Opinião

A revivescência da democracia e a força simbólica do Direito

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11 de agosto de 2022, 12h06

1. Uma Carta, uma luta
Outrora convento franciscano, hoje Faculdade de Direito. Outrora a oratio, agora a lectio. Com uma história assim complexa, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco se inscreveu, entre lutas imaginárias e reais, num território livre. Ali, até mesmo as pedras (gélidas e cinzas) falam. Elas ecoam história e presença simbólica.[1] E a história ecoa as lições que diuturnamente recolhe, das salas de aula, dos encontros estudantis, dos congressos, das palestras, das atividades culturais e de ensino que abriga.

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A sua vocação não é outra senão a do cultivo do Direito (conjunto de regras e de instituições), em sua conexão mais profunda com o sentido (ambíguo, tênue e distante) que decorre da noção de Justiça. A lei é a salvaguarda (concreta, próxima e positiva) da justiça, e, por isso, o espaço normativo que acolhe em seu seio a lógica da representação política do povo.

Daí, a mais profunda interligação das exigências do Direito com as (próprias e intrínsecas) exigências da Democracia. É necessário respeitar a lei para respeitar a democracia, e vice-versa, num circuito de interligações que faz da Democracia o mecanismo de produção das condições do convívio social, regulado, pacífico, alternado, fazendo do voto o motor deste processo.

2. O reavivamento da Carta de 1977: a fundação de uma tradição livre e democrática
A Carta aos Brasileiros, lida por Goffredo Telles Junior em 8 de agosto de 1977, deixa de ser um ato isolado, cuja memória evoca o passado autoritário do período da ditadura civil-militar (1964-1985). A Carta aos Brasileiros é um espelho do passado histórico.

Mas, ao ser retomada, por seus organizadores e pela Diretoria da Faculdade de Direito, agora se reaviva, para se tornar uma verdadeira tradição (traditio, latim), pois se desdobra em dois documentos: a Carta de 1977 e a Carta de 2022. Nesta entrega do passado ao presente, nos reencontramos com a possibilidade do passado se presentificar, motivo pelo qual a Carta volta a assumir o seu valor simbólico e histórico, mas também, de documento ativo, livre e democrático.

Nesta nova tradição, uma transmutação acaba por acontecer. De um ato isolado do passado, memorizado para gerações, estático, se torna agora um ato dinâmico. E isso porque o documento passa a sinalizar o estado de saúde da democracia brasileira, e, quando o trem está próximo de descarrilar, nos desrumos e nos desvãos das diversas formas de manifestação do autoritarismo, ela se ativa para iluminar novamente os trilhos democráticos.

3. O lançamento da Carta de 2022: entre movimentação e ataques
Após o lançamento da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros pelo Estado Democrático de Direito (26 de julho de 2022),[2] documento de natureza suprapartidária e que congrega apoio para a proteção da democracia em face de ameaças ao processo eleitoral, aos tribunais e ao sistema das urnas, após um pequeno núcleo de pouco mais de três mil assinaturas, a primeira notícia (espantosa, surpreendente e alvissareira): em 24 horas, cem mil assinaturas. Em seguida, as notícias se avolumam: está-se próximo da data (11 de agosto de 2022), assim como se está próximo do número de um milhão de assinaturas,[3] com adesões importantes de juíze(a)s, advogado(a)s, promotores(as), ministro(a)s, professore(a)s, artistas, escritore(a)s, empresário(a)s, militantes, ativistas, centrais sindicais, movimentos sociais, cidadãos.

Tendo registrado mais de 2400 ataques hackers implementados contra o site da Faculdade de Direito da USP, no curto período entre 26/7/2022 e 28/7/2022,[4] mas devidamente monitorado por equipes técnicas, o sistema se manteve ativo, permitindo que o processo de ampliação de adesões tivesse continuidade, o que somente veio fortalecendo a Carta. Desde então, há diversas notícias nos meios de comunicação, debates, discussões e opiniões a favor e contra.

4. A força do direito e a negação da força como direito: as cartas e os textos
O Direito se vale da força (estatal; legal; regulada) para exercer a tarefa de regulação do convívio e solução dos conflitos sociais. Mas, o Direito não suporta a força bruta, nega a violência (redutora ao irracional e ao desmedido) como alternativa; quando esta tenta sufocar aquele, eis que Goffredo proclama:

"Ninguém se iluda. A ordem social justa não pode ser gerada pela pretensão de governantes prepotentes. A fonte genuína da ordem não é a Força, mas o Poder.
O Poder, a que nos referimos, não é o Poder da Força, mas um Poder de persuasão." (Telles Junior, Carta aos Brasileiros, 1977)
[5]

É por isso que, com clareza e exatidão, a nova Carta (2022) se apoia simplesmente na Constituição Federal de 1988. Assim, ali se pode ler:

"Sob o manto da Constituição de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para o País sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular".[6]

O seu texto é acertado — ainda que minimalista, porque foca no que é central —,[7] pois todo o Direito se organiza a partir da Constituição. Mais do que isso, todo o Direito se resguarda na Constituição e, em particular, se reveste da importância simbólica que a Constituição Federal de 1988 teve e tem tido (para todo o povo brasileiro), ao ser o melhor, o mais avançado e o mais democrático de todos os textos da história do constitucionalismo brasileiro. E, para evocar uma lição de Goffredo:

"A escolha legítima dos legisladores só se pode fazer pelos processos fixados pelo Povo em sua Lei Magna , por ele também elaborada, e que é a Constituição." (Telles Junior, Carta aos Brasileiros, 1977).[8]

5. O território livre e a leitura pública
A revigorante e muito emocionante leitura pública da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros pelo Estado Democrático de Direito, no dia 11 de agosto de 2022, 195 anos após a fundação dos Cursos de Direito no Brasil, reascende o humor favorável à defesa da democracia e esporeia a esfera pública no sentido da defesa da liberdade.

Num território assim livre e democrático, a multidão se avolumou, para presenciar um ato histórico. São dezenas, centenas, milhares de pessoas. Assim, as presenças são muitas e marcantes. Neste ato, percebe-se nos olhares das pessoas presentes que havia sim uma avidez por algo desta natureza.

Num cadinho de emoções democráticas, se desanuvia o fantasma da ameaça às eleições livres e democráticas, antecipando a reação a qualquer episódio que evoque a ruptura ou a sustentação de atos anti-democráticos.

Neste sentido, somos testemunhas históricas.

6. Largo de São Francisco: um palco para a cultura democrática
Havia tempos que o Largo andava em dívida com a sua "vocação democrática". O marasmo de suas pedras e arcadas já fazia ressentir uma desistência. Por isso, é tão importante a sua revivescência.

O ato devolve à Faculdade de Direito da USP um protagonismo, 195 anos após a fundação dos cursos jurídicos no país, 34 anos corridos da Constituição Federal de 1988, 45 anos após 1977, 37 anos após o fim da ditadura civil-militar, graças à visão que o Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito tem acerca da democracia, da liberdade de imprensa e da cultura de respeito aos direitos humanos. Apesar da diversidade de linhas de pesquisa, de visões de mundo e de concepções acerca do Direito, ali faz-se a interconexão entre democracia e direitos humanos como um ponto de consenso, através de abordagens variadas.

É certo, após a sua leitura pública, muito há que ser feito.[9] Mas, sem a sua leitura pública, a impressão seria de que muito pouco está sendo feito. A Carta tem, efetivamente, o potencial de ser um divisor de águas.

Este território do Largo de São Francisco reafirma o seu compromisso, reatando a relação entre passado e presente, apontando para a liberdade, e, sobretudo, resistindo às ameaças à democracia.

Viva a liberdade! Viva a democracia!

Estado de Direito sempre!

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Referências
BARROSO, Luís Roberto. Populismo, autoritarismo e resistência, in ConJur, 04.agosto.2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-ago-04/luis-roberto-barroso-populismo-autoritarismo-resistencia. Acesso em 04 de agosto de 2022.

BITTAR, Eduardo C. B. Semiótica, Direito & Arte: entre Teoria da Justiça e Teoria do Direito. São Paulo: Almedina, 2020.

FACULDADE DE DIREITO DA USP. Comunicado: Carta às Brasileiras e aos Brasileiros. São Paulo, 2022. Disponível em https://direito.usp.br/noticia/3b538b27ab5e-comunicado-carta-as-brasileiras-e-aos-brasileiros. Acesso em 04 de agosto de 2022.

FACULDADE DE DIREITO DA USP. Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito. São Paulo, 26.Julho.2022. Disponível em https://direito.usp.br/noticia/809469c6c4fb-carta-as-brasileiras-e-aos-brasileiros-em-defesa-do-estado-democratico-de-direito. Acesso em 04 de agosto de 2022.

FACULDADE DE DIREITO DA USP. Somos 700 mil. São Paulo, 26.Julho.2022. Disponível em https://direito.usp.br/noticia/fc3bdaba3431-somos-700-mil. Acesso em 04 de agosto de 2022.

SCAFF, Fernando Facury, O que fazer depois da carta às brasileiras e aos brasileiros?, in Conjur, 02 de agosto de 2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-ago-02/contas-vista-depois-carta-brasileiras-aos-brasileiros. Consultado em 04 de agosto de 2022.

STRECK, Lênio Luiz; CARVALHO, Marco Aurélio, Carta aos brasileiros foca na democracia porque ela está em risco, in CONJUR, disponível em  https://www.conjur.com.br/2022-ago-07/streck-carvalho-carta-foca-democracia-porque-ela-risco. Acesso em 10.08.2022.

TELLES JUNIOR, Goffredo. Carta aos Brasileiros. Disponível em https://goffredotellesjr.com.br/carta-aos-brasileiros/. Acesso em 04 de agosto de 2022.

 


[1]A este respeito, consultar Bittar, Semiótica, Direito & Arte: entre Teoria da Justiça e Teoria do Direito, 2020.

[2]Consultar Faculdade de Direito da USP, Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito (26.Julho.2022). Disponível em https://direito.usp.br/noticia/809469c6c4fb-carta-as-brasileiras-e-aos-brasileiros-em-defesa-do-estado-democratico-de-direito.

[3]Consultar Faculdade de Direito da USP, Somos 700 mil (26.Julho.2022). Disponível em https://direito.usp.br/noticia/fc3bdaba3431-somos-700-mil.

[4]Consultar Faculdade de Direito da USP, Comunicado: Carta às Brasileiras e aos Brasileiros, 2022. Disponível em https://direito.usp.br/noticia/3b538b27ab5e-comunicado-carta-as-brasileiras-e-aos-brasileiros..

[5]Consultar Telles Junior, Goffredo, Carta aos Brasileiros, Disponível em https://goffredotellesjr.com.br/carta-aos-brasileiros/.

[6]Consultar Faculdade de Direito da USP, Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito. São Paulo, 26.Julho.2022. Disponível em https://direito.usp.br/noticia/809469c6c4fb-carta-as-brasileiras-e-aos-brasileiros-em-defesa-do-estado-democratico-de-direito.

[7]Cf. Streck, Carta aos brasileiros foca na democracia porque ela está em risco, in CONJUR, disponível em  https://www.conjur.com.br/2022-ago-07/streck-carvalho-carta-foca-democracia-porque-ela-risco. Acesso em 10.08.2022.

[8]Consultar Telles Junior, Carta aos Brasileiros. Disponível em https://goffredotellesjr.com.br/carta-aos-brasileiros/.

[9]Como o afirma Fernando Facury Scaff, O que fazer depois da carta às brasileiras e aos brasileiros?, in Conjur, 02 de agosto de 2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-ago-02/contas-vista-depois-carta-brasileiras-aos-brasileiros.

Autores

  • é professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é membro titular do Grupo de Pesquisas Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo – IEA/ USP e pesquisador N-2 do CNPq.

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