Opinião

Programas podem tudo, até fazer motor operar de modo diferente

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

20 de outubro de 2022, 5h43

Imaginemos sistema operacional que funcione, automaticamente, de modo diferente, nos testes e no uso normal.

Ninguém precisaria apertar botão ou fazer qualquer ajuste, pois o programa seria hábil a fazer tudo, sozinho.

Tal situação não é imaginação ou conteúdo de ficção científica.

Exemplo popular está no caso Dieselgate, que envolveu 11 milhões de carros em todo o mundo.

O "escândalo de falsificação de resultados de emissões de poluentes em motores a diesel" [1] ganhou o noticiário, mundo afora.

O contexto "veio à tona em setembro de 2015, nos Estados Unidos, mas as suspeitas foram levantadas muito antes" [2], desde idos de 2004, quando software foi identificado:

"A EPA descobre que um software instalado na central eletrônica dos carros da Volkswagen altera as emissões de poluentes nesses veículos apenas quando são submetidos a vistorias.
O dispositivo rastreia a posição do volante, a velocidade do veículo, há quanto tempo está ligado e a pressão barométrica, baixando os poluentes emitidos quando reconhece uma condição de teste. Em condição normal de rodagem, os controles do escape são desligados e os carros poluem mais do que o permitido" [3].

Consta que "em 2020, a empresa já pagou mais de 30 bilhões de euros em penalidades" [4].

Manifestamos a nossa admiração e surpresa por existir programa de computador autossuficiente a ponto de distinguir quando o veículo está em teste ou em uso normal.

Esse caso serve como boa introdução à dimensão do sofisticado mundo tecnológico, sendo bom relembrar que estamos cada vez mais dependentes dos sistemas operacionais e das máquinas onde operam.

Apenas por fora as máquinas são físicas e tangíveis. Por dentro, os programas de computador fazem com que tudo funcione, automaticamente, com freios e contrapesos diante de situações programadas, capaz de interpretar sinais externos e ambientais, como ocorre nos veículos autônomos:

"Eles buscam desenvolver um processo de automatização na direção para que efetivamente os carros se dirijam sozinhos, sem qualquer interferência humana. […] o controle autônomo deve ter noção de tudo o que acontece ao redor do veículo. Para isso, softwares baseados em recursos como inteligência artificial atuam em conjunto com sensores e radares instalados pela carroceria do carro […] a parte de software é responsável por processar as informações, tendo como resposta para o veículo autônomo configuração de melhor trajeto, momento de ação (como frear, virar à direita, acelerar, manter a faixa, manter a distância do outro carro à frente). Além disso, há a comunicação entre veículos, conforme os sistemas aumentam seu potencial de conectividade e rede [5]."

É campo sem limites, a não ser para a imaginação. Os exemplos coligidos demonstram a capacidade humana em criar softwares muito além da melhor perspectiva de apenas poucos anos. O que era utópica ficção científica se mostra factível e real.

Isso revoluciona tudo o que aprendemos sobre as nossas relações com as máquinas — e, também, entre pessoas.

Sistema jurídico, princípios e regras de direito
O Direito precisa estar atento a essas variáveis.

No caso de atropelamento por carro autônomo, de quem será a responsabilidade civil? Será do "motorista" ou da empresa que criou o programa?

E quanto à responsabilidade penal? Quem sentará no banco dos réus, para responder por lesão corporal ou homicídio, decorrente de atropelamento? Réu será o programador, a empresa ou o motorista que não dirigiu o carro, já que este era conduzido por um sistema de computador?

Dúvidas e incertezas nos assolam e países avaliam o contexto.

Assim o Reino Unido se debruça sobre o tema:

"O Reino Unido encerrou uma das mais importantes discussões que afetavam a indústria de tecnologia e automobilística: acidentes com carros autônomos serão responsabilidade das fabricantes, e não dos usuários. A resolução isenta o motorista humano de sanções por incidentes quando o automóvel estiver no controle da direção. O governo britânico anunciou que vai elaborar uma legislação detalhada sobre o assunto, prevista para 2025 [6]."

O mundo caminha cada vez mais rapidamente e a tipicidade em Direito deve acompanhar o ritmo, sob pena de não satisfazer a necessidades da ordem social e jurídica. Devemos ter Sistema Jurídico hábil a responder a essas necessidades.

Enquanto o nosso Código de Trânsito proíbe até que se dirija com uma das mãos (CTN, artigo 252, V), como ficaria o caso do carro autônomo, que prescinde do uso das mãos do condutor?

Além disso, por ora, óbices jurídicos tem sido entraves à chegada desses veículos. Será preciso reformar dispositivos legais para adequação desse avanço social e tecnológico ao mundo do Direito e das relações jurídicas.

Toda norma precisa ser compreendida a partir do Sistema Jurídico, sendo importante a observação feita por Cristiano Carrilho Silveira de Medeiros [7], para quem, "no Brasil, o estudo dos sistemas jurídicos continua limitado a poucos pesquisadores".

A primeira tentação do intérprete é analisar a lei, isoladamente, contrariando o pensamento de Hans Kelsen, que (em livre tradução) já fixara a ideia de que é "impossível se compreender a natureza do direito se limitarmos a nossa atenção à norma isolada" [8].

Joseph Raz [9] parte para algo mais contundente e desdobra aqueles pensamentos, dizendo-nos que "a teoria do sistema jurídico é pré-requisito para qualquer definição adequada de 'lei'".

Marcelo Neves [10] nos orienta, ao dizer que "na sociedade complexa de hoje, os princípios estimulam a expressão do dissenso em torno de questões jurídicas e, ao mesmo tempo, servem à legitimação procedimental mediante a absorção do dissenso".

Conclusão
O mundo gira em torno de sistemas GPS, processos judiciais eletrônicos, telefonia celular, assinatura digital, drones, etc.

As tecnologias estarão mais presentes em nossas vidas. Faremos cada vez mais ações através dos meios eletrônicos, muito além das declarações de imposto de renda, do pagamento de contas, das transferências bancárias, da eleição com votação por urnas eletrônicas e da condução de carros – que está se transformando em algo próximo ao que se via nas cabines de aviões.

Sistemas, programas, tecnologia, mundo virtual… Estamos em tempo (ainda) de descoberta do real reflexo desse mundo digital, no nosso mundo real.

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[1] G1, 23.9.2015: 'Dieselgate': veja como escândalo da Volkswagen começou e as consequências. Fonte https://g1.globo.com/carros/noticia/2015/09/escandalo-da-volkswagen-veja-o-passo-passo-do-caso.html, 04.10.2022, 16h47.

[2] G1, 23.9.2015, fonte citada.

[3] G1, 23.9.2015, fonte citada.

[4] Uol, Autopapo, 23.9.2017: Dieselgate: tudo sobre a fraude das emissões em carros a diesel, por Bárbara Angelo  fonte https://autopapo.uol.com.br/noticia/dieselgate-tudo-precisa-saber-fraude-volkswagen/; consulta em 04.10.2022, 16:53h.

[5] Olhar Digital: Carros autônomos: confira o guia completo; por Ronnie Mancuzo, editado por Neil Patel. P. 05/04/2022 — Fonte https://olhardigital.com.br/2022/04/05/carros-e-tecnologia/carros-autonomos/; consulta em 05.10.2022, 11:27h.

[6] TechTudo. Acidente com carro autônomo? Responsabilidade será da fabricante; Por Raquel Freire; 24.9.2022. Consulta em 05.10.2022, às 11:49h  Fonte https://www.techtudo.com.br/noticias/2022/08/acidente-com-carro-autonomo-responsabilidade-sera-da-fabricante.ghtml

[7] MEDEIROS, Cristiano Carrilho Silveira de. Manual de História dos Sistemas Jurídicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. XI.

[8] KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. Russell & Russell, Nova York, 1961, página 3.

[9] RAZ, Joseph. O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos. Título original: The Concept of a legal system: na introduction to the theory of legal system; tradução de Maria Cecília Almeida; revisão de tradução de Marcelo Brandão Cipolla  São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012 (Biblioteca Jurídica WMF).

[10] NEVES, Marcelo. Entre e Hidra a e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. XXXVIII.

Autores

  • é advogado, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Agrárias, da União Brasileira de Escritores, do Instituto Federalista e da Comissão de Direito Agrário da OAB-RJ, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Ubau, autor dos livros Grilos e Gafanhotos Grilagem e Poder, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilagem das Terras e da Soberania.

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