Tribunal do Júri

A falsa confissão internalizada e a sugestionabilidade no interrogatório

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

15 de outubro de 2022, 8h00

Em data de 28 de setembro de 1973, por volta das 22h, em New Cannan, Connecticut, Peter Reilly (18 anos) foi preso e acusado de ter assassinado sua mãe, Barbara Gibbons (51 anos). O corpo da vítima, localizado na residência onde morava, estava mutilado. "Sua garganta havia sido brutalmente cortada, haviam várias facadas profundas em seu estômago e pélvis, outras feridas nas costas e em uma das mãos. Seu nariz e ambas as pernas estavam quebradas. Ela estava deitada nua em uma poça de sangue, exceto por uma camiseta levantada sobre os seus seios" [1].

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Assim que a Connecticut State Police chegou ao local, Reilly foi detido e permaneceu incomunicável por cerca de 25 horas, sendo permitido que desfrutasse de poucas horas de sono e escassa alimentação. O custodiado negou a prática do crime e declarou ter encontrado o corpo de sua mãe em sua residência, após ter retornado de um encontro de jovens entre 21h50 e 21h55. Afirmou ter acionado uma ambulância, telefonado para um médico e para um hospital, quando alguém notificou a polícia. Nenhuma marca de sangue foi encontrada nas vestes ou no corpo do suspeito. Porém, após ser informado pela polícia de que havia falhado no teste com o polígrafo, Reilly confessou a prática do crime.

Em um determinado momento de seu extenso interrogatório, Reilly concluiu: "'Esse teste está me deixando com dúvidas agora'. Horas mais tarde, usando a linguagem inferencial, ele disse, 'Bem, realmente parece que eu fiz isso'. Ainda mais tarde, ele confabulou uma falsa memória: 'Eu me lembro de ter cortado por uma vez a garganta da minha mãe com uma navalha que eu usava para aeromodelismo'" [2]. Na tarde do seu segundo dia de custódia, o detido estava tão convicto de ter assassinado sua mãe a partir do resultado do polígrafo que, quando questionado a respeito dos detalhes do crime — que por ele eram desconhecidos —, ele "pateticamente pediu dicas ao operador do polígrafo" [3]. O interrogatório de Reilly foi "gravado e transcrições posteriores revelaram que, embora ele não tenha sido intimidado ou ameaçado fisicamente, ele ficou cada vez mais confuso e ansioso para agradar seus questionadores durante o longo processo. Várias vezes a polícia o informou que ele tinha direito a um advogado, mas ele não insistiu em um. Após as longas horas de entrevista, ele desenvolveu uma confissão e assinou" [4].

Em 12 de abril de 1974, após mais de 15 horas de discussão divididas em dois dias, os jurados deliberaram pela condenação de Peter Reilly pelo crime de manslaughter in the first degree, restando então sentenciado a uma pena superior a seis, mas inferior a 16 anos de encarceramento.

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Amparado com o surgimento de novas provas — entre elas, a retratação de testemunhas nos depoimentos anteriores utilizados como álibis para afastar outros suspeitos; a oitiva de novas testemunhas que ajudaram a reconstruir uma linha do tempo que excluía a possibilidade de o acusado ter praticado o crime antes de ligar buscando ajuda; o exame de impressões digitais colhidas na cena do crime que identificaram dois outros suspeitos da prática delitiva — e apoiado (financeiramente e moralmente) pela comunidade local, Reilly apelou buscando um novo julgamento. A desconstrução da confissão foi apoiada no depoimento do especialista e médico-psiquiatra Dr. Herbert Spiegel, o qual sugeriu que Reilly poderia ter sido levado a confessar "devido à sua dificuldade de 'integrar um conceito de self'. Reilly tinha sido incapaz de distinguir entre uma afirmação e uma afirmação ou uma pergunta, e poderia facilmente ser levado a aceitar como um fato algo sobre o qual nada sabia" [5]. Diante de tais provas, após Reilly ter permanecido mais de um ano preso, em 25 de março de 1976, Judge John Speziale anulou a condenação.

A limitação cognitiva, acompanhada de um baixo Q. I., é capaz de levar jovens e adultos a não reconhecer e fazer valer seus direitos e garantias, contribuindo ainda para que se tornem altamente sugestionáveis, especialmente quando questionados em um ambiente de pressão. Segundo Saul Kassin:

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"Indivíduos com problemas de saúde mental também estão em maior risco durante um interrogatório. Os transtornos psicológicos são frequentemente acompanhados de monitoramento de realidade defeituoso, percepções distorcidas, julgamento prejudicado, ansiedade, perturbação do humor, mau autocontrole e sentimentos culpa. Claramente, por exemplo, alguém com ansiedade severa terá uma tolerância limitada ao estresse à medida que se intensifica ao longo de um interrogatório. Outros podem quebrar porque são abusadores de substâncias que precisam de uma correção, ou porque sofrem de uma desordem delirante, o que torna difícil manter seu controle sobre a realidade quando confrontados por uma enxurrada de acusações. Mais uma vez, o problema da sugestionabilidade levanta sua cabeça feia no contexto de um interrogatório" [6].

Um exemplo impactante da influência do Q. I., quanto à sugestionabilidade nos interrogatórios, pode ser visualizado no caso envolvendo Earl Washington. Em junho de 1982, Rebecca Lyn Williams (19 anos) foi violentada e assassinada em seu apartamento. Aproximadamente um ano após o crime, Earl Washington, um jovem negro, de 22 anos, com um Q. I. de 69 pontos, foi preso e, após dois dias de interrogatório, "confessou" um total de cinco crimes diferentes, incluindo o assassinato de Williams. Na sequência, as primeiras quatro confissões foram totalmente desprezadas pelas suas inconsistências e pela incapacidade das vítimas em reconhecer Washington.

Quanto ao assassinato de Williams, o interrogatório revelou que Washington não sabia a raça da vítima, o endereço do seu apartamento (local onde fora assassinada) e que ela teria sido estuprada. Além disso, entre outras incongruências, o acusado afirmou que a vítima era baixa, enquanto de fato ela tinha 1,78m e relatou ter desferido duas ou três facadas em Williams, quando, na verdade, o laudo identificou trinta e oito facadas. "Somente na quarta tentativa de confissão ensaiada as autoridades aceitaram a declaração de Washington e a registraram por escrito com a sua assinatura" [7]. Por fim, análises psicológicas relataram que, "para compensar sua deficiência, Washington educadamente se submeteria a qualquer figura de autoridade com quem entrasse em contato. Assim, quando os policiais fizeram perguntas importantes a Washington para obter uma confissão, ele obedeceu e ofereceu respostas afirmativas para obter sua aprovação" [8]. Em 20/1/1984, Washington foi condenado à pena de morte, porém, graças à produção de outras provas — em especial, um teste de DNA —, em 14/1/1994, foi concedido ao condenado o perdão absoluto da acusação de homicídio. Ao decidir o caso em favor de Washington, "o júri descobriu que o que aconteceu com ele foi [algo] tão simples quanto trágico: ele foi levado a uma confissão que se tornou possível porque a polícia lhe deu detalhes que apenas o assassino poderia saber" [9].

Ciente de que interrogatórios sugestivos e intimidativos estão associados com a tendência de que determinadas pessoas internalizem uma falsa crença de que teriam praticado o crime do qual estão sendo acusadas, Gisli Gudjonsson, professor emérito do Institute of Psychiatry of King’s College London e PhD em psicologia clínica, desenvolveu o que restou conhecido como Gudjonsson Suggestibility Scale (GSS), ou seja, um método capaz de mensurar a sugestionabilidade de uma pessoa. Gudjonsson define a sugestionabilidade interrogativa como "a medida em que, dentro de uma interação fechada, um indivíduo passa a aceitar mensagens ou informações comunicadas durante o interrogatório como verdadeiras, e como o comportamento subsequente é afetado a partir delas" [10].

O teste inicia com a leitura de um texto em voz alta para todos os participantes, os quais são informados que devem guardar o maior número de informações possíveis. Após 50 minutos de espera, o examinador solicita que eles espontaneamente narrem o contido no texto e, posteriormente, os participantes são testados com 20 questões relativas à história, das quais 15 são falsas. Após a apresentação das respostas, os participantes recebem um veemente feedback negativo quanto ao seu desempenho, sendo informados que cometeram vários deslizes e que se faz necessário repetir as questões para obter um resultado mais preciso e acertado. Assim, de acordo com as respostas dos participantes aos itens falsos e a quantidade de vezes que o participante muda de resposta, um score de sugestionabilidade pode ser calculado.

De acordo com Smeets, Jelicic e Merckelbach, pesquisadores do Departamento de Ciências Psicológicas Clínicas da Universidade de Maastricht, o GSS tem sido utilizado para "explorar as ligações entre a sugestionabilidade interrogativa, vários parâmetros da memória (por exemplo, confabulação e distorção), habilidades intelectuais (…) e características da personalidade (por exemplo, aquiescência, ansiedade, dissociação, locus de controle, autoestima…). Além disso, alguns estudos se concentram na capacidade do GSS de detectar padrões de simulação (…) e o papel da sugestionabilidade interrogativa em confissões falas induzidas em laboratório" [11].

O estudo a respeito das falsas confissões é tema que merece toda a nossa atenção — e, inclusive, já foi tratado anteriormente nessa coluna —, pois, de acordo os dados coletados pelo Innocence Project, de 1989 a 2010, de um total de 273 condenados que tiveram suas sentenças revistas, aproximadamente 25% dos acusados confessaram falsamente, ou, de outra maneira, corroboraram com a tese acusatória, trazendo informações incriminatórias em seu desfavor [12] [13]. Quando um réu que falsamente tenha confessado é levado a júri e alega ser inocente (pled not guilty), "a taxa de condenações aumenta de 73% (Leo & Ofshe, 1998) para 81% (Drizin & Leo, 2004)" [14]. Nesse contexto, mostra-se cada vez mais importante a participação de experts que possam ajudar os julgadores (togados e leigos) a mensurar a validade e a confiabilidade das confissões [15], algo que ainda não encontramos nos julgamentos perante o júri no Brasil, bem como que os operadores de Direito conheçam este fenômeno para eventual aplicação no caso concreto.

 


[1] A Death In Cannan. In: NYT Archives, publicado em 12/12/1976, disponível em https://nyti.ms/3ydlZKP, com acesso em 4/10/2022.

[2] KASSIN, Saul. Duped. Why Innocent People Confess – and Why We Believe Their Confessions. Guilford, Connecticut: Prometheus Books, 2002, p. 29.

[3] A Death In Cannan. In: NYT Archives, publicado em 12/12/1976, disponível em https://nyti.ms/3ydlZKP, com acesso em 4/10/2022.

[4] CARLISLE, Rodney. Peter A. Reilly Trial: 1974 & 1976. In. Encyclopedia.com., disponível: https://bit.ly/3M5Gw9U, com acesso em 4/10/2022.

[5] CARLISLE, Rodney. Peter A. Reilly Trial: 1974 & 1976. In. Encyclopedia.com., disponível: https://bit.ly/3M5Gw9U, com acesso em 4/10/2022.

[6] KASSIN, Saul. Duped. Why Innocent People Confess — and Why We Believe Their Confessions. Guilford, Connecticut: Prometheus Books, 2002, p. 34.

[7] Earl Washington. In. The National Registry of Exonerations, disponível em https://bit.ly/3ys3EtD, com acesso em 4/10/2022.

[8] Id.

[9] FRANK GREEN, Richmond. Article Highlights Earl Washington’s Wrongful Conviction as VA Abolition is Considered. In. Witness to Innocence. Disponível em https://bit.ly/3ywoGqX, com acesso em 9/10/2022.

[10] FRUMKIN, BRUCE i; LALLY, Stephen J.; SEXTON, James E. A United States Forensic Sample for the Gudjonsson Suggestibility Scales. In. Behavioral Sciences and the Law, 30 (749-763), p. 23/9/2012.

[11] SMEETS, T.; JELICIC, M.; MERCKELBACH, H. Shortened versions of the Gudjonsson Suggestibility Scale meet the standards. In. Legal and Criminological Psychology, n. 14 (149-155). The British Psychological Society, 2009.

[12] FRUMKIN, BRUCE I.; LALLY, Stephen J.; SEXTON, James E. A United States Forensic Sample for the Gudjonsson Suggestibility Scales. In. Behavioral Sciences and the Law, 30 (749-763), p. 23/9/2012.

[13] Chris Ochoa teve a sua inocência provada com a realização de um exame de DNA no ano de 2002. Porém, antes disso, permaneceu preso por doze anos numa prisão do Texas por um crime que ele não cometeu. Um relato do próprio Ochoa pode ser visualizado no vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=0xJlsxCGw9w&t=129s

[14] KASSIN, Saul M.; GUDJONSSON, Gisli H. The Psychology of Confessions. Review of the Literature and Issues. In. Psychological Science in the Public Interest, vol. 5 n. 2, nov. 2004, p. 33-67.

[15] "O testemunho de um especialista também pode ajudar um júri a entender por que um determinado acusado pode ter estado em maior risco psicológico de ceder à influência policial em comparação com a pessoa média." (FRUMKIN, BRUCE I.; LALLY, Stephen J.; SEXTON, James E. A United States Forensic Sample for the Gudjonsson Suggestibility Scales. In. Behavioral Sciences and the Law, 30 (749-763), p. 23/9/2012).

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

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