Opinião

Fumus mali processus: os riscos de politização das buscas e apreensões

Autores

  • Henrique Attuch

    é estudante de Direito estagiário em Zanin Martins Advogados e entrevistador no Brasil 247.

  • Ivan Gitahy Neto

    é pós-graduado em Direito Constitucional e atuou como membro do Departamento de Direito Penal e Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-SP).

  • Pedro Simões Pião Neto

    é advogado criminalista sócio do escritório Ferreira & Simões Pião Advogados Associados e assessor da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB - Seção de São Paulo.

16 de setembro de 2022, 7h04

O ano é de eleições e, consequentemente, inúmeras são as movimentações e atos de poder que acompanham todo esse processo, seja de forma legítima, seja apenas com o fim de direcionar a atenção e a energia social para determinadas questões. Junto desses influxos, evidente é a presença do Direito como um todo, expressa na maioria das vezes por meio de decisões judiciais  avalizadoras ou voltadas à contenção desses direcionamentos.

Nesse contexto, crucial é enfrentarmos de maneira sóbria e responsável o tema da busca e apreensão. Isso, pois, essa medida instrumental, lícita e de grande importância para o Sistema de Justiça — i.e, quando devidamente utilizada , encontra-se em constante e inerente tensão com caros princípios e objetos jurídicos constitucionalmente tutelados, como: 1) a inviolabilidade do domicílio; 2) a dignidade da pessoa humana; 3) a intimidade e vida privada; e, por fim, 4) a integridade moral do indivíduo [1].

Nos restringiremos, no presente artigo, a melhor esmiuçar o último aspecto elencado, dado o contexto atualmente posto, a reflexão que aqui buscamos e, também, a direta convergência daquele com os demais.

De início, inquestionável é a premissa de que adentrar na casa de alguém, normalmente nas primeiras horas do dia e sem qualquer aviso prévio, é algo drástico e extremamente invasivo  não apenas ao indivíduo alvo da medida, como também às demais pessoas que, porventura, estejam presentes naquele local ou que a ele sejam associadas. Por esse motivo, crucial que sempre seja feito um reflexivo juízo de ponderação por parte do magistrado que decide por autorizar uma busca domiciliar, dado os diversos interesses em jogo.

Para que seja legal, o julgador que autorizar a busca deve ser capaz de sustentar de maneira clara e fundamentada as "fundadas razões" que demonstram sua necessidade no caso em concreto, de acordo com o previsto no §1° do artigo 240 do Código de Processo Penal. E aqui já está o primeiro problema, visto o exagerado espaço de discricionaridade deixado pela expressão adotada pelo legislador, que acaba por eventualmente viabilizar o manejo de tal ferramenta de forma subjetiva e indevida, sem que tenha restado demonstrado de maneira satisfatória o fumus commissi delicti, i.e, provas suficientes de autoria e materialidade, lastreadas em elementos fáticos contundentes e já anteriormente coletados  considerando que esse não pode ser o primeiro instrumento de obtenção probatória utilizado.

Para além disso, é necessário que fique clara a finalidade exata da busca domiciliar à luz do que se acredita poder alcançar através dela própria, não podendo essa se dar de maneira incerta e aventureira, tendo em vista a gravidade e violência da medida.

Outro problema que podemos apontar é que de acordo com o disposto no artigo 242 do Código de Processo Penal, a busca poderá ser determinada de ofício pelo juiz, o que, para além de ferir frontalmente a necessária estrutura acusatória da processualística penal, idealizada pela Constituição Federal de 1988, ainda possibilita que essa determinação seja feita de forma unilateral, diminuindo seu nível de confiabilidade.

Sobre esse ponto em específico, cumpre aqui falarmos sobre a equivocada visão que permeia a sociedade no sentido de que uma decisão judicial, por ter sido tomada por um juiz togado e que, em tese, por anos estudou para oficiar no Poder Judiciário, tem presunção de legitimidade, estando aprioristicamente correta e embasada. Tal fenômeno se mostrou em grande medida ao longo de toda a Operação Lava Jato, não tendo qualquer motivo para se sustentar.

Decisões judiciais, assim como qualquer ato de poder estatal, estão sujeitas a estarem equivocadas e se mostrarem, em um segundo momento, ilegais. Inclusive, é nessa ideia que está fundado o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição, que prevê que toda decisão estatal deve estar sujeita a reexame, não se admitindo qualquer forma de poder ilimitado, absoluto e inquestionável dentro de um Estado de Direito [2].

No mais, ainda que a decisão que decretou a busca esteja livre de vícios de legalidade, nem sempre o material coletado em tal diligência terá relevância probatória, podendo inclusive ser um fator a frustrar a tese da acusação caso nada de incriminador seja encontrado. Para além disso, o valor processual dos elementos obtidos em sede de busca e apreensão, quando em fase de investigação, servem unicamente para formar um juízo de probabilidade, e não de certeza. O que vale ao longo de toda a tramitação investigativa e processual, até o eventual trânsito em julgado de sentença penal, é sempre o princípio da presunção de inocência.

Exemplos práticos da desvirtuação do instituto da busca e apreensão são diversos e, como mencionado, o quadro de violações dessa natureza em muito se expandiram no curso da operação lava jato. Nessa senda, talvez encontrando-se como o maior exemplo recente de "sensacionalização" e "politização" do processo penal, especialmente no campo das medidas investigativas, é o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — que, através do Habeas Corpus nº 164.493/PR, teve reconhecida a desobediência para com sua garantia fundamental a uma investigação e a um julgamento justos e imparciais [3].

Rememore-se que, na iminência do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, em 4 de março de 2016, a mando do ex-juiz Sérgio Moro, contra Lula foram deflagradas buscas e apreensões em sua residência, na de seus filhos e, também, no instituto onde trabalhava [4]. Autoapelidada de operação Aleteia (em referência a palavra grega alétheia, significando "a busca pela verdade"), a execução das medidas probatórias cumpridas pela Polícia Federal nos idos de março de 2016, na 24ª fase da lava jato, também contou com a condução coercitiva do ex-presidente, a qual, ao fim e ao cabo, considerado o contexto mediante o qual foi realizada, acabou sendo tida pela Suprema Corte como propiciadora de uma grave "exposição atentatória à dignidade e à presunção de inocência do investigado", além de um forte indicativo da suspeição de mencionado ex-juiz, hoje candidato ao Senado pelo Estado do Paraná.

Em trechos extraídos da íntegra do voto-vista do ministro Gilmar Mendes em sede de aludido writ, a motivação escusa das buscas também restou reforçada por conta de diálogos obtidos pelo site The Intercept [5], os quais esclareceram como os procuradores da força-tarefa da operação lava-jato comunicavam-se, em tempo real, com Sérgio Moro e sem a devida observância das inafastáveis garantias individuais perante as quais deve-se atentar no curso de execução de medidas invasivas como as mencionadas — inobstante tais mensagens interceptadas não terem sido necessárias para a declaração de parcialidade do então juiz paranaense. In litteris:

"Como se sabe, no mesmo dia, 4 de março de 2016, em que foi realizada a condução coercitiva, foi deflagrada a 24ª fase da Lava Jato, em que foi realizada operação de busca e apreensão no sítio de Atibaia. Em tempo real, durante a realização da busca, os membros da força-tarefa comunicavam-se com o juiz, requeriam a extensão do mandado e ainda alinhavam estratégias de atuação sobre quais objetos seriam relevantes de serem apreendidos".

E mais adiante, ainda sobre os acertos ocultos havidos na lava jato contra Lula:

"A prática de combinar o jogo processual rendia a celeridade processual quando assim fosse oportuno para a acusação ou para o próprio julgador. Em investigação específica envolvendo o ora reclamante, Deltan Dallagnol e Sergio Moro combinaram pari passu o levantamento do sigilo de diligência de busca e apreensão solicitada pela Polícia Federal".

Outro caso notório, que trata de um suspiro de aludida empreitada policial, é o de Ciro Ferreira Gomes, o qual, já em meio a exposição de suas pretensões políticas para o pleito do corrente ano, foi, em dezembro de 2021, alvo de medidas invasivas em seu domicílio, voltadas a colher elementos que corroborassem alegações de um suposto desvio de verbas e pagamento de propinas tidos na reforma da Arena Castelão, em Fortaleza, entre os anos de 2010 e 2013 [6].

Com base em informações retiradas da colaboração de um dos delatores do inquérito a que as buscas ora tratadas eram instrumentais, o juízo federal da 32ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Ceará deferiu as cautelares na residência de Ciro Gomes, inobstante as imputações com que se trabalhava no bojo de mencionado apuratório terem temporalmente se situado quase uma década antes da deflagração da operação  nesse caso, autodenominda Colosseum pela Polícia Federal cearense.

O Tribunal Regional da 5ª Região, em sede do habeas corpus nº 0814697-79.2021.4.05.0000, questionou justamente o momento da expedição de referidos mandados de busca e apreensão, além do precário escólio probatório que fundamentava a decisão de primeira instância, fazendo com que, assim, se anulasse a operação policial  tornando imprestáveis os elementos nela coletados.

E por fim, outra situação que quadra ressaltar, como as acima descritas, é o da operação Cash Delivery, cuja fase ostensiva fora deflagrada em Goiás, aos 28 dias de setembro de 2018 [7], em face de Marconi Perillo e outros ex-integrantes da Administração Pública goiana. Ressalte-se que referida empreitada ocorreu 10 dias antes do primeiro turno das eleições federais e estaduais daquele ano, no âmbito das quais Marconi Perillo disputava uma vaga ao Senado Federal.

Passados anos desde a deflagração das buscas, que à época foram noticiadas em tempo real pela imprensa regional e nacional — e que quiçá configuraram-se como a principal razão pela qual o ex-governador de Goiás não venceu as eleições ao Senado (como se demonstrou pela sua derrota nas urnas a despeito de ter estado à frente das pesquisas [8]) —, em 28 de abril de 2022, o ministro Gilmar Mendes, no Habeas Corpus nº 214.214, com toda a percuciência que lhe é notória, anulou o inquérito e as buscas instauradas contra os então investigados, determinando a remessa dos autos da Cash Delivery da Justiça Federal para a Eleitoral, reconhecendo a incompetência daquele diante da natureza dos delitos perquiridos pela empreitada policial em cotejo, sem contar o que também considerou como uma indevida "atuação dos órgãos de primeira instância, que se utilizaram de instrumentos de bypass processual para tentar modificar o juiz competente para processar e julgar os fatos investigados".

Ressaltou o ministro na ocasião, igualmente, que "as instâncias inferiores não podem deixar de observar as regras definidoras das atribuições e competências fixadas pelo STF apenas por divergências jurídicas ou pessoais sobre o resultado do julgamento de determinado precedente".

E o que se busca concluir com o presente artigo é que o instrumento da busca e apreensão, seja no contexto eleitoral ou não, pode vir a ser manejado com objetivos escusos, que não estejam atrelados àqueles previstos pelo Código de Processo Penal, sendo então passível de anulação por órgão superior. Além disso, manejado de acordo com a lei, podem muito pouco representar em termos probatórios para o processo no futuro  tais fatores, no entanto, não anulam o potencial estigmatizante dessa medida, à luz do popular ditado "onde há fumaça, há fogo", que se mostra absolutamente indevido neste âmbito, visto a importância de se respeitar, de forma plena e indiscriminada, um dos princípios mais caros ao Estado de Direito, qual seja: a presunção de inocência.

 

[1] Disponível em:  https://www.istoedinheiro.com.br/marconi-perillo-psdb-e-alvo-de-busca-e-apreensao-na-operacao-cash-delivery/

 


[2] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal — 17. ed. —  São Paulo : Saraiva Educação, 2020, p. 800.

[3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos recursos penais. 2. ed.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 40.

Autores

  • é assistente jurídico no Wilton Gomes Advogados, graduado em direito pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo.

  • é pós-graduado em Direito Constitucional e atuou como membro do Departamento de Direito Penal e Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-SP).

  • é advogado criminalista, sócio do escritório Ferreira & Simões Pião Advogados Associados e assessor da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB - Seção de São Paulo.

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