Limite Penal

O erro lógico da prisão automática no júri: Tema 1.068 do STF

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

11 de novembro de 2022, 8h00

1. Este artigo aborda a controvérsia sobre o Tema 1.068 (STF, RExt. 1.235.340, relator: ministro Roberto Barroso), assim estabelecida: "saber se a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de pena imposta pelo Conselho de Sentença".

2. O voto do ministro Roberto Barroso, na linha do julgamento proferido, por maioria, no Habeas Corpus 118.770, em 7/3/2017, sustenta que:

"Direito Constitucional e Penal. Habeas Corpus. Duplo Homicídio, ambos qualificados. Condenação pelo Tribunal do Júri. Soberania dos veredictos. Início do cumprimento da pena. Possibilidade.

1. A Constituição Federal prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (art. 5º, inciso XXXVIII, d). Prevê, ademais, a soberania dos veredictos (art. 5º, inciso XXXVIII, c), a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular.

2. Diante disso, não viola o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso. Essa decisão está em consonância com a lógica do precedente firmado em repercussão geral no ARE 964.246-RG, rel. min. Teori Zavascki, já que, também no caso de decisão do Júri, o Tribunal não poderá reapreciar os fatos e provas, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri.

3. Caso haja fortes indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos, hipóteses incomuns, o Tribunal poderá suspender a execução da decisão até o julgamento do recurso.

4. Habeas Corpus não conhecido, ante a inadequação da via eleita. Não concessão da ordem de ofício. Tese de julgamento: 'A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade".

Spacca
3. Constou do voto do ministro Roberto Barroso:

"O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO — Presidente, também, aqui, pedindo vênia, tenho uma posição diferente da posição de Vossa Excelência, entendo que em julgamentos pelo Tribunal do Júri, em princípio, prevalece a soberania do Júri. Houve uma decisão: duplo homicídio, condenação a vinte cinco anos de reclusão em regime inicial fechado. Portanto penso que aqui não há arbitrariedade na manutenção no regime de prisão, ainda quando pendente a apelação. […] enquanto não desfeita a condenação pelo Júri, prevalece a decisão soberano do Júri. É o que diz a Constituição. Deste modo, o Tribunal sequer pode ele próprio desfazer ou refazer aquela decisão”. […] 'Não, é até possível, mas como é julgamento pelo Júri, a apelação não pode sequer substituir a decisão do Júri, pode, no máximo, determinar a realização de novo Júri. Portanto, em respeito ao princípio constitucional da soberania do Júri, acho que deve prevalecer a sua decisão". (p. 8).

4. A Tese apresentada é: "A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade".

5. A análise crítica a seguir aborda duas perspectivas: (a) lógica: das inferências realizadas com o suporte normativo da Constituição; e, (b) funcional: o pano de fundo do lugar e da função do STF no que se denomina de Medidas Estruturantes.

6. Cezar A. Mortari define: "Lógica é a ciência que estuda princípios e métodos de inferência tendo o objetivo principal de determinar em que condições certas coisas se seguem (são consequência), ou não, de outras" [1]. Por isso, a análise primeira consiste em determinar se os argumentos (premissas) invocados na Tese suportam as conclusões apresentadas.

7. Do ponto de vista topológico do Ordenamento Jurídico, as normas invocadas são do mesmo patamar constitucional, situadas no artigo 5º, sob o domínio dos "Direitos e Garantias Fundamentais":

(a) Soberania dos Veredictos (artigo 5º, XXXVIII, "c": é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida); e,

(b) Presunção de Inocência (artigo 5º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória).

8. A análise deve se orientar pelo pressuposto de que os incisos declaram "Direitos e Garantias Fundamentais" que devem ser correlacionados de modo coerente e consistente, isto é, sem contradição e de modo a compor unidade lógica da diretriz Constitucional. Aliás, J. J. Gomes Canotilho é claro sobre o dever de: "considerar a Constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar". (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998).

9. No julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade 43, 44 e 54, em longo acórdão (489 páginas), proferido em 7/11/2019, os ministros deliberaram pela prevalência da "Presunção de Inocência" [2], ainda que equivocadamente igualado ao da não-culpabilidade, em ementa da lavra do ministro Marco Aurélio:

"PENA – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE. Surge constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, a condicionar o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, considerado o alcance da garantia versada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, no que direciona a apurar para, selada a culpa em virtude de título precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da sanção, a qual não admite forma provisória".

10. A decisão reverteu o julgamento operado no Habeas Corpus 126.292, ministro Teori Zavaski, julgado em 17/2/2016. em que as razões então prevalecentes, assumiram a possibilidade de que a cognição sobre a premissa fática se exaure no regime recursal ordinário, restringindo a eficácia suspensiva do Recurso Especial e do Recurso Extraordinário. A consequência foi a eficácia imediata da decisão condenatória, denominada genericamente de "prisão em segunda instância".

11. Entretanto, a partir da constitucionalidade do artigo 283 do CPP (Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva), retomou-se o padrão estabelecido quando do julgamento do Habeas Corpus 84.078, da lavra do ministro Eros Grau, operado em 5/2/2009: "a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar".

12. Pode-se concluir a orientação de que a prisão cautelar no domínio do Processo Penal ocorre nas modalidades (a) cautelar (flagrante, preventiva ou temporária); e, (b) sentença condenatória transitada em julgado.

13. O ponto crucial é o do "estado do acusado". Do ponto de vista lógico o acusado somente pode assumir dois estados: (a) inocente; ou, (b) culpado. É que a lógica clássica rejeita o "terceiro excluído", como, aliás, sublinhou o ministro Marco Aurélio:

"Repito: o princípio constitucional da não culpabilidade pressupõe, para ter-se o início do cumprimento da sanção, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória — a revelar a existência de pronunciamento precluso na via da recorribilidade. Ante o princípio do terceiro excluído — uma coisa é ou não é, não havendo espaço para o meio termo —, ou bem se tem título alcançado pela preclusão maior a autorizar a execução da pena, ou não se tem, sendo forçoso reconhecer a natureza provisória da execução daí decorrente – quadro discrepante, a mais não poder, do versado no preceito cuja redação não vai além de reproduzir o previsto no texto constitucional. Revela-se impróprio, presente a garantia estampada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, cogitar da existência de terceiro grupo a partir de argumentos metajurídicos, os quais não seduzem a ponto de suplantar, no controle objetivo de constitucionalidade, a literalidade da norma" (p. 37-38).

14. Diante dos valores de verdade logicamente assumidos pela Constituição, o acusado preserva o "estado de inocência" até o ponto de inflexão, ou seja, a causa da alteração do estado de inocente para culpado, demarcado pelo "trânsito em julgado" descrito na LINDB "Art. 6º, § 3º — Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso" (Lenio Streck e Alexandre Morais da Rosa — aqui) [3]. É que se o fluxo processual ainda não se finalizou, com a possibilidade de interposição de recursos (ordinários — CPP, artigo 593 —, especial ou extraordinário), do ponto de vista lógico, ausentes atributos constitutivos do conceito vigente de trânsito em julgado.

15. Segue-se a ausência de solidez, a partir das normas constitucionais e do conceito de "coisa julgada", da atribuição do valor de verdade à premissa de que a "autonomia dos veredictos" declarada pelo artigo 5º, XXXVIII, "c", exclui a incidência do artigo 5º, LVII (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória). É que a "autonomia dos veredictos" se orienta à intangibilidade da reavaliação dos critérios utilizados pelos jurados, isto é, o tribunal, ao analisar o recurso, está limitado quanto à cognição vertical adotada pelos jurados. Nem mais, nem menos. Em consequência, o lugar e a função da "autonomia dos veredictos" é a de limitar a função "substitutiva" do órgão recursal, impedindo que o tribunal reverta o "conteúdo do veredicto".

16. A validade da premissa (prisão imediata) somente poderia ser aceita com a extrapolação dos limites do espaço demarcado pelo art. 5º, XXXVIII, da CR, porque ao "reconhecer" a instituição do júri, o constituinte declarou também que a regulamentação seria objeto de lei, "assegurados": (a) a plenitude de defesa; (b) o sigilo das votações; (c) a soberania dos veredictos; (d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Em nenhum momento, embora pudesse, o Constituinte estabeleceu regra especial quanto à eficácia imediata das sentenças condenatórias. no subdomínio do Tribunal do Júri. Se não o fez, o disposto no artigo 5º, LVII da CR (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória) prevalece. Até porque, do ponto de vista da coerência e da consistência, necessariamente ao final do artigo 5º, LVII, deveria existir uma vírgula, seguida da declaração "salvo nos casos dos crimes dolosos contra a vida". A ausência de qualquer exceção, por definição, exige a incidência da norma geral e abstrata.

17. Considerados os pontos acima, a regra do artigo 492, I, do CPP, é incompatível com o artigo 5º, LVII, da CR, nos limites declarados pelo STF no julgamento das ADCs 43, 44 e 54, ou seja, cuida-se de garantia da autoridade da "coisa julgada" estabelecida pelo próprio STF.

18. Ainda que pouco difundida, denomina-se de Medidas Estruturantes a assunção pelo Poder Judiciário brasileiro de funções distintas das atribuídas no sistema civil law comparado a outros arranjos institucionais, especialmente o norte-americano [4]. A questão se associa às tradições do sistema jurídico (common law e o civil law), cujo comércio de institutos é cada vez mais operante [5]. Em consequência, diante da lentidão do Poder Legislativo, da obsolescência normativa e do protagonismo do Poder Judiciário, constata-se a autoconcessão de poderes pelo próprio STF para o fim de promover modificações estruturais em paralelo ao "devido processo legislativo" [6]. O exemplo apresentado por Polliana Corrêa Morais é o do julgamento do Habeas Corpus 124.306, da relatoria do ministro Roberto Barroso, em que se reconheceu o direito à interrupção da gravidez até o terceiro mês.

19. Para o que nos interessa no momento, não é exagero afirmar que existe um preconceito jurídico em relação a liberdade no processo penal, pois o tensionamento constante entre o poder de punir e o direito de liberdade sempre foi desequilibrado. A sanha punitivista aliada a uma estrutura processual autoritária e inquisitória, ainda fundada no Decreto Lei 3689 — CPP de 1941 (em plena ditadura militar) — sempre conspiraram para que a liberdade fosse — processualmente falando — uma exceção. Tanto que até a liberdade no CPP é adjetivada de "provisória". É verdade que existiram subidas e descidas nessa gangorra, oscilando entre as mais duras restrições com momentos de maior respeito à liberdade, mas no geral a situação sempre foi muito mais punitivista do que propriamente libertária. Nem mesmo as reformas pontuais foram capazes de mudar o rumo do vento, prestando-se muito mais para manutenção do que propriamente a ruptura da matriz ideológica do CPP.

20. A muito custo foi sendo construída — ainda que uma obra inacabada e com constantes infiltrações — uma teoria das prisões cautelares, fincada na necessidade de demonstração do "fumus comissi delicti" e do "periculum libertatis" (e foi uma luta romper com a matriz da teoria geral do processo e abandonar as inadequadas categorias de "fumus boni iuris" e "periculum in mora"…), bem como na estruturação de uma principiologia que tentasse criar condições de coexistência da presunção de inocência com a prisão preventiva ou temporária. Tudo isso para que a prisão cautelar fosse uma exceção, reservada para situações extremas, verdadeira "ultima ratio" do sistema processual, com curta duração e comedimento no seu uso e manutenção.

21. Mas tudo isso é uma luta constante, com mais retrocessos do que avanços, em um país como o nosso. Não foram poucas as tentativas de criar "prisões preventivas obrigatórias", verdadeiras monstruosidades processuais com um paradoxo existencial insuperável. Isso inicia com a Lei 8072/1990, que pretendeu criar uma prisão em flagrante que prendesse por si só, na medida em que inicialmente vedava a concessão de fiança e liberdade provisória. Um duplo absurdo: desconsiderar que a prisão em flagrante não é uma prisão cautelar, mas pré-cautelar e precária; e criar uma prisão em flagrante que se prolongasse no tempo, mantendo alguém preso independente da decretação da prisão preventiva, vedando a concessão de fiança e liberdade provisória (posteriormente, com bastante atraso, foi considerada inconstitucional pelo STF a vedação de concessão de liberdade provisória).

22. No fundo, existe uma imensa falta de respeito em relação a presunção de inocência, erroneamente considerada por alguns como mera "presunção de não culpabilidade", dada a força da mentalidade autoritária que conduz a uma visão completamente distorcida. Exemplo mais significativo desse sobe e desce do autoritarismo processual foi o período 2016-2019, entre a absurda decisão proferida pelo STF no HC 126.292 autorizando a execução antecipada da pena após a decisão de segundo grau e o julgamento das ADCs 43, 44 e 54 que declararam a constitucionalidade do artigo 283 do CPP e, por consequência, a inconstitucionalidade da prisão antecipada, sem natureza cautelar (ou seja, fora dos casos em que tem cabimento a prisão preventiva ou temporária).

23. E quando todos esperávamos que o artigo 5º, LVII da Constituição finalmente "constituísse-a-ação" e a cabeça dos legisladores, atores judiciários e tribunais brasileiros, veio o famigerado artigo 492, I, "e" inserido pela Lei 13.964/2019, com a possibilidade de execução antecipada da pena quando o réu fosse condenado no júri, a uma pena igual ou superior a 15 anos. Uma monstruosidade irracional, flagrantemente inconstitucional, que permite a execução da pena em primeiro grau. E o pior, a condenação em primeiro grau pelo tribunal do júri, com todos os complicadores e problemas do júri brasileiro (aqui; entrevista Lenio Streck e Aury Lopes Jr aqui).

24. Mas, como diz o provérbio popular, nada está tão ruim que não possa piorar…, retoma-se a primeira parte do artigo. O Recurso Extraordinário 1.235.340, rel. min. Roberto Barroso, teve repercussão geral reconhecida, sendo proposta a seguinte tese: "A soberania dos veredictos do tribunal do júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada".

25. Inacreditavelmente, não só pela violação escancarada da presunção de inocência, mas também pela absoluta irracionalidade da decisão, que contraria toda a complexa construção principiológica das prisões cautelares que permite a difícil coexistência com a garantia constitucional e convencional da presunção de inocência, a tese está em debate, com destaque para o plenário. A tese do STF é ainda pior do que o famigerado artigo 492, I, do CPP, na medida em que deixa de lado o limite de pena, mas ainda assim constitui um gravíssimo retrocesso jurídico, constitucional e civilizatório, pois:

É incorreta a afirmação de que o sistema brasileiro adotou a presunção de não culpabilidade e não a presunção de inocência. Essa é uma concepção ultrapassada que desconsidera o disposto no artigo 8.2 da CADH e faz uma leitura bastante reducionista do artigo 5º, LVII, da CR. Ademais, a CR adota — expressamente — o trânsito em julgado como marco para a perda da presunção de inocência (cláusula pétrea). Também viola o marco constitucional do trânsito em julgado. O parecer de Geraldo Prado aprofunda a questão (aqui)

Se o STF já reconheceu ser inconstitucional a execução antecipada após a decisão de segundo grau, com muito mais razão é inconstitucional a execução antecipada após uma decisão de primeiro grau (o tribunal do júri é um órgão colegiado, mas integrante do primeiro grau de jurisdição).

Da decisão do júri cabe apelação em que podem ser amplamente discutidas questões formais e de mérito (CPP, artigo 593), inclusive com o tribunal avaliando se a decisão dos jurados encontrou ou não abrigo na prova, sendo um erro gigantesco autorizar a execução antecipada após essa primeira decisão.

Tanto a instituição do júri como a soberania dos jurados estão inseridos no rol de direitos e garantias individuais, não podendo servir de argumento para o sacrifício da liberdade do próprio acusado, até porque incidem em espaços e lugares distintos (não se confundem, nem se sobrepõem).

Ao não se revestir de caráter cautelar, sem, portanto, analisar o periculum libertatis e a necessidade efetiva da prisão, se converte em uma prisão irracional, desproporcional e perigosíssima, dada a real possibilidade de reversão já em segundo grau (sem mencionar ainda a possibilidade de reversão em sede de recurso especial e extraordinário).

A soberania dos jurados não é um argumento válido para justificar a execução antecipada, pois é um atributo que não serve como legitimador de prisão, mas sim como garantia de independência dos jurados. É uma proteção dos jurados e de quem por eles está sendo julgado, no sentido de que os julgadores podem decidir sem obrigação de corresponder as expectativas populares, sociais ou mediáticas criadas, além de dar suporte para outra regra: a da íntima convicção, que isenta os jurados do dever de fundamentação das decisões (que é uma regra para todo e qualquer ato jurisdicional). A soberania impede que o órgão recursal possa "substituir" o conteúdo da decisão dos jurados.

Por fim, é incompatível com o disposto no artigo 313, § 2º, que expressamente prevê que "não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena" e também com o artigo 283 (já declarado constitucional pelo próprio STF nas ADCs 43, 44 e 54).

Daí que se a "soberania dos veredictos" nada tem a ver com a "presunção de inocência" (ou mesmo não-culpabilidada, caso queiram), a utilização retórica do argumento é inválida (ausência de solidez e correção lógica). A validação por meio das Medidas Estruturantes, no contexto, encontra-se fora do espaço de atribuição de sentido ao artigo 5º, LVII, da CR.

26. Vale destacar o voto do ministro Celso de Mello no HC 174.759-MC:

"Não cabe invocar a soberania do veredicto do Conselho de Sentença, para justificar a possibilidade de execução antecipada (ou provisória) de condenação penal recorrível emanada do Tribunal do Júri, eis que o sentido da cláusula constitucional inerente ao pronunciamento soberano dos jurados (CF, art. 5º, XXXVIII, 'c') não o transforma em manifestação decisória intangível, mesmo porque admissível, em tal hipótese, a interposição do recurso de apelação, como resulta claro da regra inscrita no art. 593, III, 'd', do CPP."

27. Enfim, por qualquer ângulo que se olhe, a tese firmada pelo STF constitui um grave retrocesso civilizatório, processual e constitucional. Ao contrário do discurso populista, não é uma prisão automática, despida de qualquer caráter ou necessidade cautelar e proferida antes do trânsito em julgado e por um órgão de primeiro grau (com diversos problemas estruturais) que vai acabar com a impunidade ou mesmo diminuir o número de delitos de homicídio. Esse é um discurso falacioso, como tantos outros da mesma matriz autoritária e punitivista, mas que infelizmente cobra um preço altíssimo em cada prisão desnecessária e em cada julgamento do júri cuja sentença venha a ser reformada em grau recursal. E serão muitos.

28. Para o fim de deliberamos, do ponto de vista interno, sem iniciativas "estruturantes", sobre a tese "a Constituição autoriza a eficácia imediata das decisões condenatórias do Plenário do Júri", as referências aos casos concretos (bárbaros) devem ser afastadas por configurarem argumentos da retórica emotiva (Clarissa Diniz Guedes e Marcella Mascarenhas Nardelli – aqui). O enquadramento é lógico racional sobre as premissas lógicas do conclusão ofertada, isto é, "se" das premissas apresentadas "segue-se" a conclusão apresentada. O desfecho representado pela "tese" é o ponto de chegada do raciocínio que deve ser suportado por argumentos sólidos e corretos, aptos a justificar a atribuição de relação de causalidade entre as premissas (argumentos) invocados. Então, se o argumento da "soberania dos veredictos" não se associa, nem excepciona, a garantia fundamental da "Presunção de Inocência" (CR, art. 5º, LVII), a conclusão formulada na "tese" é inválida do ponto de vista lógico-constitucional (não se sustenta).

29. Por isso, a tese contrária apresentada pelo ministro Gilmar Mendes, no julgamento do RExt. 1.235.340, sustenta-se:

"A Constituição Federal, em razão da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito ao recurso ao condenado (art. 8.2.h) vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do art. 312 CPP, pelo Juiz-Presidente e a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos Jurados."

30. A nossa conclusão é a de que: "A 'presunção de inocência' é garantia constitucional independente da garantia da 'soberania de veredictos', sem vínculo lógico-constitucional apto ao autorizar a execução imediata da sentença condenatória do Tribunal do Júri" (em observância à "coisa julgada" proferida pelo STF, ADCs 43, 44 e 54). Em consequência, o artigo 492, I, do CPP, é inconstitucional.

O cenário atual do presente julgamento é preocupante, pois a favor da tese (da execução antecipada) já temos os votos do relator (ministro Barroso) e dos ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia. Votaram contra, por enquanto, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. O julgamento está suspenso pelo pedido de vista do ministro André Mendonça. Se levarmos em considerações votos e posições externadas no passado pelos ministros que faltam votar, o cenário é apavorante, pois tudo indica que a tese da absurda execução antecipada da sentença condenatória de primeiro grau, proferida pelo tribunal do júri, tende a ser acolhida. Tomara que estejamos errados. Aguardemos o retorno da vista…

 


[1] MORTARI, Cezar A. Introdução à Lógica. São Paulo: UNESP, 2001, p. 2.

[2] MORAES, Maurício Zanóide de. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura v normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2022; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal Estratégico. Florianópolis: EMais, 2021.

[3] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Eureka. Lei conceituou coisa julgada e não se sabia. https://www.conjur.com.br/2019-dez-31/streck-morais-rosa-eureka-lei-conceituou-coisa-julgada-nao-sabia: "Abrimos rapidamente o celular e estava lá: 'Art. 6º, § 3º – Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso". Bingamos. Quer algo mais simples do que o conceito de coisa julgada ali posta? […] Pena se cumpre após coisa julgada. Se a coisa (culpa) não foi definitivamente julgada, porque cabe recurso, há coisa não julgada, na qual cabe prisão cautelar e não definitiva. No cível, em que os direitos são disponíveis, há requisitos para execução antecipada. Em todos os casos, os processualistas sublinham a necessidade da reversibilidade do mundo da vida. Mas no processo penal, não se reverte liberdade porque a linha do tempo segue para o futuro.

[4] JOBIM, Marco Félix. Medidas estruturantes: da Suprema Corte Estadunidense ao Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013; MORAIS, Polliana Corrêa. A utilização das Medidas Estruturantes pelo Supremo Tribunal Federal: um estudo de caso. Florianópolis: EMais, 2018.

[5] ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na Mundialização: a nova revolução do Direito. Trad. Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2006.

[6] CATTONI, Marcelo. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!