Limite Penal

Tribunal do júri precisa passar por
uma reengenharia processual

Autor

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

8 de agosto de 2014, 13h36

Um dos graves problemas para a evolução de um determinado campo do saber é o repouso dogmático. Quando não se estuda mais e não se questionam as “verdades absolutas”. O Tribunal do Júri é um dos temas em que a doutrina nacional desfruta de um longo repouso dogmático, pois há anos ninguém (ousa) questiona(r) mais sua necessidade e legitimidade.

É verdade que o Tribunal do Júri, cláusula pétrea da Constituição, art. 5º, XXXVIII, foi muito importante na transição para o sistema acusatório e sua consolidação, mas isso não desautoriza a crítica, até porque a Constituição consagra o júri, mas com a “organização que lhe der a lei”. Ao remeter a disciplina de sua estrutura à lei ordinária, permite uma ampla e substancial reforma (para além da realizada em 2008, destaque-se), desde que assegurados o sigilo das votações, a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Mas, para isso, é necessária uma visão desapaixonada, que permita cortar na carne e reinventar o júri.

Um dos primeiros argumentos invocados pelos defensores do júri é o de que se trata uma instituição “democrática”. Não iniciarei uma longuíssima discussão do que seja “democracia”, mas com certeza o fato de sete jurados, aleatoriamente escolhidos, participarem de um julgamento é uma leitura bastante reducionista do que seja democracia. A tal “participação popular” é apenas um elemento dentro da complexa concepção de democracia, que, por si só, não funda absolutamente nada em termos de conceito. Democracia é algo muito mais complexo para ser reduzido na sua dimensão meramente formal­‑representativa. Noutra dimensão, aponta-se para a legitimidade dos jurados na medida em que são “eleitos”, como se isso fosse suficiente. Ora, o que legitima a atuação dos juízes não é o fato de serem “eleitos” entre seus pares (democracia formal), mas sim a posição de garantidores da eficácia do sistema de garantias da Constituição (democracia substancial). Ademais, de nada serve um juiz eleito se não lhe damos as garantias orgânicas da magistratura e exigimos que assuma sua função de garantidor.

Os jurados tampouco possuem a “representatividade democrática” necessária (ainda que se analisasse numa dimensão formal de democracia), na medida em que são membros de segmentos bem definidos: funcionários públicos, aposentados, donas de casa, estudantes, enfim, não há uma representatividade social com suficiência democrática. Argumenta-se, ainda, em torno da independência dos jurados. Grave equívoco. Os jurados estão muito mais suscetíveis a pressões e influências políticas, econômicas e, principalmente, midiática, na medida em que carecem das garantias orgânicas da magistratura. A falta de profissionalismo, de estrutura psicológica, aliados ao mais completo desconhecimento do processo e de processo, são graves inconvenientes do Tribunal do Júri. Não se trata de idolatrar o juiz togado, muito longe disso, senão de compreender a questão a partir de um mínimo de seriedade científica, imprescindível para o desempenho do ato de julgar. Os jurados carecem de conhecimento legal e dogmático mínimo para a realização dos diversos juízos axiológicos que envolvem a análise da norma penal e processual aplicável ao caso, bem como uma razoável valoração da prova.

Mas essa é uma crítica de base, que vai ao núcleo da legitimidade do júri. Penso que será mais útil – já que é uma cláusula pétrea – pensarmos a “mudança possível”.

O primeiro problema refere­‑se ao aspecto probatório, espinha dorsal do processo penal, na medida em que é através da prova que obtém a captura psíquica do julgador e constrói-se o convencimento. Na sistemática brasileira, a prova é colhida na primeira fase, diante do juiz presidente, mas sem a presença dos jurados. Em plenário, até pode ser produzida alguma prova, mas a prática demonstra que essa é uma raríssima exceção. A regra geral é a realização de mera leitura de peças, com acusação e defesa explorando a prova já produzida e subtraindo dos jurados a possibilidade do contato direto com testemunhas e outros meios de provas, e, como muito, haverá interrogatório no final (sem esquecer do direito de não comparecer ou de comparecer e manter o direito de silêncio). O julgamento resume‑se então a folhas mortas. Os jurados desconhecem o Direito, o processo e, principalmente, a prova, na medida em que sua parca cognição se limita (e muito) ao trazido pelo debate, ainda que, em tese, tenham acesso a “todo” o processo (como se esse processo fosse realmente de conhecimento dos jurados).

Como mudar? Sumarizando (leia-se, limitação da cognição) a primeira fase, realmente enxugando essa instrução, inclusive com a limitação do número de testemunhas, apenas para justificar a decisão de pronuncia, absolvição sumaria ou desclassificação (a impronúncia, obviamente, tem que ser abolida, por substancialmente inconstitucional). A ‘prova’ tem que ser produzida em plenário, na frente dos jurados. Aqui temos que mudar a lei mas, principalmente, a cultura. Elementar que isso terá um ‘custo’, com júris durando dias, talvez até semanas. Mas é o preço a ser pago se efetivamente se quer um júri de verdade (e não essa fraude que temos). E, falando em pagamento, muitos países já adotam uma forma de remunerar o jurado, para compensar do tempo gasto no julgamento. Por que não?

Interessante, ainda, como um dos principais pilares em comum do Direito Penal e do Processo Penal cai por terra sem quem ninguém o proteja. O in dubio pro reo é premissa hermenêutica inafastável do Direito Penal e, no campo processual, juntamente com a presunção de inocência, como regra de julgamento e tratamento.

Quando os jurados decidem pela condenação do réu por 4×3, está evidenciada a dúvida razoável, em sentido processual. Significa dizer que existe apenas 57,14% de consenso, de convencimento. Questiona­‑se: alguém admite ir para a cadeia com 57,14% de convencimento? Elementar que não.

A sentença condenatória exige prova robusta, alto grau de probabilidade (de convencimento), algo incompatível com um julgamento por 4×3. Ou seja, ninguém poderia ser condenado por 4×3, mas isso ocorre diuturnamente no Tribunal do Júri, pois lá, como diz o jargão forense, o in dubio pro reo passa a ser lido pelos jurados como in dubio “pau” no reo…

Precisamos, com urgência, aumentar o número de julgadores, para 9 jurados, com a exigência de votação mínima, para condenar, de 6 votos (logo, para absolver, vale 5×4); ou ainda, para 11 jurados, com no mínimo 7 jurados votando “sim” para haver condenação, de modo que, para absolver, pode ser 6 a 5. No mínimo, como sugerido e inicialmente acolhido no PLS 156 (Projeto do Código de Processo Penal), passar para 08 jurados.

O número par de integrantes – 08 jurados – impede soluções duvidosas como as que ocorrem atualmente, pois, em caso de empate, teríamos a configuração da dúvida favorecedora da absolvição. Com essa simples modificação alguém somente seria condenado com, no mínimo, dois votos de diferença (5×3).

Mas não é apenas no plenário que o in dubio pro reo é abandonado. Ao final da primeira fase, o juiz presidente poderá tomar uma dessas quatro decisões: absolver sumariamente, desclassificar, impronunciar ou pronunciar. O problema não está na decisão em si, mas no princípio que irá orientar a valoração da prova nesse momento. A imensa maioria dos autores e tribunais segue repetindo que, nessa fase, à luz da “soberania do júri” (novamente o argumento de autoridade, mas completamente vazio de sentido), o juiz deve guiar­‑se pelo in dubio pro societate. A pergunta é: qual a base constitucional desse “princípio”? Nenhuma, pois ele não foi recepcionado pela Constituição de 1988 e não pode coexistir com a única presunção constitucionalmente consagrada: a presunção de inocência e o in dubio pro reo.

Também foi um erro, quando da reforma pontual, manter­‑se a decisão de impronúncia, que gera um estado de pendência, em que o réu não está condenado nem absolvido. É substancialmente inconstitucional, por violar a presunção de inocência e, dependendo do caso, o direito de ser julgado em um prazo razoável.

Devemos enfrentar, ainda, a questão da falibilidade, que também está presente nos julgamentos levados a cabo por juízes togados, o que é elementar. Contudo, não é necessário maior esforço para verificar que a margem de erro (injustiça) é infinitamente maior no julgamento realizado por pessoas que ignoram o direito em debate e a própria prova da situação fática em torno da qual gira o julgamento, e, como se não bastasse, são detentoras do poder de decidir de capa a capa e mesmo “fora da capa” do processo, sem qualquer fundamentação. Os juízes e tribunais também erram, e muito, mas para isso existe todo um sistema de garantias e instrumentos limitadores do poder, que reduzem os espaços impróprios da discricionariedade judicial (mas não eliminam, é claro). A fertilidade do terreno da injustiça é completamente diversa.

É como querer comparar a margem de erro de um obstetra e sua equipe, numa avançada estrutura hospitalar de uma grande capital, com a de uma parteira, isolada em plena selva amazônica. É óbvio que o risco está sempre presente, mas com certeza a probabilidade de sua efetivação é bastante diversa. E se a parteira, em plena selva amazônica, é útil e necessária, diante das inafastáveis circunstâncias, o mesmo não se pode dizer do Tribunal do Júri na forma como está estruturado e concebido hoje.

Outra garantia fundamental que cai por terra no Tribunal do Júri é o direito de ser julgado a partir da prova judicializada. Em diversas oportunidades[1] expliquei a distinção entre atos de investigação (realizados no inquérito policial) e atos de prova (produzidos em juízo, na fase processual), ressaltando a importância de que a valoração que encerra o julgamento recaia sobre os atos verdadeiramente de prova, devidamente judicializados e colhidos ao abrigo do contraditório e da ampla defesa. Para tanto, defendo a adoção do sistema de exclusão física do inquérito policial, buscando evitar a contaminação do julgador pelos atos (de investigação) praticados na fase inquisitória do inquérito policial (portanto, em segredo, sem defesa ou contraditório e não judicializado). Isso é fundamental noTribunal do Júri, pois qualquer esperança de ser julgado a partir da prova judicializada cai por terra, na medida em que não existe a exclusão física dos autos do inquérito e tampouco há vedação de que se utilize em plenário os elementos da fase inquisitorial (inclusive o julgamento pode travar‑se exclusivamente em torno dos atos do inquérito policial). Para completar o triste cenário, os jurados julgam por livre convencimento imotivado, sem qualquer distinção entre atos de investigação e atos de prova.

O golpe fatal no júri está na absoluta falta de motivação do ato decisório. A motivação serve para o controle da racionalidade da decisão judicial. O mais importante é explicar o porquê da decisão, o que o levou a tal conclusão sobre a autoria e materialidade. A motivação sobre a matéria fática demonstra o saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser imposta a quem – racionalmente – pode ser considerado autor do fato criminoso imputado. Essa qualidade na aquisição do saber é condição essencial para legitimidade do atuar jurisdicional.

A decisão dos jurados é absolutamente ilegítima porque carecedora de motivação. Não há a menor justificação (fundamentação) para seus atos. Trata­se de puro arbítrio, no mais absoluto predomínio do poder sobre a razão, absolutamente incompatível com o nível de evolução civilizatória do processo penal, pois poder sem razão é prepotência.

A situação é ainda mais grave se considerarmos que a liberdade de convencimento (imotivado) é tão ampla que permite o julgamento a partir de elementos que não estão no processo. A “íntima convicção”, despida de qualquer fundamentação, permite a imensa monstruosidade jurídica de ser julgado a partir de qualquer elemento. Isso significa um retrocesso ao Direito Penal do autor, ao julgamento pela “cara”, cor, opção sexual, religião, posição socioeconômica, aparência física, postura do réu durante o julgamento ou mesmo antes do julgamento, enfim, é imensurável o campo sobre o qual pode recair o juízo de (des)valor que o jurado faz em relação ao réu. E, tudo isso, sem qualquer fundamentação. Enfim, é o decisionismo (anti-democrático) levado ao extremo, a uma dimensão absolutamente inadmissível.

Mais um problema da íntima e incontrolável convicção: como fica o duplo grau de jurisdição? Se não sei porque foi decidido dessa ou daquela forma, como recorrer? Vamos seguir ‘tentando’ adivinhar a “decisão manifestamente contrária à prova dos autos”?

Como contornar esse gravíssimo problema da falta de motivação?

A Espanha já enfrentou tal questionamento e decidiu — na Ley del Jurado — excluir fisicamente os autos da “instrución preliminar” e criar um mecanismo de fundamentação: um formulário simples, com perguntas diretas e estruturadas de modo a que – por meio das repostas – tenhamos um mínimo de demonstração dos elementos de convicção. Algo bastante simples para que o jurado, com suas palavras e de forma manuscrita, diga porque está decidindo desta ou daquela forma. Esse formulário simplificado é respondido pelos jurados ao final dos debates, em um tempo razoável fixado em lei e supervisionado pelo juiz, mantendo-se a incomunicabilidade do modelo brasileiro. Poderia ser um monitor e teclado para cada jurado (simples terminais), ligados a um computador administrado pelo juiz. Asseguramos ainda mais o sigilo das votações e otimizamos o julgamento. Simples, prático e perfeitamente exequível. E será um imenso avanço em termos de garantia da jurisdição e eficácia do direito ao duplo grau de jurisdição.

Teria muito mais a dizer, sobre a competência, quesitos, plenário, etc., mas o espaço não permite. Penso que o júri é uma opção constitucional e democraticamente feita e que precisa, por isso, ser respeitado, sem que se abra mão do debate constante, do repensar contínuo de suas rotinas de acertos e erros, da necessidade de sua reengenharia permanente. O júri precisa ser presentificado e reestruturado, para dar conta do nível de exigência do processo penal e da sociedade do século XXI.


[1] Entre outras, consulte­‑se nossa “Direito Processual Penal”, 11ª edição, Saraiva, São Paulo, 2014 e também “Investigação Preliminar no Processo Penal”, publicado pela mesma editora.

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    é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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