Tribunal do Júri

"The Central Park Jogger Case" e as confissões de inocentes

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

24 de setembro de 2022, 8h00

Na noite do dia 19 de abril de 1989, Trischa Meili, na época com 28 anos, foi abordada enquanto fazia uma corrida no Central Park. A operadora no mercado financeiro foi violentamente espancada, atirada ao chão, arrastada e amarrada com suas próprias vestes para, ao final, ser estuprada e deixada à própria sorte em um local ermo num dos parques mais importantes de Manhattan. Vítima de abuso sexual, Trischa sofreu graves lesões encefálicas, perdeu muito sangue, sofreu hipotermia e apenas foi reconhecida graças a um anel que usava. Foi levada ao hospital desacordada e, após alguns dias em coma, despertou sem conseguir se recordar plenamente do que aconteceu [1].

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Na mesma noite do crime, um grupo de aproximadamente 30 jovens — na maioria negros e hispânicos — igualmente estava no parque e promoviam uma verdadeira algazarra no local, aterrorizando pessoas que por ali transitavam [2]. Entre eles, estavam Kevin Richardson (14 anos); Raymond Santana (14 anos), Antron McCray (15 anos), Yusef Salaam (15 anos) e Korey Wise (16 anos) os quais foram detidos pelas autoridades logo após o crime [3].

Em apenas 72 horas, detetives da polícia de NY anunciaram que os cinco adolescentes foram os autores do hediondo crime e que já possuíam confissões gravadas de quatro deles que, na presença de um auxiliar da promotoria, além de assumirem a prática delitiva, delatavam minuciosamente a atuação dos demais. Em 1990, os cinco adolescentes foram julgados e condenados a uma pena que somada alcançou perto de 45 anos, no que restou nominado "The Central Park Jogger Case".

Caso encerrado? Não. Decorridos 13 anos após o crime, Matias Reys, conhecido como o "East Side Rapist" e já condenado por estupro e homicídio em outros casos, procurou o Ministério Público para confessar a prática delitiva. Reys trouxe detalhes do crime que até então eram desconhecidos pela polícia, tais como: que teria subtraído a chave da residência da vítima para posteriormente ingressar no local e subtrair seus bens; e, haveria se aproveitado da circunstância de Trischa estar fazendo uso de fones de ouvido para conseguir se aproximar dela sem ser notado. Posteriormente, um exame de DNA demonstrou que o sêmen encontrado nas roupas da vítima pertencia a Reyes [4] e que nenhum outro vestígio na cena do crime incriminava os adolescentes.

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A confissão pode ser considerada "the gold standard of evidence"? Uma confissão gravada em vídeo tem o poder de superar o resultado de um exame de DNA que exonera a responsabilidade de um acusado?

No caso em destaque, após minucioso estudo das provas e sob a indignação da polícia de NY e de alguns membros da promotoria, Robert Morgenthau (district attorney), concordou com o pedido de revisão da condenação e, ainda em dezembro 2002, a New York Supreme Court anulou as condenações [5]. O caso ganhou as telas em 2019, com a série When They See Us (Netflix), que no Brasil foi chamado "Olhos Que Condenam", título que evidencia o arquétipo de medo criado a partir de gangues de jovens negros e hispânicos na sociedade norte-americana.

Não há dúvida de que a confissão exerce um alto poder de convencimento, eis que as pessoas acreditam no seu valor probatório como algo inerente ao senso comum. Porém, como adverte Kassin, "o fenômeno da falsa confissão ocorre regularmente, mas com frequência desconhecida" [6]. Verificando os dados colhidos junto ao Innocence Project, num total de 250 revisões, em aproximadamente 25% dos casos a falsa confissão foi um fator que contribui para a condenação.

Buscando investigar as espécies de falsas confissões, Saul M. Kassin e Lawrence S. Wrightsman identificam três hipóteses possíveis: a) a voluntária (voluntary); b) a condescendente (compliant); e c) a internalizada (internalized).

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A voluntária é aquela que ocorre sem qualquer pressão por parte da polícia, ou seja, o cidadão confessa falsamente a prática do crime de maneira espontânea. "Quando o filho de Charles Lindbergh foi sequestrado em 1932, estima-se que duzentas pessoas voluntariamente confessaram a prática do delito. Quando ‘Black Dahlia’ – atriz Elizabeth Short – foi assassinada em 1947, mais de cinquenta pessoas assumiram o crime. Em 2006, John Mark Karr confessou o então ainda não solucionado assassinato do jovem JonBenét Ramsey" [7].Trata-se de um tipo de confissão facilmente descartada diante da ignorância daquele que confessa quanto a aspectos e detalhes do crimes. Tais confissões ocorrem, acrescenta Kassin, por razões patológicas — para satisfazer uma necessidade compulsiva por atenção ou autopunição —; como resposta a um sentimento de culpa ou desilusão; ou, ainda, poderia ainda ser motivada racionalmente, por exemplo, objetivando ganhos tangíveis ou pelo desejo de proteger um parente, um filho ou outra pessoa.

As duas outras espécies de confissão — a condescendente e a internalizada — não ocorrem de maneira espontânea, pois são induzidas por um agente externo. Na confissão condescendente (compliant false confession), o suspeito se rende para escapar de uma situação estressante advinda da custódia; evitar ofensas corporais ou punições legais; ou, ainda, obter a promessa de uma recompensa implícita. Os incentivos podem abranger o fornecimento de comida, bebida, fazer uma ligação telefônica, descansar, ir para casa, ou, até mesmo fornecer drogas para aplacar crises de abstinência. Nessa hipótese, o suspeito, mesmo ciente da sua inocência, encontra-se num estágio de tal desespero que prefere obter um ganho momentâneo advindo da (falsa) confissão. "Innocente people, who know they are innocent, come to believe, under stress, that confession serves theier self-interest" [8].

A última hipótese de confissão, ou seja, a chamada internalized false confessions, é a considerada a mais difícil de entender. Nesse caso, um inocente, mas psicologicamente vulnerável, concorda em confessar sob efeito de uma confusão mental (e/ou falsas memórias) que o faz perder o controle da realidade e acreditar ter cometido o crime. Em alguns casos, a confissão é antecedida de falsas declarações de investigadores que atestem possuir uma prova definitiva que comprova a responsabilidade do suspeito, fato que contribui para que o agente passe a questionar a sua própria inocência. Trata-se de um tema que procuraremos abordar em um outro momento. Regressemos agora ao "The Central Park Jogger Case".

Em artigo publicado no New York Times, em novembro de 2002 [9], Saul Kassin aborda quais são os critérios que devem ser valorados para sopesar a confissão de um suspeito: Primeiro: existem fatores que podem indicar a probabilidade do uso de coerção para a extração da confissão? Nesse caso, é preciso ficar atento para a idade do suspeito, sua qualificação, sua capacidade e as condições em que está custodiado e como é realizado o seu interrogatório. Segundo: a confissão contém detalhes que são consistentes com outras provas, ou seja, compatível com os fatos que envolvem o crime e passível de conduzir a evidências desconhecidas pela polícia? Terceiro: a ação descrita guarda relação com circunstâncias que apenas poderiam ser conhecidas pelo próprio autor do crime? Tal questionamento é igualmente importante, pois, na medida em que os detalhes pormenorizados possam advir de outras fontes de prova, a confissão perde a sua força e não pode corroborar com a admissão de culpa.

Analisando as confissões obtidas no caso do Central Park — aqui destacamos o primeiro interrogatório de Korey Wise —, a princípio elas parecem ser voluntárias e ricas em detalhes. Porém, Kassin desmascara o quanto imitam com um drama hollywoodiano envolto num roteiro de fatos criminoso, ensaiado durante o interrogatório, dirigido pelo investigador e performado pelo suspeito [10].

O autor destaca a existência de sérios riscos de coerção, tais como: 1) a idade dos suspeitos — adolescentes com idade entre 14 e 16 anos são mais suscetíveis a manipulações e a concordar com a acusação quando comparados com pessoas mais experientes; 2) o tempo decorrido entre a detenção dos jovens e a gravação do vídeo — quando o vídeo foi gravado, os custodiados já haviam sido alternadamente interrogados por um período ininterrupto de 14 a 30 horas; 3) os interrogatórios filmados foram extremamente longos, alcançando uma a duas horas de duração. Além disso, existe certa dúvida se foi permitido aos pais terem acesso aos seus filhos antes e durante os interrogatórios, bem como, se promessas (explícitas ou implícitas) de liberdade foram feitas caso os adolescentes confessassem. Ademais, quando analisados, os interrogatórios evidenciam contradições e inconsistências que envolvem desde a maneira como a vítima teria sido agredida, o local a onde teria sido encontrada quando foi atacada, e até mesmo a roupa que usava, etc.

Como já destacamos acima, a força probatória de uma confissão deve ser mensurada a partir dos detalhes que apenas seriam de conhecimento do verdadeiro autor do crime. No caso, antes de ser interrogado, Korey Wise foi levado pelos policiais até a cena do crime e o investigador exibiu para ele fotos que mostravam a corpo da vítima. Esse tipo de conduta torna difícil concluir se aquilo que foi dito estava atrelado a um conhecimento direto ou foi estimulado por aquilo que presenciou após o crime ter ocorrido. Tais falhas, pontua Kassin, não impõem a conclusão de que as confissões são falsas, mas sim, que elas falham em corroborar a culpa.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos é enfática não apenas em garantir o direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), nem a declarar-se culpado (artigo 8.2.g), mas igualmente prescreve que a "confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza" (8.3 — grifos dos autores), ou seja, "só será válida se decorrer de manifestação livre e desimpedida da vontade, sendo necessariamente espontânea" [11].

Ainda hoje, a confissão exerce um poder inebriante e (muitas vezes) irreversível que cega outras possibilidades e ajusta-se como um balizador para a análise das outras provas que serão produzidas nos autos, servindo de instrumento para que promotores, juízes e jurados sustentem a condenação. "The confession has the power to corrput other evidence" — já pontou Kassin [12] — pois não apenas faz com que passemos a desprezar outras provas (até mesmo exames de DNA exoneratórios), mas ainda contribui para que o acusado seja mais facilmente reconhecido por testemunhas que até então poderiam ter dúvidas a respeito da autoria delitiva, ou seja, a confissão passa a ser o ponto de equilíbrio onde as demais provas são produzidas e valoradas.

Ademais, muitas pessoas internalizam a falsa percepção de que facilmente poderiam reconhecer uma falsa confissão quando se deparam com ela; e de que raramente alguém confessaria algo que não praticou. Por outro lado, não é incomum encontrarmos inocentes que, acreditando na justiça, abdicam de seus direitos constitucionais, em especial, a prerrogativa de permanecer em silêncio e de ter a assistência de um advogado quando do seu interrogatório. Tudo isso contribui para a necessidade urgente de estudarmos o tema e revisarmos possíveis dogmas para a melhor (e possível) reconstrução dos fatos que norteiam o delito.

 


[1] A vítima permaneceu no anonimato por mais de uma década até seu nome vir a público.

[2] De acordo com o Law Department de NYC, na noite do fato, dez pessoas foram vítimas de crimes diversos no Central Park.

[3] De fato, seis foram os adolescentes presos. Steven Lopez (15 anos), o sexto detido, acabou firmando um acordo com o Ministério Público, declarando-se culpado pela prática de um crime de roubo. Quando de sua prisão, Lopes ficou detido por cerca de 20 horas antes de ser ouvido. Os pais do adolescente foram chamados para presenciar o interrogatório, mas não conheciam a língua inglesa e nenhum tradutor foi disponibilizado para eles. Após duas horas e meia de interrogatório, o adolescente e seus pais assinaram uma declaração onde admitiam que Lopez teria praticado um roubo contra uma outra pessoa que também estava no parque. Lopez foi igualmente acusado pela violência sexual, mas um mês antes do seu julgamento ter início, aceitou uma proposta de acordo e restou condenado a quatro anos e seis meses de prisão. Nunca recorreu da sentença e cumpriu mais de três anos de prisão. Em julho de 2022 sua condenação foi anulada. Sobre o tema, sugerimos a leitura da reportagem feita Jonah E. Bromwich, publicada no NYT em 25/7/2022, disponível em: https://nyti.ms/3BTAxl0

[4] A vida de horror e sofrimento – de Reyes e suas vítimas – pode ser melhor entendida a partir da reportagem veiculada pelo The New York Times em 7/12/2022, disponível em https://nyti.ms/3BkpRuc, com acesso em 16/9/2022.

[5] Em 2014 condenados fecharam um acordo indenizatório que alcançou o valor de US$ 41 milhões.

[6] "Looking backward, I found that the false-confession phenomenon occurs on a regular basis but with unknown frequency; (…)". KASSIN, Saul. Duped. Why Innocent People Confess — and Why We Believe Their Confessions. Guilford, Connecticut: Prometheus Books, 2002, p. 26.

[7] Id.

[8] Id, p. 28.

[9] KASSIN, Saul. False Confessions and the Jogger Case. In: The New York Times. 1/11/2002.

[10] Id.

[11] PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina Girardi; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 148. "No caso Maritza Urrutia vs Guatemala, a Corte IDH explicitou a aplicabilidade das garantias dos arts. 8.2.g e 8.3 a procedimentos prévios ou concomitantes aos processos judiciais. Depois de levada a um centro de detenção clandestino do exército guatemalteco, a vítima foi forçada pelos militares a gravar um vídeo, no qual se identificava como membro de um grupo armado, que foi posteriormente transmitido em dois jornais televisivos. Também foi obrigada a participar de uma coletiva de imprensa na qual confirmou o conteúdo da gravação. Como foi coagida a declarar-se culpada 'no marco de atuações capazes de acarretar eventuais consequências processuais desfavoráveis a ela', a Corte entendeu violados arts. 8.2.g e 8.3". (Ibid, p. 148/149).

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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    é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

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