Opinião

A prevalência da democracia em tempos de provação

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22 de novembro de 2022, 9h03

Num regime democrático, a existência de mecanismos capazes de conter ataques aos seus pilares fundamentais é uma questão de autopreservação. No limite, está-se na fronteira de se garantir a própria existência da democracia e, com ela, dos direitos e garantias fundamentais que protegem todos os cidadãos. Supor que direitos como liberdade de manifestação e expressão possam ser usados para violar os princípios e o funcionamento democrático seria assumir que a democracia é de tal sorte frágil, que permitiria a sua própria autodestruição.

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Por certo, essa interpretação amplíssima das liberdades, a ponto de legitimar crimes e afrontas ao Estado democrático de Direito só é mesmo aceita por pequenos grupos que insistem em não aceitar as regras do jogo democrático.

A doutrina do Direito Constitucional é sólida e uníssona, em todo o mundo, ao afirmar que não há direitos absolutos. Por isso, são legítimas as manifestações populares, a liberdade de expressão e de reunião, desde que não atentem contra a própria democracia e o Estado de Direito.

Em situação de conflito entre princípios constitucionais, como a liberdade de manifestação e o regime democrático, por exemplo, faz-se uma ponderação considerando-se os elementos do caso concreto. O que se observa hoje é um recrudescimento dos ataques à credibilidade do sistema eleitoral, à alternância de poder, ao funcionamento das instituições democráticas — com pedidos de intervenção militar — e mesmo à vida e à integridade física de magistrados ou de quaisquer ocupantes de funções públicas que se ponham como obstáculo aos anseios golpistas.

Em contextos como esse, de ameaça declarada à ordem constitucional democrática, há prevalência, por certo, da própria preservação do Estado de Direito, podendo-se restringir manifestações que, criminosamente, atentem contra o regime democrático.

Não há guarida na Constituição para atos que preguem o fim do Estado democrático de Direito. Não há uma liberdade para incitar e cometer crimes ou para pregar o desrespeito às regras do jogo democrático.

Essas limitações, ao contrário do que inadvertidamente se prega, não são fruto de ativismo judicial ou abuso do Poder Judiciário. São previsões expressas presentes no ordenamento jurídico. A Constituição de 1988, ao estabelecer no inciso 44 do artigo 5º que "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático", já consagrou a intolerância com quaisquer ações que visem, ao cabo, desmontar o aparato institucional que hoje garante o exercício do poder em nome do povo.

Além disso, a Lei nº 14.197, sancionada em setembro de 2021, revogou a vetusta Lei de Segurança Nacional e definiu os crimes contra o Estado Democrático de Direito. Assim, tentativas violentas de abolição do Estado democrático de Direito, visando impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais, bem como a tentativa de depor governo legitimamente constituído são crimes previstos no Código Penal Brasileiro.

Da mesma forma, a apologia ao nazismo é crime no Brasil e se enquadra na Lei nº 7.716/1989, que prevê pena de reclusão para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional e para quem comercializar ou veicular ornamentos que utilizem a cruz suástica, para fins de divulgação do nazismo.

Portanto, medidas de contenção e sanção a atos criminosos que atentem contra o resultado das eleições e contra as instituições democráticas são legítimas e necessárias, sobremaneira diante de ameaças reais e ainda em curso, mesmo que minoritárias.

O paradoxo da tolerância, teoria cunhada por Karl Popper em sua obra "The Open Society and Its Enemies", publicada em 1945, ganha aqui pertinente relevo. Segundo definiu o filósofo, na democracia, não pode haver tolerância para os intolerantes. Ele afirma que a "tolerância ilimitada culminará no desaparecimento da tolerância". "Se estendermos a tolerância ilimitada até para aqueles que são intolerantes […], então os tolerantes serão destruídos, e, junto com eles, a tolerância."

Vivemos tempos de ódio, em que se alimenta a polarização política e a lógica do "nós" contra "eles", da existência de inimigos internos que precisam ser aniquilados para o bem da nação. Essa lógica é nefasta e deletéria para a permanência de uma sociedade democrática, calcada no pluralismo, na diversidade, na dignidade humana, na liberdade e na igualdade — que inclui o respeito às diferenças.

Em última instância, o ódio e o ressentimento como ferramentas políticas minam o desenvolvimento social e econômico do país, pois impedem que atores com posições divergentes — transformados em inimigos mortais — sentem à mesa, dialoguem e negociem estratégias e saídas para os principais problemas brasileiros: o desemprego, a inflação, a volta da fome, a estagnação econômica etc.

O Brasil precisa de pacificação e diálogo, para que possamos alinhar os consensos e conviver com os dissensos, superar o ressentimento e somar esforços para a superação dos nossos graves problemas. É somente assim que uma grande nação pode olhar para o futuro: com diálogo, respeito mútuo e, sobretudo, com observância intransigente dos valores e princípios democráticos.

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