Limite penal

Impacto emocional de vídeos dramatizados sobre júri popular

Autores

  • Clarissa Diniz Guedes

    é professora associada da UFJF vice-coordenadora do mestrado em Direito e Inovação da UFJF doutora em Direito pela USP e pesquisadora de pós-doutorado pela USP.

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

19 de agosto de 2022, 13h26

O controle judicial sobre a admissibilidade de provas com baixa qualidade epistêmica e capazes de causar engano, suscitar preconceitos ou invocar sentimentos hostis nos jurados já foi discutido nesta sede em algumas oportunidades (ver, por exemplo, aqui e aqui). A ideia defendida é que o júri deve decidir a partir de uma base informativa segura e confiável. A principal preocupação, nesse contexto, é evitar submeter à sua apreciação provas que apresentem informações pouco confiáveis ou de forte apelo sentimental, cujo potencial persuasivo acabe por suplantar seu efetivo valor probatório.

Spacca
Como é sabido, os sistemas de civil law —cuja tradição é moldada em torno do paradigma do juiz profissional como julgador dos fatos (factfinder) — não trabalham com o risco de sugestionamento (mesmo quando se trata de juízes leigos) na mesma intensidade que os ordenamentos de common law: não é da tradição continental excluir as provas que possam gerar confusão ou propensões indevidas sobre os julgadores (prejudices). Enquanto na dinâmica do júri da common law o juiz exerce um papel de paternalismo diante dos jurados, a fim de selecionar e avaliar as provas que podem ser submetidas à sua apreciação, na civil law é depositada grande confiança na capacidade do julgador profissional de desconsiderar provas suspeitas e de baixa fiabilidade. A expectativa de uma imunidade a esses efeitos fica evidente pela inexistência de paralelo à classe de limitações probatórias anglo-americanas típicas, voltadas para estabelecer critérios de admissibilidade.[1] Daí porque aquilo que é considerado, por vezes, uma questão de admissibilidade probatória na common law, se consubstancia em uma questão de força probante na civil law, a ser analisada no momento da valoração da prova[2] — e essa lógica acaba valendo também para o júri.

Contudo, há casos em que o risco representado pela prova de baixo potencial epistêmico compromete seriamente o status da inocência. No caso da prova em vídeo — sobretudo quando há elementos ilustrativos associados à reconstrução do fato — a capacidade epistêmica pode ser comprometida pelo impacto emocional do vídeo, somado à dificuldade de dissociação entre ficção e realidade.

O tema é de extrema relevância, pois a evolução tecnológica propicia, a partir das diversas formas de captação ambiental, a gradativa substituição da prova testemunhal — atualmente predominante no processo criminal — pela prova em vídeo. Essa substituição é inevitável e ocorrerá não apenas no plano quantitativo, mas, também, por razões óbvias, no plano qualitativo. Sob diversos aspectos, o vídeo é uma forma de registro mais abrangente e mais robusta dos fatos que a memória humana ou, ainda, que o documento escrito.

Por outro lado, os registros audiovisuais apresentam peculiaridades ainda inexploradas — e, possivelmente, desconhecidas — no âmbito do processo criminal.

Como dissemos nesta coluna, a prova em vídeo possui forte impacto emocional sobre os julgadores: muitas vezes, o vídeo é confundido com a própria testemunha ocular (the silent witness)[3] e desempenha papel central no contexto probatório. E, como as pessoas tendem a crer no que veem, a ausência de um controle epistêmico do vídeo, a partir da compreensão das possíveis distorções de percepção e interpretação, poderá conduzir a condenações criminais cuja premissa fático-probatória esteja seriamente comprometida.

Nesse sentido, quando o vídeo capta o próprio momento do crime, através de câmeras de segurança, de smartphones ou de câmeras acopladas aos uniformes policiais, deve haver uma preocupação especial com a interpretação do conteúdo, sem embargo da verificação de questões como eventual alteração da mídia, preservação dos registros da cadeia de custódia etc.

Porém, a análise dos — escassos — acórdãos do STJ que envolvem a prova em vídeo (para efeitos de demonstração de autoria ou materialidade do crime) traz à tona uma realidade ainda mais instigante: a utilização de vídeos, no tribunal do júri, que contêm narrativas teatrais sobre o crime, sem necessariamente captá-lo.

A questão não é nova, e já foi alvo de considerações pela doutrina estadunidense a propósito do tema. Em ensaio clássico sobre a utilização do vídeo como prova,[4] Jessica Silbey contrapõe, de um lado, os vídeos ilustrativos ou explicativos, tais como documentários, encenações e reconstituições dos fatos (ilustrative evidence), e, de outro, os vídeos que registram o próprio fato, os quais, na opinião da autora, devem ser tratados como provas substanciais (substantive evidence). Em ambos os casos — seja o vídeo prova ilustrativa ou substancial —, a autora demonstra que o conteúdo do vídeo depende, invariavelmente, do olhar do cinegrafista.

Um dos exemplos utilizados por Silbey traduz claramente a dificuldade de se dissociar o vídeo da perspectiva daquele que o produz. Trata-se da discussão sobre o caráter tendencioso ou não de um filme produzido e narrado por um agente policial na cena do crime de homicídio. [5] Na hipótese, apesar de o fato criminoso não ter sido registrado, a filmagem recaiu sobre os vestígios do próprio crime — mais precisamente, sobre o cadáver da Sra. Cromwell. De acordo com o relato de Silbey, o homicídio foi praticado durante um roubo à casa da vítima, e um dos assaltantes teria confessado a prática do ato. O outro assaltante —Nicholas Albert — teria tomado conhecimento do fato posteriormente. Ambos os acusados alteraram a cena do crime com o intuito de confundir a polícia: despiram a vítima e a amarraram à cama, na intenção de fazer parecer que se tratava de um crime sexual. [6]

Na apelação, o segundo réu — Nicholas Albert — argumentou que o vídeo era mais prejudicial do que demonstrativo, e que teria sido a principal causa de sua condenação. Tratava-se de um vídeo grotesco, que mostrava o cadáver da vítima, nu, sobre a cama. Além disso, num intervalo de 12-15 minutos, o filme focava nas partes íntimas da vítima, e comunicava, em alto e bom som, o horror e o fascínio do policial pela nudez da sra. Cromwell.[7]

A Corte de Apelação considerou suficiente a exclusão da "narrativa opinativa" do policial — exibição do vídeo sem o áudio — para evitar influência indevida sobre os jurados, sem levar em conta a irrelevância da própria cena para a apuração da culpa de Nicholas Albert. No caso, a autora questiona se o caráter perturbador do vídeo, associado à circunstância de que a nudez da vítima não acrescia qualquer dado fático relevante ao processo, não deveriam ter conduzido à exclusão da prova. Afinal, tratava-se de uma situação de roubo mal sucedido, em que as circunstâncias do assassinato já estavam demonstradas pela perícia, pelas fotografias e pela confissão do primeiro acusado. Silbey demonstra, também, que o conteúdo opinativo da prova não se limitava à narrativa oral do policial contida no vídeo. A história de violência deliberadamente construída a partir do ponto de vista do policial permeava toda a filmagem: o foco, os ângulos, o movimento da câmera.[8]

O exemplo dá a dimensão da profundidade das reflexões sobre o impacto que o vídeo pode causar nos jurados, mesmo quando a filmagem se situa na própria cena do crime.

No Brasil, situação semelhante envolvendo a exibição ao júri de vídeo contendo narrativa opinativa e emocional a retratar a cena do crime foi levada aos tribunais. Tratava-se de homicídio na condução de veículo que vitimou cinco pessoas de uma mesma família, causado por dois motoristas disputando um "racha". A defesa alegou que "a gravação foi feita por um cinegrafista amador, que chegou ao local logo depois do acidente e que se encontrava emocionado e perturbado pela cena de horror", de modo que "narra a cena como acusador e juiz, concluindo pela culpa dos acusados". Nesse sentido, requereu que os jurados fossem alertados pela juíza de que o vídeo a ser exibido pela promotoria "continha opiniões emotivas e parciais", o que foi indeferido sob o argumento de que tal alerta "tornaria para os jurados irrelevante a prova produzida pela acusação"[9].

No entanto, a própria exclusão do vídeo não chegou a ser questionada, o que reflete a já mencionada tradição inclusiva dos sistemas romano-germânicos. No júri brasileiro, a única preocupação da lei em assegurar certa cautela quanto ao apelo persuasivo sobre os jurados é a que se refere às limitações argumentativas impostas no momento dos debates, mas não com relação à prova que se pretenda produzir.

Os acórdãos extraídos do STJ vão além: permitem o ingresso, no processo criminal, de vídeos de programas televisivos em que os crimes são encenados por atores profissionais.[10] Em ambos os julgados, o pedido de suspensão da exibição do vídeo no plenário do júri foi indeferido ao argumento de que o conteúdo não configuraria prova surpresa, porque previamente periciada a fita e passível de debate em contraditório. Considerou-se que a "simples exibição do vídeo" não induziria a parcialidade dos jurados.

Num dos casos, o voto condutor do acórdão reconhece expressamente a teatralidade do vídeo, acolhendo o parecer da Sub-Procuradoria Geral da República no sentido de que tal encenação teria "o mesmo efeito jurídico de um testemunho, pois o que será oferecido aos jurados é uma versão dos fatos". No aludido parecer, transcrito no voto do relator, afirma-se que "Cabe à defesa, contrapondo-se ao tom 'dramático e fantasioso da acusação', dar aos fatos o colorido que entende ser correto." Em conclusão, argumenta-se que "essa é a encenação própria de um júri, cada um dando a sua própria versão aos fatos, defendendo as suas teses, dando aos jurados todos os elementos que precisam para decidir com justiça."[11]

Veja-se que no júri brasileiro o apelo emocional acaba sendo considerado elemento próprio da dinâmica do juízo popular, quando o raciocínio deveria ser o oposto. Como não são explicitados os fundamentos da decisão dos jurados, justifica-se ainda mais a preocupação com o controle da qualidade epistêmica do conjunto probatório, ao invés de se abrir espaço para o reforço desse subjetivismo.

Como se observa dos poucos julgados dos tribunais superiores que tratam da prova em vídeo, não apenas a dificuldade de dissociação entre o impacto emocional causado pelos elementos fictícios do vídeo e a realidade são ignorados, como se admite expressamente o apelo a artifícios que extrapolam a finalidade epistêmica deste meio de prova.

A bem da verdade, os julgados desconsideraram algumas questões importantes sobre a qualidade epistêmica do vídeo não apenas na perspectiva do júri popular, mas que seriam aplicáveis a qualquer julgamento. Não se aprofundou, por exemplo, a questão relativa ao impacto emocional das cenas do vídeo, que, embora não constituam um registro do acontecimento em si, geram em qualquer espectador a sensação de o estar testemunhando ou dele participando, como, inclusive, admitem os próprios julgadores.[12] É preciso considerar que dificilmente um filme, documentário ou representação teatral sobre o fato criminoso, ainda quando periciado, possui condições de se submeter ao contraditório durante a formação da prova e, mesmo, ao contraditório posterior, incidente sobre a prova já realizada. Incidindo a perícia — e, até mesmo, eventual inquirição de testemunhas — sobre a produção pronta e acabada do registro audiovisual, sobretudo por se tratar de um trabalho artístico, torna-se impossível o falseamento das informações extraídas de fontes reais ou pessoais de prova, o que coloca em xeque a acurácia dos fatos narrados no vídeo, a fidelidade dos diálogos e, até mesmo, a capacidade de transmitir adequadamente as emoções das pessoas envolvidas. O debate a posteriori sobre a produção artística não fornece aos espectadores — e aos julgadores — as necessárias condições para distinguir minimamente entre realidade e ficção.

Tudo isso impacta na aptidão epistêmica deste vídeo, pois, mesmo que se possa equipará-lo[13] à reconstituição do crime ou a uma forma de memória —  semelhante, mas não idêntica à prova testemunhal —, não terá incidido o contraditório na sua formação. Logo, não terá havido controle sobre as fontes de prova, com a possibilidade de dissociação entre fantasia e realidade.

Diante disso, cabe refletir até que ponto a licença artística para "incrementar" a realidade numa peça literária, num filme ou mesmo num documentário elaborados com a finalidade de entretenimento ou veiculação jornalística não contaminam a finalidade epistêmica da prova judicial, e em que medida essa contaminação compromete a admissibilidade do vídeo.

Por fim, não se pode ignorar a perspectiva dos direitos fundamentais do réu: há que se atentar para o risco de que a comoção social pela gravidade do crime, a opinião pública já formada sobre a pessoa do acusado e os estereótipos construídos na ficção possam influir na decisão do júri popular — e, também, na do juiz togado. Esses riscos devem ser contrapostos ao grau de pertinência da fonte probatória com o fato probando e ao potencial cognitivo da prova produzida a partir do vídeo. Afinal, a presunção de inocência exige, para que seja desconstituída, prova incriminatória idônea e suficiente, de modo a ser racionalmente avaliada. O sistema deve buscar formas de controle capazes de assegurar essa garantia de fundo epistêmico: o direito do acusado de ter um julgamento fundado em uma cognição adequada.


[1] Ver, sobre o tema: DAMAŠKA, Mirjan. Evidentiary Barriers to Conviction and Two Models of Criminal Procedure: A Comparative Study. In: University of Pennsylvania Law Review, v. 121, 1972-1973.

[2] MALAN, Diogo Rudge. Direito ao Confronto no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 39.

[3] V., SILBEY, Jessica. Judges as film critics: new approaches to filmic evidence. University of Michigan journal of law reform, vol. 37, 2, 2004, p. 519 e s.

[4] Idem.

[5] Gov't of the Virgin Islands v. Albert, 241 F.3d 344 (3d Cir. 2001).

[6] SILBEY, Jessica. Judges as film critics: new approaches to filmic evidence. University of Michigan journal of law reform, vol. 37, 2, 2004, p. 547 e s.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] STF, AI 855774/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 08/06/2012, DJ 15.06.2012.

[10] HC 31181/RJ, 5ª T., rel. Min. Gilson Dipp, j. 03.08.2004, DJ 06.09.2004; HC 65.144/BA, 5ª T., rel. Min. Jorge Mussi, j. 15.09.2009, DJe 03.11.2009.

[11]  HC 31181/RJ, 5ª T., rel. Min. Gilson Dipp, j.  03/08/2004, DJ 06/09/2004.

[12] Oportuna a observação de Jessica Silbey sobre os mitos que incidem sobre o vídeo: “Frequently, courts ad advocates muddle the evaluation of film as evidence and reinforce troublesome myths about film and its relationship to reality and truth. These are myths that filmmakers and film historians have long rejected, such as: (1) film’s objectivity; (2) film’s lack of ambiguity; (3) film’s witnessing function.”(SILBEY, Jessica. Cross-examining film, Race, religion gender & class, v. 8917, 2008, p. 22-23)

[13] Como fez o STJ no citado STJ, HC 31181/RJ, rel. Min. Gilson Dipp, 5ª T., j.  03/08/2004, DJ 06/09/2004.

Autores

  • é professora adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora, vice-coordenadora do Mestrado em Direito e Inovação da UFJF, doutora e Pós-Doutoranda em Direito Processual pela Universidade de São Paulo.

  • é doutora em Direito Processual pela Uerj, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri", da Editora Lumen Juris.

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