Opinião

Uma Justiça que produz, mas não julga: das metas do CNJ à inteligência artificial

Autores

  • Benedito Cerezzo Pereira Filho

    é advogado doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com pesquisa pós-doutoral pela Universidad Complutense de Madrid na Espanha professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) pesquisador do Grupo de Pesquisa Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (CNPq/UnB) e membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

  • João Pedro de Souza Mello

    é doutorando e mestre em Direito pela UnB e sócio do Aguiar e Mello Advogados.

28 de setembro de 2020, 19h19

A verdadeira razão, além da inconstitucionalidade, pela qual a ideia de prisão após julgamento em segunda instância é pavorosa é a seguinte: os tribunais brasileiros não julgam ninguém. Recorrer a três tribunais depois do juiz singular não são quatro julgamentos: são quatro chances de ser julgado. O normal é mandar o sujeito para a cadeia com uma decisão-padrão, ou um frankenstein de pedaços de decisão-padrão, e já marcar o ponto na meta do CNJ, com a confirmação cega das instâncias subsequentes. O advogado luta pelo julgamento favorável? Sim, mas antes disso tem de lutar pelo julgamento real. Felizmente, sejamos justos, ainda tem nessa missão a aliança, por todo o Brasil, de juízes comprometidos com a jurisdição e que não se curvaram a esse sistema.

Em regra, todavia, nos gabinetes do Poder Judiciário não se pensa em julgar; só se fala em produzir decisões. Esse é o paradoxo: ninguém decide nada, mas decisões são produzidas — a decisão-documento, a carta mágica de redução do acervo. E foi assim que chegamos à inteligência artificial.

Só é possível falar em automatização decisória no Poder Judiciário porque, antes, houve essa troca de perspectiva: o foco sai do ato humano para sua expressão material, do julgamento da causa para a decisão-documento.

Já não há, no Direito brasileiro, propriamente um dia do julgamento — um day in court. Raramente os juízes sentenciam em audiência (quando há audiência!); o advogado espera a decisão em seu escritório, após apresentar alegações finais por escrito. No tribunal, a sustentação oral encontra a surdez de um voto pré-pronto. Isso já achamos normal — toda essa falta de oralidade, esse procedimento mais burocrático que ritualístico. A identidade física do juiz também foi para as cucuias. No processo penal foi a jurisprudência quem lhe restringiu a incidência até que ninguém mais pudesse reclamá-la. No processo civil, o CPC/15 nem sequer reproduz o artigo 132 do CPC/73, segundo o qual o juiz que concluísse a audiência também proferiria a sentença.

O império do processo escrito é acompanhado de um entusiasmo desequilibrado e ingênuo pelo escopo social da jurisdição. Desequilibrado porque negligencia os escopos jurídico e político; ingênuo porque crê, esquecido de que o Estado exerce jurisdição porque monopolizou a força e vedou a autotutela, que uma decisão qualquer basta para conter os ânimos sociais. Como se a pendência do processo equivalesse ao conflito, à lide sociológica — e a pseudodecisão, o julgamento sem sensação de julgamento, bastasse para a paz. Como se — bem apontou Calmon de Passos [1] — a própria ideia de pacificação social não fosse uma ilusão para encobrir a violência simbólica.

A pressão das metas de produtividade piora tudo. Até o verbo é capcioso: a função do juiz não é julgar, é produzir — como uma envasadora industrial de refrigerante. Se a decisão é apenas um número, então qualquer decisão é uma decisão. Para que então produzir provas? Ouvir sustentação oral? Realizar audiência? Ou mesmo fundamentar adequadamente? Para que tudo isso, se toda decisão é decisão?

Quando o CNJ instituiu as metas, o professor Gonçalves Correia escreveu para a Folha de S.Paulo [2] e contou a seguinte história: um palestrante, em curso de formação de servidores, analisou um punhado de gráficos e concluiu que os processos tramitavam mais rapidamente em certa vara do que em outra. Isso parecia se dever ao fato de que, na vara mais lenta, era praxe abrir prazo para manifestação das partes após a apresentação do laudo pericial; na rápida, não. Daí concluía o palestrante que o segundo procedimento era mais eficiente. Confrontado por um servidor sobre as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, o palestrante respondeu — com tranquilidade, diz o narrador original; com cinismo, dizemos nós — que a Constituição era mero detalhe.

Dissemos que é cinismo porque sabemos que quem ainda hoje fala em processo justo, direitos fundamentais e outras coisas fora de moda é recebido pela ideologia oficialoide como um romântico que não conhece a realidade concreta, a realidade dura, a realidade John Wayne dos números do acervo. "A Constituição é mero detalhe" é apenas a forma cínica de expressá-lo.

Fora de moda não é por acaso. É complicada essa nossa história, a dos latino-americanos. Até a primeira metade do século XX, prevaleceu uma elite tradicional que se servia da linguagem do direito para o exercício do poder. A formação jurídica era sobretudo uma maneira de pôr os interesses de certa camada social em contato com a estrutura do Estado [3]. No Brasil e no Chile, as respectivas ditaduras marcaram a ascensão dos economistas e a perda de prestígio dos juristas e de sua ciência — que passou a ser vista como anacrônica, incapaz de organizar o Estado para os objetivos do crescimento econômico [4]. Não por acaso, esse movimento foi acompanhado pelos atos que restringiram os instrumentos de acesso aos tribunais — os quais, reconhecidamente, abriram o caminho para as prisões clandestinas, desaparecimentos forçados e torturas.

No Brasil, segundo análise de Yves Dezalay e Bryant Garth, a Constituinte de 1988 marcou uma espécie de "retorno dos juristas". Os debates se fizeram na linguagem tradicional do Direito — ainda que com incorporação de elementos de raiz americana, como os direitos humanos internacionais, a proteção do meio ambiente e o novo direito econômico [5].

Não obstante, tinha se consolidado a ascensão de uma nova elite: a dos economistas — esses que estudam em universidades americanas como os bacharéis de outrora estudaram no Largo de São Francisco. Seu discurso passou a permear a estrutura do Estado, e logo se fortaleceu com as crises de endividamento e consequente adesão do Brasil e de outros países latino-americanos aos programas ditos "neoliberais" impostos pelo Banco Mundial [6]. A instituição do CNJ para organizar as carreiras dos magistrados, em 2004, e das suas metas, em 2009, está claramente associada às ideias de eficiência administrativa dos Consensos de Santiago e Washington e de outras políticas internacionais complementares voltadas especificamente para reformas judiciais. O discurso dos economistas chegou aos tribunais.

E não foi de todo mau. As metas sacudiram as coisas, deram fim a processos que mofavam nas prateleiras, mostraram um compromisso do Poder Judiciário com o tempo do processo. Mas produziram efeitos colaterais sobre a cultura jurisdicional. Quando se usa a régua para medir a mesa, também se usa a mesa para medir a régua [7]. Se o medidor é exclusivamente quantitativo, então a decisão de João Baptista Herkenhoff que libertou Edna vale tanto quanto a sentença da juíza curitibana que descobriu que o réu integrava organização criminosa "em razão de sua raça". De que serve a régua?

Na América Latina, reformas implementadas para atender a padrões internacionais costumam sofrer desvios de propósito inacreditáveis para atender a interesses diversos [8]. E no Brasil, observou-o Calmon de Passos, o Poder Judiciário trabalha para resolver os problemas do próprio Poder Judiciário [9] — para quem, aliás, o maior dos males parece ser a crise numérica da jurisdição.

Foi o mesmo Calmon de Passos quem mostrou que ideias como efetividade do processo e avaliação de resultados, por sua neutralidade, podem receber anjos e demônios. Que resultados? O que é um resultado? A efetividade na produção do injusto é desejável?

Se o juiz decide em nome de uma ordem democrática, o resultado só pode ser avaliado segundo o processo por que foi alcançado. A qualidade da decisão está não apenas em seu conteúdo final, mas no modo como ela se produziu e na qualificação de quem o fez.

Mas para o problema do "desafogamento", a primazia do resultado pelo resultado basta. Decidem por escrito, escondidos no gabinete; depois decidem adaptando modelos (e adaptando cada vez menos); logo deixam também os estagiários decidirem — até sem supervisão, sobretudo para inadmitir recursos e impetrações. Trabalham as máquinas, rolam as esteiras; a fábrica vai a todo vapor. Se não der muita pinta, dá até para dar uma saidinha e deixar a produção rodar sozinha. Chegamos à inteligência artificial.

Na raiz dessa história de automatização do Judiciário, está a ideia de que decidir é produzir documentos decisórios.

Alan Turing, o cientista da computação, propôs a substituição do problema "máquinas podem pensar?" por outro, segundo ele menos ambíguo: pode a máquina engambelar o ser humano a ponto de fazê-lo pensar que fala com outro ser humano quando fala, por escrito, com a máquina [10]?

Contra essa ideia, o filósofo John Searle defendeu que programar uma máquina para passar a perna num ser humano não faz dela um ser pensante. Searle defende seu ponto de vista com um experimento mental. Sou falante nativo de inglês e estou trancado em uma sala. Nessa sala, há uma abertura pela qual posso trocar cartas com alguém que está fora. Esse alguém é falante nativo de chinês. Eu não falo uma palavra de chinês, mas recebo dois grandes lotes de escritos em chinês, com instruções em inglês para relacionar um ao outro. Respondo às cartas de fora, sem entendê-las, articulando por meio das instruções em inglês esses símbolos dos quais apenas percebo as formas. Após um período de aprendizado, fico tão bom em fazer essas relações, e o "programador" tão bom em me dar as instruções, que minhas articulações de signos sem-interpretação se tornam indistinguíveis das cartas de um falante nativo chinês. O próprio falante nativo pensa se corresponder com outro como ele. Isso é falar chinês? É óbvio que não [11].

As máquinas, alimentadas por bancos de dados de pinturas, têm sido capazes de pintar quadros que parecem obra humana. Que quer dizer, para o humano, a obra de arte da máquina? Absolutamente nada. Mesmo que pareça querer dizer qualquer coisa, mesmo que convide à interpretação, à atribuição de sentido. A qualidade da falsificação não a faz verdadeira.

A sentença — do latim sententia, sentire, sentir — também é obra da arte humana. Que quer dizer, para o humano, a decisão do juiz-robô?

A tentação de substituir a decisão judicial por seu simulacro só poderia ter surgido no quadro de uma Justiça indiferente, apegada a números e ao produto final. Uma Justiça capaz de dizer "o senhor continua preso porque o computador produziu aqui uma minuta e o juiz achou que se parece mesmo com uma decisão que ele escreveria" não se perdeu ontem.

Falamos do teste de Turing. Nassim Taleb propôs um teste de Turing ao contrário: um ser humano A é considerado não inteligente quando seu discurso puder ser replicado por um computador, e essa réplica for capaz de convencer o ser humano B de que foi efetivamente escrita pelo ser humano A [12]. Antes de pensar em inteligência artificial, a justiça precisou emburrecer naturalmente um bocado.

E diante desse culto cego da eficiência, só podemos encerrar citando o professor Calmon de Passos mais uma vez: "Fica a pergunta idiota daquele sujeito que, ouvindo de um outro ter conseguido comprar um carro que faria os quilômetros de sua fazenda para a cidade não mais nas 12 horas de antes, mas apenas em quatro horas, perguntou imbecilmente: 'e o que você pretende fazer com as oito horas que ganhou?' [13]"


[1] CALMON DE PASSOS, J. J. Cidadania e efetividade do processo. p. 394. Todos os textos de Calmon de Passos citados neste artigo estão em Ensaios e Artigos. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2014.

[2] Ver em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2404201009.htm>. Acesso em 16 de setembro de 2020

[3] Como explicado por ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 157 e ss.

[4] DEZALAY, Yves. GARTH, Bryant. The internationalization of palace wars. Chicago: University of Chicago Press, 2002, p. 36 e ss.

[5] Idem. p. 158.

[6] Idem. p. 180.

[7] TALEB, Nassim. Fooled by randomness. Nova York: Random House, 2004, p. 224.

[8] DEZALAY, Yves. GARTH, Bryant. The internationalization of palace wars. Chicago:. Op. Cit. 246 e ss.

[9] CALMON DE PASSOS, J. J.. Avaliação crítica das últimas reformas do processo civil. p. 117

[10] TURING, Allan. Computing machinery and intelligence. In: The essential Turing. Nova York: Oxford University Press, 2004, p. 441 e ss.

[11] SEARLE, John. Minds, brains and programs. Disponível em: <https://nil.cs.uno.edu/publications/papers/searle1980minds.pdf>

[12] TALEB, Nassim. Fooled by randomness. p. 62.

[13] CALMON DE PASSOS, J. J.. Considerações de um troglodita sobre o processo eletrônico. p. 91.

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