Tribunal do Júri

Decisão sobre produção das provas em plenário

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

28 de maio de 2022, 8h03

No início do século passado, em aula inaugural ministrada em 15 de janeiro de 1903 na Universidade de Tübingen, Alemanha, Ernest Ludwig Von Beling expôs o termo "proibição probatória" [1], para conceituar o equilíbrio entre a busca da verdade e eventuais erros nessa atividade. Nessa linha, o discurso sobre a busca da verdade e a formação da convicção do julgador não poderá se sobrepor ao respeito e proteção aos direitos fundamentais do cidadão [2]. Essa afirmativa se mostra de necessária vivificação teórica e prática, pois trabalhar com garantias constitucionais (caracterizadas pelos seus valores éticos, políticos e epistemológicos) é determinar que apenas provas legais e relevantes sejam admitidas na dinâmica probatória, devendo ocorrer um filtro consistente sobre sua admissibilidade e pertinência.

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Essas afirmativas reservam características de proteção ao anseio individual e coletivo. Ao componente individual serve como garantia dos direitos fundamentais e, por outro lado, o componente coletivo pretende a preservação e integridade constitucional, especialmente para realização de um processo justo [3]. Independentemente do procedimento a ser seguido, até porque, qualquer decisão baseada em provas ilegalmente obtidas e produzidas devem ser consideradas socialmente inaceitáveis [4].

O grave problema identificado no nosso sistema de justiça é a ausência de estudos mais críticos quanto à teoria da prova [5]. Assim, resta fácil exemplificar a minimização de regras de exclusão no direito processual brasileiro, bem como sua aplicação prática, o que gera a permanência do reconhecimento da ilicitude da prova a partir de critérios subjetivos realizados pelo julgador.

Por outro lado, não há como confundir formalmente regras de exclusão probatória (critérios normativos de exclusão) — que possuem limitação no nível de introdução e produção probatória — com regras de proibição na sua valoração — que se caracterizam por fazerem parte do conteúdo da decisão do juiz togado ou leigo.

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Diante do procedimento probatório, as regras de valoração somente ocorrerão quando ultrapassadas as regras de exclusão [6], por isso, a necessária identificação do órgão competente para aferir a legalidade e necessidade da prova, especialmente quando não se confunde com o órgão que irá julgar o mérito da demanda penal: o exemplo resta claro pelo Tribunal do Júri.

Como sabemos, o procedimento que abraça o julgamento dos crimes dolosos contra vida é espécie de rito especial (CPP, artigo 406/497) que se desenvolve em fases sequenciais e com objetivos distintos. Na segunda do procedimento, a decisão se caracteriza como subjetivamente complexa e, além do juiz togado, há o destaque da participação dos "juízes leigos", os quais possuem o compromisso com a análise profunda do caso penal em plenário. A originalidade cognitiva dos jurados é um dos elementos que robustece o entendimento de que a decisão do júri pode ser considerada uma decisão mais próxima de um modelo ideal de imparcialidade, especialmente quando ainda suspensa a figura do juiz de garantias no processo penal brasileiro.

Apesar de o julgamento ocorrer de forma sequencial, não há dúvida de que os jurados são os destinatários finais de todas as provas produzidas nos autos, as quais, valoradas diante das teses e sustentações em plenário, visam alcançar a captura psíquica do Conselho de Sentença. Porém, resta saber se compete aos jurados, além do dever de analisar os fatos, provas e teses, decidir a respeito da legalidade da produção da prova em plenário após o requerimento feito pelas partes.

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A presente questão ganha em dimensão quando verificamos que em determinados casos, especialmente polêmicos, ao final dos debates, as partes podem induzir os jurados a solicitar a produção de provas (p. ex.: a juntada de novos documentos; a oitiva de peritos que tenham subscrito laudos constantes dos autos; diligências até o local do crime; acareação entre pessoas que não mais se encontram em plenário, etc.) que possam ser consideradas irrelevantes, impertinente ou protelatórias. A quem compete decidir sobre a legalidade e pertinência da produção da prova? Aos jurados ou ao juiz-presidente?

A legislação determina que, uma vez concluídos os debates, o magistrado "indagará dos jurados se estão habilitados a julgar ou se necessitam de outros esclarecimentos" (CPP, artigo 480, § 1º). Tratando-se de dúvida sobre questão de fato, "o presidente prestará esclarecimentos à vista dos autos" (CPP, artigo 480, § 2º). Contudo, se "a verificação de qualquer fato, reconhecida como essencial para o julgamento da causa, não puder ser realizada imediatamente, o juiz presidente dissolverá o Conselho, ordenando a realização das diligências entendidas necessárias" (CPP, artigo 481, caput).

Apartar a análise do fato do desenlace jurídico advindo desse substrato configura trabalho infactível, porém, muitas vezes a dúvida do jurado pode ser suprida à luz dos autos e é dever do magistrado fazê-lo, com o zelo necessário para não lançar conclusão (sua) a respeito de tese que envolva a solução do caso penal [7]. Não obstante, é possível que o esclarecimento envolva a produção de prova ou diligência que compreenda a prévia análise da sua legalidade e pertinência para a solução do caso ou a possibilidade jurídica da sua realização. Nesse modelo, reiteremos: a quem compete decidir a respeito da legalidade e essencialidade da produção da prova durante o julgamento? Aos jurados? E, se assim fosse, bastaria um único jurado julgar pela necessidade da produção da prova ou seria o caso de se alcançar a maioria? Como se daria a decisão? O jurado deveria fundamentar (oralmente) a necessidade da prova? Seria possível fazê-lo sem adiantar uma possível conclusão a respeito do caso? Restaria identificado o jurado interessado ou a deliberação seria sigilosa mediante o uso das cédulas de votação? Tratando-se de prova ilícita (ou ilegítima) — cujo conhecimento é matéria restrita aos profissionais do direito — ainda assim seria produzida, não obstante a vedação constitucional?

Preliminarmente, é necessário esclarecer que o CPP falha [8] ao facultar os esclarecimentos dos jurados apenas ao final dos debates (CPP, artigo 480, § 1º), eis que, mesmo produzida a prova, não seria possível exercer o contraditório sobre o conteúdo percebido pelos jurados. Por exemplo, tratando-se de diligência ao local do crime, restaria aos jurados apenas observar espacialmente a cena e retornar ao plenário para a votação.

Outrossim, a depender da prova a ser produzida, ou seja, se não puder ser realizada imediatamente (p. ex.: a prova pericial), caberia ao magistrado dissolver o Conselho de Sentença e então ordenar a realização da diligência (CPP, artigo 481). Com isso, se a decisão a respeito da produção da prova (ou diligência) competisse exclusivamente ao júri (ou a um único jurado), não seria possível induzir a sua essencialidade e com isso fomentar o adiamento do júri e a dissolução do conselho caso a prova não pudesse ser imediatamente produzida?

Em todo o rito do júri a lei prevê fases para a postulação probatória e atribui ao magistrado a responsabilidade pela sua admissão (sempre respeitando as premissas do sistema acusatório). Na fase de admissibilidade da acusação, por exemplo, o artigo 410 [9] e artigo 411, § 2º [10], ambos do CPP, são taxativos ao firmar a competência do magistrado para decidir a respeito da aceitação e da produção das provas requeridas pelas partes.

O mesmo ocorre quando da fase de preparação para o plenário, momento em que as partes são intimadas para, no prazo de cinco dias, apresentarem rol de testemunhas que irão depor perante os jurados, juntar documentos e requerer diligência. Nos termos do disposto no artigo 423 do CPP, caput, é missão do magistrado, ao aferir a legalidade e relevância probatória, deliberar a respeito dos "requerimentos de provas a serem produzidos ou exibidas em plenário".

Resta claro que todo o sistema foi estruturado para que os jurados apenas tenham contato com as provas lícitas admitidas pelo juiz-presidente, seguindo-se a mesma estrutura norte-americana. Não por outro motivo o artigo 497 do CPP prescreve serem atribuições do juiz-presidente: "resolver questões incidentes que não dependam de pronunciamento do júri" (inciso IV); "suspender a sessão pelo tempo indispensável à realização das diligências requeridas ou entendidas necessárias, mantida a incomunicabilidade dos jurados" (inciso VII); "resolver as questões de direito suscitadas no curso do julgamento" (inciso X); e "determinar, de ofício ou a requerimento das partes ou de qualquer jurado, as diligências destinadas a sanar nulidade ou a suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade" (inciso XI).

Ademais, o rito prevê momentos preclusivos para que as partes postulem a produção probatória, e estipula prazo específico (CPP, artigo 479) para a juntada de documentos aos autos, garantindo-se a não-surpresa em plenário. E, em todos esses espaços postulatórios (e de juntada), cabe ao magistrado avaliar e motivadamente deferir a produção da prova, não admitindo, por exemplo, provas consideradas ilícitas ou ilegítimas. Decisão essa, passível de ensejar a nulidade do processo caso não devidamente motivada (CPP, artigo 564, V) — vício que não seria possível de ser projetado caso a decisão fosse atribuída (imotivadamente) ao Conselho de Sentença.

Não se trata de assestar a possibilidade ou a necessidade de uma investigação aprofundada a respeito do que pode (ou não) ser juntado na fase do artigo 479 do CPP (ou mesmo requerido pelas partes na fase do artigo 422), eis que nesse contexto, o juiz estaria adentrando à esfera da construção de teses e argumentos que deverão ser objeto de análise pelos jurados. A lei não determina que isso seja feito, apesar de sermos partidários de uma maior racionalidade no aporte probatório em plenário [11]. Porém, o magistrado deve evitar a contaminação do Conselho de Sentença e a futura anulação do julgamento, realizando (quando menos) a filtragem de provas ilícitas/ilegítimas, pois lhe compete ordenar diligências para sanar qualquer nulidade (CPP, artigos 251, 423, I; 497, XI). Nesse contexto, verificando, por exemplo, que foi realizada a juntada de um reconhecimento pessoal que não observou o disposto no artigo 226 do CPP e as novas diretrizes jurisprudenciais [12], o juiz deve determinar o seu desentranhamento dos autos, evitando que o documento possa ser objeto de valoração pelos jurados.

Em suma: (1) os critérios de reconhecimento e de controle sobre a legalidade probatória devem ser mais enfáticos ou corresponder a forma mais abrangente e de aplicação prática por parte do juiz togado; (2) a produção da prova em plenário do Tribunal do Júri deve observar a postulação na fase do artigo 422 do CPP; (3) as provas devem ser produzidas em momento anterior aos debates, possibilitando-se o contraditório sobre a prova perante os jurados; (4) compete exclusivamente ao juiz presidente deliberar a respeito da admissibilidade/produção da prova e de eventuais esclarecimentos dos jurados, fundamentando-se a decisão na ata do julgamento.


[1] BELING, Ernest Ludwig Von. Las prohibiciones de prueba como limite a la averiguación de la verdad en el proceso penal. In Las prohibiciones probatórias. Org. Kai Ambos e Óscar Julián Guerrero. Bogotá: Temis, 2009, p. 5

[2] Já enfrentamos o tema do discurso sobre a busca da verdade em SAMPAIO, Denis. A Verdade no Processo Penal. A permanência do sistema inquisitorial através do discurso sobre a verdade real. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[3] AMBOS, Kai. Las prohibiciones de utilización de pruebas en el proceso penal alemán. In Las Prohibiciones Probatórias. Org.: Kai Ambos e Óscar Julián Guerrero. Bogotá: Temis, 2009, p. 60/61.

[4] STEIN, Alex. The Refoundation of Evidence Law. In Canadian Journal of Law and Jurisprudence. vol. IX, nº 2, 1996, p. 293.

[5] O que difere, de forma clara, ao modelo anglo-saxão em que o sistema da exclusionary rule é posto historicamente como um verdadeiro contrapeso à substancial liberdade de valoração da prova pelo julgador, ainda que esteja direcionado ao júri. Cf. NOBILI, Massimo. Il principio del libero convincimento del giudice. Milano: Giuffrè, 1974, p. 27/28, n.r.p. 24.

[6] FERRUA, Paolo. Il giudizio penale: fatto e valore giuridico. In La prova nel dibattimento penale. 4ª. ed. Giappichelli: Torino, 2010, p. 355.

[7] Nada obsta ao magistrado pedir a colaboração das partes para a solução da dúvida, caso necessário.

[8] Não só no procedimento do júri. O CPP se mostra enxuto no que tange à teoria geral da prova penal, com ausência significativa de regras de proibição de produção e valoração da prova.

[9] CPP, art. 410. O juiz determinará a inquirição das testemunhas e a realização das diligências requeridas pelas partes, no prazo máximo de 10 (dez) dias.

[10] CPP, art. 411, § 2º. As provas serão produzidas em uma só audiência, podendo o juiz indeferir as consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias.

[11] Nesse contexto, sugerimos a leitura do texto da professora Marcella M. Nardelli: "Por um controle prévio de racionalidade na reforma do júri", do ConJur de 11 de junho de 2021.

[12] STJ, 6ª Turma, HC nº 712.781/RJ, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, j. 15/3/2021.

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, Portugal, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, membro honorário do IAB e professor de Processo Penal.

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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