Direitos Fundamentais

A Suprema Corte dos EUA e o direito fundamental à posse de armas de fogo

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26 de agosto de 2022, 8h00

Em 23/6/2022, no caso New York State Rifle & Pistol Association vs. Bruen, Superintendent of New York State Police, a Suprema Corte americana divulgou decisão altamente controversa, afirmando que os Estados não podem estabelecer diferenciações entre espaços públicos e espaços privados para fins de exercício do direito ao porte de armas previsto na Segunda Emenda da Constituição. Com base nesse entendimento, a maioria dos Justices julgou inconstitucional uma lei de 1913 do Estado de Nova York que exigia uma justificativa especial (proper-cause) para que cidadãos pudessem manter e portar armas em público. O objetivo deste texto é explicar o que efetivamente foi decidido, mediante uma síntese dos fundamentos esgrimidos pelos Justices em seus votos, para, ao final, tecer algumas considerações de natureza crítica e comparativa.

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Antes, porém, importante analisar duas decisões anteriores julgadas pela Suprema Corte sobre o mesmo tema. A primeira delas foi proferida no caso District of Columbia vs. Heller. O distrito de Colúmbia, por meio do District's Firearms Control Regulation Act, de 1975: a) proibiu genericamente o registro de armas de mão (handgun); b) proibiu o porte de armas não licenciadas e de qualquer arma "perigosa" passível de ser ocultada pelo seu portador; c) exigiu que as armas de fogo armazenadas permanecessem desmontadas/travadas. Com base nessa lei, Dick Heller, morador do distrito, teve pedido de autorização para manter seu porte de armas negado e, em 2003, ajuizou ação questionando a constitucionalidade da referida legislação. Em 2007 o Tribunal de Apelações para o distrito de Colúmbia julgou inconstitucionais os itens a e c acima expostos, bem como limitou a aplicação do item b, sob o argumento de violação à Segunda Emenda [1].

Em 2008 o caso chegou à Suprema Corte, que, por cinco votos a quatro, ratificou a decisão proferida pelo Tribunal de Apelação. Trata-se de uma decisão importante, pois não só definiu a interpretação que seria adotada em casos posteriores pela Suprema Corte quanto ao direito previsto na Segunda Emenda, como também representou o grande triunfo da teoria que se convencionou chamar de "originalismo", segundo a qual a interpretação da Constituição deve ser efetuada com base no significado público normativo difundido à época em que ela foi escrita [2]. Em linhas gerais, a maioria da corte entendeu que a Segunda Emenda introduziu o direito constitucional ao porte de armas de fogo, não se tratando, contudo, de um direito ilimitado, sendo possível, por exemplo, a proibição de porte e manuseio de armas por pessoas com deficiência mental e a proscrição do uso daquelas armas consideradas perigosas ou de uso incomum [3].

Tal decisão, como era de se esperar, deixou muitas questões em aberto, tais como: 1) a Segunda Emenda também protege o direito de os cidadãos portarem armas em público?; 2) quais armas são consideradas "perigosas" ou "de uso comum/incomum"?; c) os Estados possuem autonomia para estabelecer restrições substanciais ao porte/posse de armas? Por isso, não demorou muito para que em 2010 a Suprema Corte viesse a proferir uma nova decisão sobre o tema no caso McDonald vs. City of Chicago, no qual firmou o entendimento de que o direito ao porte e manuseio de armas de fogo, para além de protegido pela Segunda Emenda, está incorporado à cláusula do devido processo legal prevista na Décima-Quarta Emenda [4] e pode ser oposto também aos Estados Federados, na medida em que figura "[…] entre aqueles direitos fundamentais necessários ao sistema de liberdade ordenada da Nação" [5].

Transcorrida mais de uma década do julgamento do caso McDonald vs. City of Chicago, uma nova decisão sobre a correta interpretação da Segunda Emenda da Constituição Americana foi proferida. No caso New York State Rifle & Pistol Association vs. Bruen, Superintendent of New York State Police [6], a corte julgou inconstitucional uma lei do Estado de Nova York que (1) criminalizava a posse de arma de fogo sem prévia licença, seja em espaços públicos ou privados, e (2) exigia do indivíduo que deseja portar uma arma em espaços públicos a apresentação de uma justificativa especial (proper-cause). De acordo com a opinião da maioria dos Justices, "Nada no texto da Segunda Emenda estabelece uma distinção entre espaços públicos e espaços privados no que diz respeito ao direito de manter e portar armas, e a definição de ‘manter’ naturalmente engloba porte público. Além disso, a Segunda Emenda garante um ‘direito individual de possuir e portar armas de fogo em caso de confronto, e o confronto certamente pode ocorrer fora de casa" [7].

Ainda de acordo com a posição que prevaleceu no julgamento, o requisito da apresentação de uma justificativa especial para fins de obtenção de uma licença irrestrita não é capaz de conviver com a tradição de regulação de armas de fogo nos Estados Unidos, não sendo compatível com o direito previsto na Segunda Emenda e com a garantia do devido processo legal da Décima-Quarta Emenda. Conforme consta na ementa da decisão, embora, de fato, evidências históricas demonstrem que o direito de portar armas sempre esteve sujeito à regulação, nenhuma das limitações questionadas quanto à sua constitucionalidade visavam impedir cidadãos cumpridores da lei de portar armas em público para fins de autodefesa [8].

Nesse sentido, a maioria dos integrantes da Suprema Corte entendeu que, para o exercício do direito constitucional ao porte de armas, os cidadãos não estão obrigados a apresentar ao governo uma justificativa especial. Em resumo: "A existência de justa causa prevista na lei de Nova York viola a Décima-Quarta Emenda ao impedir que cidadãos cumpridores da lei com necessidades ordinárias de autodefesa exerçam seu direito de manter e portar armas em público" [9]. O condutor do voto da maioria foi o Justice Clarence Thomas, que foi acompanhado pelos Justices Samuel Alito, Neil Gorsuch, Amy Coney Barrett, Brett Kavanaugh e John Roberts. Kavanaugh, em especial, apresentou voto à parte que merece ser analisado [10].

Em seu voto, que foi seguido pelo Justice John Roberts, Kavanaugh destacou dois pontos quanto à extensão da decisão. Primeiro, diz ele, a decisão não proíbe a regulação dos Estados relativamente à compra e a posse de armas de fogo, mas tão-somente declarou inconstitucional a imposição de requisitos altamente discricionários para a expedição de licenças, a exemplo da exigência de justificativa especial prevista na lei contestada, que acabava por excluir da proteção da Segunda Emenda cidadãos que possuíam apenas um interesse ordinário de autodefesa. Assim, legislações estaduais que condicionam a obtenção da licença para o porte de armas à satisfação de requisitos objetivos, tais como ausência de ficha criminal e prévio treinamento, não são afetadas pela decisão. Em segundo lugar, na linha do entendimento firmado nos casos Heller e McDonald, afirmou que a Segunda Emenda não garante um direito absoluto, sendo possível uma variedade de limitações, a exemplo da proibição de porte de armas consideradas perigosas ou de uso incomum.

Já o Justice Stephen Breyer apresentou voto divergente, que foi seguido pelas Justices Sonia Sotomayor e Elena Kagan. Em linhas gerais, trata-se de um voto de protesto, muito semelhante ao voto conjunto apresentado no caso Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization. Breyer destacou o número de mortes causadas por armas de fogo nos Estados Unidos e afirmou que a decisão da corte tende a agravar esse quadro ao inibir a tentativa de muitos estados em reduzir a violência armada a partir da imposição de limites substanciais para a compra e porte de armas de fogo. Finalizou seu voto, dizendo que não concorda com a opinião da maioria, pois ela foi tomada sem levar em conta o interesse do estado de Nova York de garantir a segurança de seus cidadãos e sem considerar os efeitos potencialmente mortais da decisão.

Em síntese, é possível afirmar que o que a Suprema Corte decidiu no caso New York State Rifle & Pistol Association vs. Bruen, Superintendent of New York State Police, é que são inconstitucionais leis que estabeleçam o atendimento de requisitos especiais por parte do cidadão que deseja obter licença para o porte de armas de fogo, seja ela destinada ao uso de armas em espaços públicos, seja em espaços privados. Dito de outro modo, limitações ao direito protegido pelas Segunda e Décima-Quarta Emendas são constitucionais desde que (1) não diferenciem espaços públicos e privados para fins de exercício do direito; (2) não confiram ao governo poderes altamente discricionários para a definição daqueles que podem ou não obter a licença, e (3) não excluam do seu exercício do direito os cidadãos que possuem somente um interesse ordinário de autodefesa.

À vista da breve apresentação da prática decisória da Suprema Corte norte-americana no que diz respeito aos tipos de limitações que podem ser impostas ao exercício do direito constitucional de portar armas de fogo, é importante lançar ao menos um brevíssimo olhar sobre o cenário brasileiro, em especial considerando as medidas de flexibilização implantadas pelo atual governo federal, que, entre outras facilidades, aumentou a quantidade de armas que podem ser legalmente adquiridas e facilitou a concessão do porte de armas.

A despeito de não faltarem vozes aclamando tais medidas, o fato é que o caso brasileiro é incomparável ao norte-americano, já pelo fato de que a Constituição Federal de 1988 não consagrou um direito fundamental à posse e ao porte de armas de fogo, nem de modo explícito, nem de maneira implícita.

Se, por um lado, a exigência de um desarmamento total da população civil soa um tanto exagerada, posto que limitaria substancialmente a possibilidade real do exercício da auto defesa, ainda mais tendo em conta a falta de efetividade no que diz respeito aos deveres de proteção estatais com relação à vida, integridade física e outros direitos fundamentais, as medidas governamentais acima referidas se revelam completamente desarrazoadas, e, ao fim e ao cabo, violam a assim chamada proibição de proteção insuficiente.

Em uma palavra final, a imposição de exigências objetivas para a aquisição e posse de armas — a exemplo das que vigoravam antes da flexibilização levada a efeito pelo governo Bolsonaro —, especialmente quando se trata da concessão de porte, não afeta, de modo desproporcional, os direitos de liberdade dos cidadãos, tampouco (e muito menos) invade o seu respectivo núcleo essencial.

 


[1] ALFAIA, Fábio Lopes. Disctrict of Columbia v. Heller, 2008: originalismo, ativismo judicial conservador e o direito de portar armas. In.: BECKER, Rodrigo Frantz (coord.). Suprema Corte dos Estados Unidos: casos históricos. São Paulo: Almedina, 2022, p. 879.

[2] Obviamente trata-se de uma teoria muito mais complexa, mas que não será aqui abordada. Recomendamos a leitura da obra do Justice Antonin Scalia sobre o tema, que além do maior expoente da teoria originalista nos Estados Unidos também foi o responsável pela redação da opinião da maioria da Corte neste caso. Ver SCALIA, Antonin. Uma questão de interpretação: os tribunais federais e o direito. Tradução de Samuel Sales Fonteles. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2021.

[3] Informações retiradas da ementa da decisão, cujo inteiro teor está disponível em https://www.supremecourt.gov/opinions/07pdf/07-290.pdf.

[4] Note-se que argumento semelhante foi utilizado para Suprema Corte para a revogação do famoso caso Roe vs. Wade. Para mais detalhes sobre a decisão, ver https://www.conjur.com.br/2022-jul-05/opiniao-revogacao-roe-vs-wade-direito-aborto.

[5] "[…] among those fundamental rights necessary to the Nation’s system of ordered liberty." Trecho retirado da ementa da decisão, disponível em https://www.supremecourt.gov/opinions/09pdf/08-1521.pdf.

[7] Nothing in the Second Amendment's text draws a home/public distinction with respect to the right to keep and bear arms, and the definition of "bear" naturally encompasses public carry. Moreover, the Second Amendment guarantees an "individual right to possess and carry weapons in case of confrontation", id., at 592, and confrontation can surely take place outside the home.

[8] In sum, the historical evidence from antebellum America does demonstrate that the manner of public carry was subject to reasonable regulation, but none of these limitations on the right to bear arms operated to prevent law-abiding citizens with ordinary self-defense needs from carrying arms in public for that purpose.

[9] New York's proper-cause requirement violates the Fourteenth Amendment by preventing law-abiding citizens with ordinary self-defense needs from exercising their right to keep and bear arms in public.

[10] Os Justices Samuel Alito e Amy Coney Barret também apresentaram votos à parte, mas abordando questões secundárias que não impactam na ratio decidendi da decisão, motivo pelo qual não serão objeto de análise detalhada.

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