Opinião

Revogação de Roe vs. Wade e o direito ao aborto nos Estados Unidos

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Luis Henrique Braga Madalena

    é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Uerj mestre em Direito Público pela Unisinos vice-diretor Financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

  • Lucas Sipioni Furtado de Medeiros

    é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Direito Constitucional e em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

5 de julho de 2022, 15h19

Os rumores surgidos no início de maio após o site Politico divulgar o que seria o rascunho da opinião majoritária da Suprema Corte americana no caso Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization se confirmaram [1]. Em decisão divulgada neste último 24/6/2022, a corte revogou a histórica decisão proferida no caso Roe vs. Wade, que havia garantido o direito ao aborto às mulheres. Sem entrar no mérito de acerto ou não decisão, o objetivo do presente texto é apresentar um panorama geral sobre a questão: o que foi decidido no caso Roe vs. Wade, o que foi decidido no caso Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization e as possíveis consequências dessa decisão no cenário político norte-americano.

Roe vs. Wade é um dos casos mais famosos já julgados pela Suprema Corte Americana [2]. Jane Roe era o pseudônimo de Norma MacCorvey, uma mãe solteira, à época grávida pela terceira vez, e que já não tinha a guarda de seus dois primeiros filhos em decorrência de inaptidão para a maternidade — não possuía residência fixa, era usuária de drogas e já fora moradora de rua. Seu desejo era interromper essa terceira gestação, mas em condições seguras. Ocorre que o Estado em que ela residia, Texas, apenas permitia o aborto nos casos em que houvesse risco de morte à mãe, o que não era o caso. Por isso, recorreu ao Tribunal Federal de Dallas requerendo a autorização para que abortasse e a declaração de inconstitucionalidade de todas as leis estaduais que baniam indiscriminadamente a prática.

Henry Wade, promotor do estado do Texas, se manifestou alegando (1) que o aborto era uma forma de assassinato e, portanto, deveria ser proibido, de modo que a regulamentação que o Estado do Texas dispensou ao tema era constitucional, e (2) que o Tribunal Federal do Distrito de Dallas não possuía competência para decidir a questão em âmbito nacional. O Tribunal julgou procedentes em parte os pedidos de Roe. Declarou inconstitucionais os dispositivos do Código Penal do Texas que tratavam do aborto sob o argumento de que era uma legislação excessivamente restritiva e de que o direito da mulher de ter ou não um filho estava amparado pelas Nona e Décima Quarta Emendas da Constituição. Por outro lado, não autorizou o aborto no caso de Roe, sob a justificativa de que sua gravidez já passava de seis meses.

Três anos depois [3] a questão chegou à Suprema Corte americana, que por sete votos a dois julgou inconstitucionais as leis estaduais que restringiam excessivamente o aborto. Duas foram as principais linhas argumentativas utilizadas: a) leis estaduais que somente autorizam o aborto quando necessário para salvar a vida da gestante, sem levar em consideração o estágio da gravidez, violam a Décima Quarta Emenda, que em sua primeira Seção proíbe leis que restringem os privilégios ou imunidades dos cidadãos americanos ou os prive de sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; b) o aborto está amparado pelo direito à privacidade, de modo que, a depender do estágio da gravidez e dos riscos envolvidos na gestação, o interesse estatal em preservar a vida do feto e da gestante, cede em face do direito da mãe realizar o aborto.

É importante notar, contudo, que a corte não conferiu ao direito de abortar um caráter absoluto, mas julgou inconstitucionais leis que vedavam de forma genérica o aborto sem levar em conta o tempo da gestação. Em linhas gerais, o que ficou decidido é que quando não há risco de morte da gestante não há fundamento para proibir ou mesmo restringir o aborto, sendo que para definir quando há risco de morte foi adotado um parâmetro trimestral [4]. Segue trecho contido na ementa da decisão [5]:

a) Até o final do primeiro trimestre, a decisão sobre o aborto e sua efetivação devem ser deixadas ao julgamento do médico especialista responsável pela gestante;

b) Após o primeiro trimestre, o Estado, com o objetivo de resguardar a saúde da gestante, pode, se assim desejar, regular o procedimento de aborto de maneiras compatíveis com tal objetivo;

c) No último trimestre, o Estado, com o objetivo de resguardar a potencialidade da vida humana, pode, se assim desejar, regular e até proibir o aborto, exceto quando necessário, de acordo com julgamento médico apropriado, para a preservação da vida ou saúde da mãe.

Após essa decisão, a temática voltou à corte algumas vezes. No caso Harris vs. MacRae, julgado em 1980, decidiu a corte que era constitucional a Emenda Hyde, uma legislação federal que proibia o uso de verbas federais para custear serviços de aborto. No caso Webster vs. Reproductive HealthKit Services, julgado em 1989, declarou que eram constitucionais políticas públicas a favor da gravidez e contra o aborto. Já no caso Planned Parenthood of Southeastern Pensilvânia vs. Casey, quando chamada para analisar a constitucionalidade de uma legislação do estado da Pensilvânia que estabeleceu uma série de condições para a realização do procedimento de aborto, tais como (1) o consentimento informado da gestante, (2) a espera mínima de 24 horas para a prática, (3) a comprovação de que o marido foi notificado do aborto no caso de mulheres casadas, e (4) a permissão de um dos responsáveis no caso de gestantes menores de idade, a Suprema Corte, em decisão apertada, reafirmou o direito constitucional ao aborto garantido no caso Roe vs. Wade, mas rejeitou a regra dos trimestres como uma diretriz adequada para tratar da questão.

A partir do caso Casey, o critério de proibição/permissão passou a ser conhecido como ônus indevido (undue burden), no sentido de que são inconstitucionais leis que insiram obstáculos desproporcionais à mulher que busca realizar o aborto antes que o feto atinja a viabilidade (após o terceiro trimestre). Nesse sentido, quanto a contestada lei da Pensilvânia, a Suprema Corte julgou inconstitucional a exigência de consentimento do marido, e constitucionais a exigência de consentimento informado, a necessidade de espera de um período de 24 para a realização do aborto e a exigência de consentimento dos pais, este podendo ser substituído por uma autorização judicial [6].

Na semana passada mais uma decisão sobre o tema foi tomada. O julgamento ocorreu no caso Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization, por meio do qual esta última questionou a constitucionalidade de uma lei do estado do Mississipi que proibia a prática do aborto caso a gestação fosse superior a 15 semanas, salvo em situações excepcionalíssimas. Inicialmente, o Tribunal Federal Distrital deu razão à Organização e proibiu permanentemente a aplicação da lei em questão, sob a justificativa de que ela era incompatível com os precedentes formados pela Suprema Corte nos casos Roe vs. Wade e Planned Parenthood of Southeastern Pensilvânia vs. Casey. Em sede de recurso o caso chegou à Suprema Corte americana, que em decisão histórica firmou o entendimento de que a Constituição não prevê um direito ao aborto, revogando assim as decisões Roe e Casey [7].

No voto condutor da opinião majoritária, o Justice Samuel Alito afirmou que "A Constituição não faz referência ao aborto, e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer disposição constitucional, incluindo aquela em que os defensores de Roe e Casey agora confiam — a Cláusula do Devido Processo Legal da Décima Quarta Emenda" [8]. Concluiu dizendo que o aborto é uma questão moral profundamente controversa na sociedade americana e que por ela deve ser resolvido, através de seus representantes eleitos: "A Constituição não proíbe os cidadãos de cada Estado de regular ou proibir o aborto. Roe e Casey arrogaram essa autoridade. Agora anulamos essas decisões e devolvemos essa autoridade ao povo e seus representantes eleitos" [9]. Os Justices Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett acompanharam Alito, sendo que Thomas e Kavanaugh apresentaram votos à parte.

O Justice Clarence Thomas, em seu voto, destacou o fato de que a decisão não atinge precedentes que não tratam especificamente sobre o aborto. Assim, decisões como as que garantiram a indivíduos casados o acesso a métodos contraceptivos (Griswold vs. Connecticut) e que julgaram inconstitucionais leis que proibiam atividades sexuais entre pessoas do mesmo sexo (Lawrence vs. Texas) permanecem inalterados. Contudo, segue ele, nada impede que adotando o mesmo entendimento agora firmado de que a Décima Quarta Emenda, por si só, não assegura quaisquer direitos subjetivos concretos aos cidadãos americanos, tais decisões sejam revistas em processos próprios – no seu entender, inclusive, a Corte tem o dever de corrigir os erros que foram cometidos quando da fixação desses precedentes, que devem ser revogados.

O Justice Brett Kavanaugh também apresentou voto separado, abordando algumas questões adicionais que merecem ser enfrentadas pela Corte. Segundo ele, em especial, a superação do precedente Roe vs. Wade não implica na possibilidade de se barrar a viagem de uma cidadã de um Estado que proíbe o aborto para um Estado que o permite, haja vista o direito constitucional de ir e vir, de modo que nada impede que uma residente de um estado cuja legislação proíbe o aborto vá para um outro Estado realizar o procedimento. Tal entendimento, contudo, assim como as considerações feitas pelo Justice Thomas, não fez parte da opinião majoritária da corte, de modo que ela pode (e deve) vir a ser provocada sobre tais questões no futuro.

Já os Justices Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan apresentaram um voto conjunto discordando da opinião majoritária. Segundo eles, revogar o precedente Roe vs. Wade é o mesmo que relegar às mulheres uma cidadania de segunda classe. Além disso, arguiram que ao contrário do que sustentou a maioria o direito ao aborto está assentado "[…] em conceitos constitucionais fundamentais de liberdade individual e de direitos iguais dos cidadãos para decidir o rumo de suas vidas" [10]. Com base nesse e em outros argumentos, dissentiram: "Com pesar — por esta Corte, mas, mais ainda, pelas muitas milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma proteção constitucional fundamental — discordamos" [11]. Foi, acima de tudo, um voto de protesto.

Por fim, o Chief of Justice John Roberts apresentou voto divergente discordando tanto da opinião da maioria quanto da opinião da minoria. Segundo ele, o voto condutor foi além do necessário para a solução da controvérsia posta diante da corte, qual seja, se a proibição do aborto a qualquer tempo antes da viabilidade do feto (antes do terceiro trimestre) é inconstitucional. A resposta é não, mas não há motivos para para se ir além e negar por completo a existência do direito ao aborto reconhecido no caso Roe. Com efeito, votou apenas no sentido da constitucionalidade da lei atacada, sem acompanhar a opinião da Corte quanto a inexistência de um direito constitucional ao aborto.

Finalizada essa breve explicação da decisão, a questão é tentar inferir as suas consequências. De início, é preciso que fique claro que a Suprema Corte não proibiu o aborto, e sim decidiu que se trata de um assunto a ser tratado pelos Estados, pelo povo e seus representantes eleitos, e não pelo Poder Judiciário. Com efeito, a principal consequência da decisão é que agora cada Estado tem total autonomia para decidir se proíbe, autoriza ou até mesmo criminaliza o aborto, e em quais situações.

Nesse ponto, de acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Guttmacher, organização voltada para o avanço na proteção dos direitos sexuais e reprodutivos mundo afora, 26 Estados americanos devem proibir o aborto na máxima extensão possível, sendo que 13 deles já têm leis engatilhadas para entrar em vigor assim que superado o procedente Roe vs. Wade [12]. Com efeito, se confirmada a pesquisa, a tendência é que mais da metade dos Estados promulguem leis que proíbam o aborto em geral, independentemente do tempo da gestação [13]. Resta saber a extensão de tais leis; se irão, por exemplo, proibir o aborto em todo e qualquer caso, mesmo quando a gestante for vítima de estupro ou for menor de idade, ou mesmo autorizá-lo em todo e qualquer caso, independente do tempo de gestação.

Se os estados optarem por editar leis radicais, tanto no sentido da permissão como no sentido da proibição/criminalização, é de se notar que a Suprema Corte muito provavelmente será acionada para decidir sobre a constitucionalidade de tais leis, notadamente porque a opinião da maioria não fez qualquer referência à extensão dessa decisão. Como bem destacaram os Justices dissidentes em seu voto conjunto, nada na decisão impede expressamente que sejam editadas legislações proibindo o aborto em todo e qualquer caso e independentemente do período da gestação, inclusive nos casos de estupro e/ou incesto [14]. Outras consequências da decisão também não foram bem manejadas pelo tribunal. Ficou em aberto, por exemplo, saber se estados que proibirem o aborto poderão proibir também a viagem de mulheres a Estados que o permitem para fins de realização do procedimento, ou mesmo se poderão puni-la depois que ela retornar, de forma retroativa.

Seja como for, somente podemos aguardar as legislações estaduais que serão editadas para então compreender o real impacto do novo entendimento no cenário sociopolítico americano. Em suma, o tema persistirá polêmico, agora agregando-se um novo elemento à discussão com o novo precedente. O tema põe a nu as dificuldades contemporâneas em fixar os limites entre o que compete à política e o que compete ao Direito; o suum cuique tribuere entre essas instâncias ainda está longe de ser definido. Até lá, o caso repercutirá muito em todo o debate sobre o aborto mundo afora.

 


[2] Para uma análise mais completa do caso, com um detalhamento dos votos dos juízes e do contexto social da época, ver NEVES, Emanuela de Oliveira; GOMES, Lucas Sousa. Roe v. Wade, 1973: um caso para além da liberdade feminina. In.: BECKER, Rodrigo Frantz. Suprema Corte dos Estados Unidos: casos históricos. São Paulo: Almedina, 2022, p. 573-591 e DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: uma leitura moral da constituição norte-americana. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 67 e ss.

[3] Note-se que, pelo decurso de tempo, quando do julgamento da questão pela Suprema Corte o filho de Norma MacCorvey já havia nascido, o que gerou um debate interno entre os Justices sobre a possibilidade (ou não) de reconhecimento do recurso.

[4] Em momento algum a Corte entrou no debate sobre o surgimento da vida, sendo os marcos temporais relativos ao risco do morte da gestante.

[6] PEREIRA, Thomaz H. J. de A. Caso dos EUA revela desafios e limites da regulamentação do aborto. Revista Consultor Jurídico, 21 nov. 2015. Disponível em https://www.conjur.com.br/2015-nov-21/observatorio-constitucional-eua-revela-desafios-limites-regulamentacao-aborto. Acesso em 24 jun. 2022.

[7] Informações retiradas da minuta da decisão, que pode ser encontrada aqui: https://www.supremecourt.gov/opinions/21pdf/19-1392_6j37.pdf.

[8] The Constitution makes no reference to abortion, and no such right is implicitly protected by any constitutional provision, including the one on which the defenders of Roe and Casey now chiefly rely – the Due Process Clause of the Fourteenth Amendment.

[9] The Constitution does not prohibit the citizens of each State from regulating or prohibiting abortion. Roe and Casey arrogated that authority. We now overrule those decisions and return that authority to the people and their elected representatives.

[10] […] in core constitutional concepts of individual freedom, and of the equal rights of citizens to decide on the shape of their lives.

[11] With sorrow – for this Court, but more, for the many millions of American women who have today lost a fundamental constitutional protection — we dissent.

[12] […] 26 states are certain or likely to ban abortion to the fullest extent possible, including 13 states that have "trigger" laws in place that will automatically enact bans—some within days or even hours of today’s decision. Confira em https://www.guttmacher.org/news-release/2022/us-supreme-court-overturns-roe-v-wade.

[13] Ver também levantamento realizado pelo próprio Conjur, disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jun-24/decisao-suprema-corte-nao-acaba-aborto-eua.

[14] […] no language in today’s decision stops the Federal Government from prohibiting abortions nationwide, once again from the moment of conception and without exceptions for rape or incest.

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