Direitos Fundamentais

A equiparação dos tratados ambientais aos tratados de direitos humanos

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15 de julho de 2022, 8h04

O Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 708 no dia 1º de julho. A decisão do paradigmático "Caso Fundo Clima ou Fundo Nacional sobre Mudança do Clima" havia sido precedida de ampla audiência pública realizada pelo STF no mês de setembro de 2020, com a participação de diversas autoridades, entidades da sociedade civil e do setor produtivo, populações indígenas, cientistas, acadêmicos [1] etc. Por 10 votos contra 1, a maioria dos ministros do STF decidiu pela procedência da ação constitucional, acompanhando, na sua integralidade, o voto do relator da ação, ministro Luis Roberto Barroso. Em linhas gerais, o STF decidiu que o Poder Executivo tem o dever de fazer funcionar e alocar anualmente os recursos do Fundo Clima, vedado seu contingenciamento, em razão do dever constitucional de proteção do meio ambiente e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

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A decisão do STF na ADPF 708 representa, por um lado, uma grande vitória para os partidos políticos da oposição proponentes da ação e as entidades da sociedade civil voltadas à proteção ambiental e da Amazônia no Brasil (que atuaram como amicus curiae), e, por outro lado, mais uma derrota acumulada para o governo Bolsonaro em temas ambientais no STF. É, sem dúvida, um dos casos mais importantes de litigância climática já julgados pela Corte, haja vista a grande repercussão do caso e o fato de o Fundo Clima envolver recursos financeiros bilionários provenientes do estrangeiro (por exemplo, da Noruega e da Alemanha) destinados à proteção, ao controle e ao enfrentamento do desmatamento na Amazônia. A decisão da Suprema Corte brasileira insere-se num contexto em que, segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), verifica-se um aumento progressivo do desmatamento na região nos últimos três anos [2] e a proximidade cada vez maior do ponto de não-retorno e "savanização" da maior floresta tropical do mundo, tal como apontado pelos cientistas [3].

Além disso, a fundamentação da decisão, tanto no voto-relator do ministro Barroso quanto no voto-vogal do ministro Luiz Edson Fachin), consolida e fortalece orientação jurisprudencial já vislumbrada em outros julgados do STF ao se valer de um diálogo com a jurisprudência recente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em matéria ambiental [4] e atribuir aos tratados internacionais em matéria ambiental o mesmo status e hierarquia normativa especial já reconhecida pelo STF para os tratados internacionais de direitos humanos em geral, ou seja, uma hierarquia supralegal. A respeito do tema, é importante esclarecer que o STF, ao interpretar o artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, em 2008, consolidou o entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil — como, por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), o Protocolo de San Salvador (1988) e os tratados do sistema global da ONU — são dotados do status normativo supralegal [5].

De acordo com o ministro Barroso, inclusive pela perspectiva da interdependência dos direitos humanos, os "tratados sobre direito ambiental constituem espécie do gênero tratados de direitos humanos e desfrutam, por essa razão, de status supranacional". O STF, é importante assinalar, já possuía precedente nesse sentido desde 2017. A ministra Rosa Weber, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.066, em decisão sobre a constitucionalidade de legislação que proibiu o uso de amianto, atribuiu o status de supralegalidade à Convenção da Basiléia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito (1989), equiparando-a aos tratados internacionais de direitos humanos.

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Do ponto de vista da hierarquia normativa, o reconhecimento do "status supralegal" dos tratados internacionais em matéria ambiental ratificados pelo Brasil, como, por exemplo, a Convenção-Quadro sobre Mudança Climática (1992), a Convenção-Quadro sobre Biodiversidade (1992) e o Acordo de Paris (2015), situa tais tratados internacionais acima de toda a legislação infraconstitucional brasileira — como, por exemplo, o Código Civil. Apenas a norma constitucional estaria hierarquicamente acima deles.

Na prática, tal entendimento permite a juízes e cortes de Justiça nacionais exercerem — inclusive de modo ex officio, conforme entendimento jurisprudencial da Corte IDH vinculativo para o Brasil[6] — o denominado "controle de convencionalidade" de leis e atos administrativos infraconstitucionais que estiverem em desacordo com tratados internacionais em matéria ambiental. A respeito do tema, destaca-se a recentíssima Recomendação CNJ nº 123/2022, ao apontar a necessidade de os órgãos do Judiciário observarem os tratados e convenções internacionais de direitos humanos, bem como a jurisprudência da Corte IDH, inclusive no sentido de exercerem o correlato controle de convencionalidade. Isso, por certo, reforça a responsabilidade internacional do Estado brasileiro em relação à proteção da floresta amazônica.

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A decisão do STF reconheceu a caracterização dos deveres constitucionais do Estado de proteção climática emanados do artigo 225 da Constituição e reforçados pela normativa internacional ambiental ratificada pelo Brasil, o que vincula e, portanto, limita a discricionariedade do Poder Executivo na matéria. A imposição constitucional de proteção climática é, por certo, incompatível com a "situação de colapso nas políticas públicas de combate às mudanças climáticas, sem dúvida alguma agravada pela omissão do Executivo atual", conforme referido na decisão. Ainda segundo o ministro Barroso, "não há uma opção juridicamente válida no sentido de simplesmente omitir-se no combate às mudanças climáticas". A omissão do governo federal no combate ao desmatamento na região amazônica e às mudanças climáticas também ensejam, segundo o STF, violação aos princípios da proibição de retrocesso ambiental e da vedação de proteção insuficiente ou deficiente para com o direito fundamental (e humano) a viver em um meio ambiente sadio e equilibrado (caput do artigo 225).

Nesse contexto e seguindo o caminho trilhado por outros tribunais e cortes de Justiça nacionais e internacionais mundo afora — como, por exemplo, o Tribunal Constitucional Federal alemão no julgamento emblemático do Caso Neubauer e Outros v. Alemanha, ocorrido em 2021 —, o STF não desperdiçou a oportunidade histórica de escrever um novo capítulo na sua jurisprudência ecológica, notadamente na seara da proteção climática. Igual posição jurisprudencial da corte resultou consagrada em boa parte dos votos já publicizados das ministras e ministros no início (ainda não concluído) do julgamento das ações da denominada "pauta verde" [7], como, por exemplo, no voto-relator da ministra Carmen Lúcia na ADPF 760 (Caso do PPCDAm), ao reconhecer a caracterização de um "estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental" derivado das diversas falhas estruturais nas políticas ambientais de controle ao desmatamento da Amazônia e de garantia de respeito aos povos indígenas, bem como, segundo palavras da ministra, um "quadro estrutural de ofensa massiva, generalizada e sistemática dos direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, do direito à saúde componente inarredável do direito à vida digna".

Por fim, registra-se que, na mesma semana em que a recente onda jurisprudencial conservadora e de retrocessos da Suprema Corte dos EUA atingiu também a proteção climática com o julgamento do Caso West Virginia v. EPA, o STF, na outra ponta do continente americano, seguiu o caminho oposto, colocando-se como verdadeiro guardião constitucional da Amazônia e do direito fundamental (e humano), titularizado pelas presentes e futuras gerações, a viver em um sistema climático íntegro, limpo e seguro.

 

(Versão preliminar do presente artigo foi publicada em inglês no Verfassungsblog. Disponível em: https://verfassungsblog.de/guardian-of-the-amazon/.)

 


[1] Houve inclusive a participação na audiência pública de representante do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e do Relator Especial sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU.

[3] LOVEJOY, Thomas E.; NOBRE Carlos. Amazon Tipping Point. Science Advances, v. 4, 2018.

[4] Opinião Consultiva nº 23/2017 sobre Meio Ambiente e Direitos Humanos e Caso Comunidades Indígenas Miembros de la Associación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina (2020).

[5] No sistema constitucional brasileiro, é importante sinalizar, também a equiparação dos tratados internacionais de direitos humanos à norma constitucional é possível, mas, para isso, é exigida, segundo entendimento do STF, a sua aprovação e ratificação por meio do mesmo procedimento especial adotado para as emendas constitucionais (art. 5º, § 3º).

[6] O tema do controle de convencionalidade (e o dever dos Juízes e Tribunais internos de exercê-lo) resultou consignado, de forma pioneira e paradigmática, em decisão da Corte IDH, por ocasião do julgamento do Caso Almonacid Arellano e Outros vs. Chile, em 26/9/2006. Como dito pelo Ministro Reynaldo Soares da Fonseca do STJ, no julgamento do AgRg no Recurso em HC 136.961/RJ, "os juízes nacionais devem agir como juízes interamericanos e estabelecer o diálogo entre o direito interno e o direito internacional dos direitos humanos, até mesmo para diminuir violações e abreviar as demandas internacionais" (STJ, AgRg no Recurso em HC 136.961/RJ, 5ª T., rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 15/6/2021).

[7] ADPF 760 (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia — PPCDAm), ADPF 735 (Operação Verde Brasil 2 e uso das Forças Armadas em ações contra delitos ambientais), ADPF 651 (Fundo Nacional do Meio Ambiente), ADO 54 (omissão do Governo Federal no combate ao desmatamento), ADO 59 (Fundo Amazônia), ADI 6.148 (Resolução Conama 491/2018 sobre padrões de qualidade do ar) e ADI 6.808 (Medida Provisória 1.040/2021, convertida na Lei 14.195/2021, sobre concessão automática de licença ambiental).

Autores

  • é juiz federal, professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutor, doutor e mestre em Direito Ambiental, membro do grupo de trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do CNJ, visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

  • é defensor público em SP e professor.

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