Opinião

PEC nº 1/2022: a pressa é inimiga da Constituição

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7 de julho de 2022, 17h03

Nos últimos dias o Congresso deu andamento para aprovar, a toque de caixa, a PEC nº 1/2022. Trata-se de proposta de emenda à Constituição que pretende modificar — mais uma vez —  o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para flexibilizar regras orçamentárias e fiscais, furar o teto de gastos, ampliar benefícios sociais e criar outros novos, a menos de três meses para as eleições nacionais.           

Tudo sob o pretexto do surgimento de uma "repentina" emergência fiscal, que coincidentemente precisou de tramitação urgente nos últimos dias para sua aprovação. Ocorre que a crescente inflação pressiona os preços e comprime o poder de compra há, pelo menos, um ano. Da mesma forma, os combustíveis dispararam no Brasil há meses, e a guerra da Ucrânia — outra justificativa utilizada pela base governista para a aprovação da proposta — já impacta a economia global desde o final do ano passado. Logo, conclui-se que os motivos repentinos invocados para aprovação de tal emenda não existem. A única emergência, para o governo federal, parece ser a eleição que se aproxima.

Para além do mérito da proposta e da aparente inconstitucionalidade de se tentar influenciar o pleito eleitoral por meio de transferência de recursos para grupos de interesse, sem planejamento e com prazo de duração limitado, há que se destacar a afronta ao rito para modificação da Constituição. Por ocasião do chamado "orçamento de guerra", já alertamos que a inovação criativa de algumas lideranças do Congresso na condução do processo legislativo poderia ser um precedente perigoso[1]. E novamente é isso o que se avizinha.

Isso porque, de forma temerária e casuística, uma maioria parlamentar ocasional adotou uma espécie de rito sumário para aprovação da PEC nº 1/2022, em grave violação aos dispositivos regimentais da Câmara e do Senado que dispõem sobre o processo de alteração do texto constitucional.

No Senado, casa de origem da proposta, todo o processo de discussão e votação se deu no Plenário, suprimindo-se o necessário exame prévio pela Comissão de Constituição e Justiça. Tampouco foram observados os prazos usuais para apresentação de emendas ou cumpridos os prazos mínimos de sessões para discussão, além de ter havido quebra de interstício entre as votações de primeiro e segundo turno. Tudo para que o processo de deliberação transcorresse em uma única tarde.

Na Câmara, as violações procedimentais foram ainda mais graves. A PEC nº 1/2022 foi apensada a outra proposta, que não tratava de matéria correlata, fazendo com que a proposição vinda do Senado pulasse etapas, avançando direto para a comissão especial sem o necessário exame de admissibilidade pela sua Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Além disso, a Mesa Diretora flexibilizou as regras para registro de presença dos parlamentares, permitindo que os congressistas fizessem o seu registro à distância por aplicativo, facilitando a realização das sessões para contagem de prazos e deliberação. Também não foram abertos prazos para emendas à PEC e para discussão e votação da matéria em dois turnos.

A existência de regras procedimentais para alteração constitucional não é mero capricho dos Regimentos Internos da Câmara e do Senado. Trata-se de desdobramento de uma escolha do legislador constituinte, que deu à Constituição a rigidez necessária para garantir que seu texto só pudesse ser — parcialmente — modificado após um longo e especialíssimo processo legislativo, com prazos específicos para apresentação de emendas, turnos de discussão e votação do parecer do Relator, além do exame de admissibilidade pelas Comissões de Constituição e Justiça das duas Casas legislativas. Isso tudo para que a proposta, que alterará o texto legal mais importante do Estado, possa ser amadurecida e bem discutida antes de ser votada pelos parlamentares.

Tal regramento busca dar estabilidade ao texto Constituição, dificultar o seu processo de modificação e assegurar que as emendas constitucionais que venham a ser aprovadas, sejam, de fato, fruto de debate, reflexão e consenso mínimo entre os congressistas.

Por mais meritória que seja — e, neste caso, não o é —, as emendas constitucionais não podem atropelar o devido processo legislativo com a supressão de prazos ou ignorância de etapas essenciais. Isso porque, ao fazê-lo, banaliza-se o processo de modificação da Constituição, colocando em risco a qualidade do texto, a supremacia de tais normas e a estabilidade das instituições democráticas, das garantias fundamentais e do Estado de Direito. O perigoso precedente, aparentemente, está virando a regra do jogo ao arrepio da Constituição.


[1] LUTAIF, M. K.; GUIMARAES, L. G. F. Estado, Constituição e o perigoso precedente do orçamento de guerra. In: CUNHA FILHO, A. J.; ARRUDA, C. S. L. de; ISSA, R. H.; SCHWIND, R. W. (Orgs.). Direito em tempos de crise: Covid-19. 1ª Ed. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 297-306.

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