Opinião

A "primazia do julgamento eletrônico" em detrimento dos jurisdicionados

Autores

  • Benedito Cerezzo Pereira Filho

    é advogado doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com pesquisa pós-doutoral pela Universidad Complutense de Madrid na Espanha professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) pesquisador do Grupo de Pesquisa Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (CNPq/UnB) e membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

  • Mayk Chayenne Gomes Fonseca

    é mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com ênfase em Direito Processual Civil e Constitucional e membro do Grupo de Pesquisa de Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (GEPC-UnB).

18 de junho de 2022, 17h07

Com o advento da Lei 14.365, de 2 de junho de 2022, o cenário das garantias processuais dos jurisdicionados felizmente foi reforçado. A lei em questão versa sobre 1) honorários advocatícios; 2) vedação à asfixia econômica do réu; 3) dinâmica da sustentação oral no Direito Processual brasileiro; entre outros temas.

O foco deste escrito será no ponto atinente à sustentação oral, mas não necessariamente nas mudanças decorrentes da lei em comento. Abordaremos o que se "tentou mudar", mas, infelizmente, não se conseguiu. A análise que será feita objetivará refletir criticamente sobre vetos realizados pelo presidente da República a esse diploma legal, por meio das razões contidas na mensagem nº 275, de 2 de junho de 2022, publicada no DOU de 3 de junho de 2022.

Veto ao §2º-A do artigo 7º do Estatuto da Advocacia
O primeiro veto que analisaremos neste texto é o que impediu o acréscimo do "§2º-A" ao artigo 7º da Lei nº 8.906 de 1994 (Estatuto da Advocacia). A redação do dispositivo vetado é a seguinte: "§ 2º-A. Incluídos no plenário virtual o julgamento dos recursos e das ações originárias, sempre que a parte requerer a sustentação oral em tempo real ao julgamento, processo será remetido para a sessão presencial ou telepresencial".

As razões para que tal dispositivo tenha sido vetado, em síntese, foram as de que "a proposição legislativa contraria o interesse público, pois vislumbra-se risco à celeridade no trâmite dos processos judiciais, uma vez que se opõe ao avanço recente de novas modalidades síncronas e assíncronas de prestação do serviço jurisdicional,  que apresentam incremento de eficiência, celeridade e digitalização do Poder Judiciário".

Pois bem, um de nós já escreveu nesta ConJur, na companhia de João Pedro Mello, que "já não há, no Direito brasileiro, propriamente um dia do julgamento  um day in court" [1]. Deveria haver, mas infelizmente o nosso sistema não permite tal possibilidade, salvo em raríssimas exceções.

Uma delas, sem dúvidas, é a possibilidade de sustentação oral em julgamento presencial, ou até mesmo telepresencial. É inconcebível que, sob a escusa de "celeridade", "avanço" e "incremento de eficiência" se retire dos jurisdicionados a mínima garantia de de participar, efetivamente, da sessão de julgamento, assistindo, no duplo sentido do verbo, de modo a contribuir com o debate perante os julgadores. Bem por isso, entendemos ser o julgamento presencial o ideal. Mas, num cenário de amplo desrespeito de garantias atinentes à presencialidade, se o julgamento telepresencial possibilitar que o processo escape da infeliz lista de julgamentos, isso já deverá ser considerado um forte avanço (ou impeditivo de retrocesso) para o jurisdicionado.

Em verdade, a maior mudança no Direito Processual não veio do Código de Processo Civil de 2015. Sem dúvidas, a maior modificação no sistema processual brasileiro foi a popularização dos julgamentos de lista nos tribunais, pela via eletrônica, que, a depender da corte, recebem os mais variados nomes. Em síntese, na maior parte dos casos (ao menos conforme a prática revela), o que esses julgamentos acarretam é uma monocratização das decisões colegiadas, a tornar comum que uma decisão seja proferida apenas por um único julgador, não obstante conter a rúbrica de um órgão supostamente colegiado — e nem precisamos adentrar aqui nas hipóteses de decisões monocráticas que passam a ser referendadas nos votos dos agravos internos, não raras vezes adotando como "razões de decidir" os fundamentos da decisão recorrida.

Sobre essa questão, pouco se fala na nossa doutrina. Ao menos de forma crítica. Será que estamos no caminho certo?

Voltando ao veto proposto para ser analisado, as suas razões por si não se sustentam. É indubitável que o julgamento eletrônico (virtual), como está, traz enorme prejuízo às partes, ao devido processo legal e à ampla defesa. Com todas as venias, mas essa suposta possibilidade de enviar sustentação oral por meio eletrônico é algo completamente ineficiente se a compararmos com a eficiência deste relevante ato processual realizado presencialmente. Até porque, não podemos esquecer que a parte sempre ficará na dúvida se a sua defesa oral foi realmente assistida ou não pelos julgadores. Ou seja, transformamos atos processuais públicos em secretos. É isso constitucional? Nos parece que não! A prática fala por si. O veto, ao afirmar que "o julgamento virtual não traz prejuízo às partes nem ao devido processo legal e à ampla defesa" incorre em gravíssimo equívoco.

Afronta ao princípio da colaboração processual e ao direito de influir no julgamento
A Lei 14.365 de 2022 pretendia estabelecer que seria um direito do advogado "sustentar oralmente, durante as sessões de julgamento, as razões de qualquer recurso ou processo presencial ou telepresencial em tempo real e concomitante ao julgamento".

Da leitura do veto presidencial a esse dispositivo, percebe-se que as razões utilizadas pelo Presidente são completamente desconexas da realidade, data maxima venia. Em verdade, se o leitor deste escrito for analisar o texto do referido veto, verá que é quase a mesma redação utilizada para vetar o dispositivo mencionado no tópico anterior. Literalmente aproveitaram o mesmo texto, com pouquíssimas adaptações, ao que parece.

No entanto, a possibilidade de influenciar (legalmente) o resultado do julgamento presencial, como definido no escopo do dispositivo, em nada contraria as novas modalidades "síncronas e assíncronas de prestação jurisdicional". Pelo contrário, assegura a legitimidade das ações do Poder Judiciário nessas novas modalidades.

Ao elencar a fundamentação mencionada no outro veto citado, há uma confusão a respeito da distinção entre modalidades de julgamento virtual e "telepresencial", eis que nessa última há a participação "ao vivo" dos julgadores, conquanto naquela há o conhecido "plenário virtual", sem a participação "ao vivo" dos juízes e das partes — quase secreto.

Ora, eis a pergunta: qual o papel da advocacia? Atrapalhar a corte ou aperfeiçoar os julgamentos? E quanto ao tão falado princípio da colaboração? Ele deve ceder perante o imponente princípio da primazia do "julgamento eletrônico"? Essas são apenas simples reflexões, pois contra um texto genérico de veto não há muito o que falar, até porque o enunciado do dispositivo da lei, devidamente editado pelo Legislador nacional, já fala por si.

Conclusão?
A título de conclusão, fazemos apenas um alerta: precisamos de maior atenção da doutrina, da academia, quanto ao que está acontecendo no cenário dos procedimentos de julgamento no país.

A crise na Jurisdição não pode ser levada em consideração somente para salvar "as crises" das cortes de justiça. Estudos são intensificados no e pelo judiciário visando a diminuir seu acervo de processos sob o discurso de não suportar o número excessivo de demandas. Se isso é certo, e nos parece que sim, não podemos, sob esse pretexto, exigir que o jurisdicionado se conforme com julgamento secreto, sem a essencial participação do seu procurador.

Ao que se sabe, as "pesquisas" sobre o procedimento do julgamento virtual são, quase que em regra, conduzidas por integrantes das cortes, muitos provavelmente sem a experiência da árdua tarefa do trabalho advocatício do dia a dia, a impossibilitar que tenham plena noção das consequências que um arremedo de julgamento acarreta no sistema de justiça como um todo. Também é de se questionar a validade epistêmica dessas pesquisas feitas pelo Judiciário ou por seus integrantes, quando se percebe que o objeto de investigação é o próprio pesquisador, ou pior, o “chefe” do pesquisador.

Precisamos refletir como que são produzidas as nossas decisões jurisdicionais, assim como também sobre como que está sendo tratado um tema tão importante que é o da "ordem dos processos no tribunal". Os manuais, se já não foram, precisarão ser reescritos, tendo em vista todas essas mudanças, que, tal como o CPC, já não são tão novas assim. Esperamos que ao menos essa reescrita se dê de forma crítica, ante o relato que a realidade escancara, cuja parte mínima do problema procuramos refletir nesse curto espaço. Enquanto isso, aguarda-se que o Congresso assuma sua função precípua e, no interesse do povo, em nome do qual exerce o poder, derrube os vetos.

Autores

  • é sócio do escritório Marcelo Leal Advogados Associados em Brasília, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB, doutor em Direito pela UFPR, com período de pesquisa pós-doutoral em Direito pela Universidad Complutense, em Madrid (Espanha), e ex-membro da comissão de juristas responsável pela elaboração e acompanhamento do anteprojeto do novo CPC no Senado.

  • é mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com ênfase em Direito Processual Civil, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito (FBD), membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Processual Civil da UnB (GEPC-UnB) e membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

  • é mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com ênfase em Direito Processual Civil e Constitucional e membro do Grupo de Pesquisa de Processo Civil, Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (GEPC-UnB).

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