual é o legado processual da CHD?

Retomando o ponto de que a CHD é uma nova teoria que exsurge da fusão dos horizontes da filosofia hermenêutica, da hermenêutica filosófica e da teoria interpretativista dworkiniana, cumpre esclarecer o que coerência e integridade representam para Ronald Dworkin e como Streck incorpora estas questões às demandas inerentes ao contexto da realidade brasileira. Portanto, o objetivo deste ensaio é desenvolver-se como uma chave de leitura para este assunto. Nesse sentido, torna-se importante, diante desta empreitada, (re)conhecer uma reflexão de Manfredo Araújo de Oliveira: o homem, quando pergunta, já o faz dentro de uma tradição [1]. E ao perguntarmos qual é o legado processual da CHD, compreender os seus pressupostos teóricos representa uma verdadeira condição de possibilidade de qualquer resposta. Dessa forma, nosso "roteiro" é dividido em dois grandes atos: 1º) Como a CHD articula as noções de coerência/integridade? e 2º) Quais são as implicações normativas sobre o tema?

Mas antes, como todo bom roteiro precisa de uma rubrica para ser compreendido e executado adequadamente, oferecemos a nossa contextualização dos conceitos de integridade e coerência articulados por Dworkin em sua teoria interpretativista [2].

De forma panorâmica, vale entender que a obra de Dworkin, dentro da teoria e filosofia do direito, deu-se pela ruptura com o paradigma do positivismo jurídico e que isto se tornou possível a partir da compreensão do conceito Direito como uma atividade interpretativa. Daí porque o autor aponta para a importância da justificação enquanto a melhor forma de resolvermos nossas divergências acerca do sentido do fenômeno jurídico. Indo além, a partir da coerência e da integridade que, por sua vez, definem os critérios para a persecução dos melhores argumentos — os de princípio — no processo de justificação.

Em vista disso, o ponto do Direito como Integridade reside na ideia de que o fenômeno jurídico deve ser entendido como uma prática social interpretativa voltada à solução de casos concretos. Veja-se, então, que ao se exigir respeito do Estado para com essa compreensão, a integridade é transformada em um autêntico ideal político [3]. E, ao se aceitar a integridade como virtude política frente à justiça e à equidade, haverá um argumento geral e não estratégico para reconhecer os direitos juridicamente tutelados [4]. Dito de outra forma, a integridade sintetiza uma virtude política (tanto quanto a justiça e a equidade) e também uma exigência específica de moralidade política de um Estado, personificado como um agente moral que deve tratar os indivíduos com igual consideração e respeito [5].

No contexto da interpretação, o Direito como Integridade compele os juízes a admitir, tanto quanto possível, que o Direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios que devem ser aplicados nos novos casos que se apresentem, a fim de que as situações individuais sejam justas e equitativas, segundo as mesmas normas. No limite, de forma com que as decisões judiciais sejam pautadas por princípios, e não por política [6].

Por conseguinte, a concepção do Direito como Integridade traduz a ideia de que os juízes têm uma verdadeira responsabilidade para com a comunidade de princípios ao interpretarem o Direito. Em face disso, eles devem argumentar com base nos princípios, em detrimento dos argumentos de política, sendo-lhes exigível que esclareçam por quais motivos as partes têm direitos ou deveres legais não positivados que foram aplicados [7]. Diante dessa construção baseada na integridade, emerge a necessidade da coerência na aplicação do princípio que se tomou por base, e não apenas na aplicação da regra específica anunciada em nome desse princípio [8], como fator de legitimidade da interpretação pública a partir da decisão judicial.

Primeiro Ato: A Crítica Hermenêutica do Direito
Dentre os elementos que conduzem a Crítica Hermenêutica do Direito, vale lembrar que uma das suas principais teses é a da Resposta Adequada à Constituição (RAC) e que a própria teoria pode também ser interpretada como uma Teoria da Decisão [9]. E é diante dessa conjuntura que os imperativos dworkinianos de coerência e integridade revelam seu valor. Como aduz Streck:

"Para a Crítica Hermenêutica do Direito este imperativo de Coerência e Integridade de Dworkin, sobretudo por se manifestar interpretativamente, aponta para uma aproximação com a tradição hermenêutica continental. Em especial, na ideia de tradição e no peso da história efeitual de Hans-Georg Gadamer. A apropria­ção que fazemos num movimento antropofágico aparece de forma muito clara em nossa proposta de teoria da decisão judicial. A defesa de respostas constitucionalmente adequadas (numa ampliação que faço da tese de Dworkin) parte das premissas que o Direito não pode ser o campo das incertezas (dos relativismos), e que nele (e em toda a nossa experiência) há sempre algo anterior que nos vincula, direciona nosso olhar" [10].

Em outros termos, a coerência prova seu valor na medida em que consolida uma consistência lógica no julgamento de casos semelhantes, garantindo a) aplicação isonômica das normas e b) respeito a determinado grau de ajuste institucional [11] — no limite, a partir de um ajustamento entre as circunstâncias fáticas que determinado caso deve guardar em relação aos elementos normativos que o Direito lhe impõe.

De forma diferente (mas complementar), a integridade na medida em que exige que juízes construam seus argumentos de forma íntegra ao conjunto do Direito [12] e também ao exigir que quaisquer interpretações do ordenamento jurídico sejam realizadas sob a sua melhor luz — aqui, a partir da exigência de um dever de fairness, isto é, deve-se tratar todos os casos de forma equânime.

Numa última passagem sobre o tema, a ideia nuclear da coerência e da integridade é a concretização da igualdade [13]. Coerência e integridade não são ideais, portanto. Antes disso, são imperativos jurídicos que traduzem a ideia de que diversos casos devem ser julgados com igual consideração. Daí também porque são elementos que dão contorno à noção da responsabilidade política do julgador. E na medida em que uma decisão não obedece a coerência e integridade, o que se segue disso é a possibilidade de revisá-la e corrigi-la conforme o Direito.

Agora, caso queira-se apontar que coerência e integridade nada mais seriam do que elucubrações de alguma espécie de "originalismo teórico" [14], nos entrincheiramos para dizer que não. Não é preciso recorrer à hermenêutica ou qualquer outra teoria para demonstrar o que resta evidente no atual artigo 926 do Código de Processo Civil (CPC): Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Sobre esse ponto e mais alguns outros é que o próximo ato se debruça.

Segundo ato: Implicações normativas e o atual Código de Processo Civil
Partindo para um contexto eminentemente histórico, cumpre dizer que o próprio ConJur já registrou quais foram as principais influências de Streck no atual CPC (em entrevista: aqui). Assentando quais foram também neste texto: o resultado direto pode ser visto nos artigos 371, 926 e 927, bem como no aprimoramento dos artigos 10 e 489, §1º. Em linhas gerais, influências estas que foram resultado de a) uma série de textos publicados por Streck e/ou Dierle Nunes, b) do deputado Paulo Teixeira ter convidado Streck para discutir sugestões do à época do projeto de CPC e c) do diálogo que Streck travou com outros processualistas, políticos e com a própria presidente da República.

Mas enfim. Três contribuições talvez sejam as mais destacadas: artigos 371, 489 (§1º) e 926. Pois sigamos em ordem…

Sobre o artigo 371, nota-se a influência de Streck e de outros juristas da doutrina crítica do Direito processual brasileiro quando comparamos a redação anterior e atual deste dispositivo. Antes, pretendia-se manter o livre convencimento motivado. Hoje, tal poder foi expurgado do Código justamente a partir de uma emenda sugerida por Streck [15]. Sem pretender exaurir este tema complexo, deixamos algumas recomendações de leitura [16] e assentamos o essencial: decidir não é o mesmo que escolher [17].

Sobre o §1º do artigo 489 e reafirmando os termos da entrevista supramencionada, Streck e Dierle Nunes travaram uma verdadeira luta para evitar o veto a dispositivos importantes [18]. Artigos foram escritos na intenção de que o presidente sancionasse o Código sem vetos. E mesmo após a sanção, outros textos foram escritos para coibir retrocessos impostos pela Lei 13.256/2016 [19]. Mais uma vez nos atendo ao essencial: manter uma criteriologia decisional foi a razão de ser dessa luta.

Sobre o artigo 926, outra influência significativa vale ser registrada. Ao passo que o que constava no projeto original era que os tribunais apenas teriam a obrigação de manterem a estabilidade da jurisprudência, a insistência de Streck junto ao Parlamento [20] foi o que consagrou a normatividade as ideais de coerência e integridade. Novamente frisando o ponto de que não é preciso recorrer à hermenêutica ou qualquer outra teoria para demonstrar o que resta evidente, deve-se entender que o Direito não é perfumaria e que qualquer norma possui um mínimo semântico que não pode ser desprezado. Nessa senda, quando o Código indica um dever dos tribunais (de manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente), isto implica uma deontologia que não está à disposição do julgador. Ao fim e ao cabo, trata-se de um dispositivo que trouxe um imperativo de dupla face à atividade de julgar. Nesse contexto, um freio ao estabelecimento de dois pesos e duas medidas nas decisões judiciais [21].

Apoiando-nos em Streck uma última vez, há de se concluir que defender um Direito íntegro e coerente é ainda mais necessário no contexto brasileiro, caracterizado pela intensa judicialização, que coloca o Judiciário no centro do debate político e pela dificuldade de se fazer cumprir a Constituição [22]. O Direito não pode ser avesso a si mesmo e por mais que isso possa parecer uma platitude, por óbvio, o óbvio (ainda) precisa ser dito.

 


[1] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Linguístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. 4ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015. p. 201-202

[2] Em grande parte, os trechos que seguem são parte do livro: BERNSTS, Luísa. Contrapúblicos interpretativos: uma provocação feminista às respostas corretas em direito. Salvador: Juspodivm, 2022

[3] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 202

[4] Idem. p. 202-203

[5] MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 104

[6] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo WMF Martins Fontes, 2010. p. 133

[7] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 292

[8] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo WMF Martins Fontes, 2010. p. 139

[9] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 33

[10] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 46

[11] STRECK, Lenio Luz. Hermenêutica e jurisprudência no Código de Processo Civil: coerência e integridade. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 11

[12] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 44

[13] Idem

[14] Isto é, como se tais elementos fossem apenas pertencentes ao pensamento de Dworkin ou de Streck e como se tais elementos tivessem uma compreensão absolutamente estanque

[15] A justificativa adotada pelo Relator foi a seguinte: "Embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. […] O livre convencimento se justificava em face da necessidade de superação da prova tarifada. Filosoficamente, o abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por parte de juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da decisão"

[16] Sobre o tema, conferir o verbete Livre convencimento (motivado) no já citado Dicionário de Hermenêutica, bem como conferir o Artigo Livre convencimento judicial e verdade: Crítica Hermenêutica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán. Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/18696

[17] STRECK, Lenio. Diálogos com Lenio Streck: Hermenêutica, jurisdição e decisão. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020. p. 233

[18] Sobre o tema, vale registrar que Streck até mesmo contatou a presidente Dilma Rouself (à epoca presidente). Em resumo, para destacar a importância de não se o vetar nenhum elemento do art. 489

[19] Trata-se de uma Lei que implementou uma série de alterações no diploma processual em comento

[20] STRECK, Lenio. Precedentes Judiciais e Hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2021. p. 124

[21] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 1215

[22] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 46

Autores

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), pós-graduado em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição. Membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

  • é doutoranda e mestre em Direito Público pela Unisinos (RS), bolsista Capes/Proex e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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