Jurisprudência Famélica

Aumento da fome acende discussão sobre aplicação do princípio da insignificância

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1 de novembro de 2021, 7h49

Um pacote de macarrão instantâneo da marca mais tradicional custa em média R$ 1,80. Das com menor apelo de marketing, o preço é ainda menor. Em uma sociedade marcada pela desigualdade cuja conjuntura econômica não é das mais animadoras, o furto de um produto de baixo custo como esse movimenta a máquina do Poder Judiciário a ponto de um ministro do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal ter que se debruçar sobre o caso.

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Produtos baratos como macarrão instantâneo movimentam a máquina do Poder Judiciário
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Em muitos deles, os magistrados aplicam o princípio de insignificância para libertar pessoas que incorreram no crime para matar a fome. Foi o que ocorreu no último dia 13 de outubro, quando o ministro Joel Ilan Paciornik, do STJ, decidiu revogar a prisão de Rosângela Sibele, uma  desempregada presa por furtar dois pacotes de miojo, um refrigerante de 600 ml e um sachê de suco em pó, no valor total de R$ 21,69. O furto ocorreu em um supermercado na região sul de São Paulo.

Na decisão que concedeu o HC à moradora de rua, o ministro apontou que a lesão ínfima ao bem jurídico e o estado de necessidade da mulher não justificam o prosseguimento do inquérito policial. Esse é um dos muitos casos que engrossam as fileiras de processos do Poder Judiciário.

No último dia 1º de junho, por exemplo, a 6ª Turma do STJ aplicou o princípio da insignificância para revogar a prisão de um condenado pelo furto de dois filés de frango empanado, no valor de R$ 4. Na ocasião, o ministro Rogerio Schietti  relator do processo  apontou que o caso poderia ser definido monocraticamente, mas preferiu levar à sessão por videoconferência para dar visibilidade. "Está se utilizando o sistema de Justiça Criminal para perseguir quem furtou R$ 4 de alimentos, que representam 0,5% do salário mínimo à época", afirmou.

Quem também se manifestou foi o ministro Sebastião Reis. Ele citou o crescimento do volume de casos enfrentados pela 3ª Seção do STJ, responsável por matéria penal, que de 84,2 mil recebidos em 2017 passou a 124 mil em 2020. Para 2021, a previsão é de até 131 mil processos.

"Onde já se viu essa quantidade de questões que temos que julgar porque os tribunais se recusam a aplicar nossos entendimentos?", questionou. Reis é um estudioso da criminalidade do Brasil e crítico do punitivismo exacerbado que pauta o debate sobre segurança pública.

Em entrevista à ConJur, ele explicou que a questão da insignificância não pode ser pensada e analisada simplesmente se considerando a norma legal escrita. "Tenho dito ultimamente que o direito, ainda bem, é uma ciência humana e, como tal, deve considerar sempre a realidade, não só aquela do momento da edição da lei, como também aquela que existe quando de sua aplicação. Se é para se considerar apenas a letra seca da lei, todos aqueles que a têm como matéria prima do seu dia a dia poderiam ser substituídos por computadores", argumentou.

O ministro prevê que a crise social e humanitária que tomou conta do Brasil, inevitavelmente, levará ao acréscimo do crime de bagatela. "Cada vez mais nos depararemos com pessoas recorrendo a este tipo de crime para levar comida para casa. Não há como desconsiderarmos esta realidade ao julgá-los. Cabe ao juiz ao julgar e ao Ministério Público avaliar a possibilidade e necessidade de se oferecer uma denúncia, considerar a situação do envolvido, dos bens furtados e da própria vítima", sustenta.

O magistrado fala com conhecimento de causa dos impactos que esse tipo de litígio tem no volume de processos recebidos pelas cortes superiores. Em 2017, ele recebeu 9.009 processos; em 2018, 10.132, em 2019, 10.950; em 2020, 11.340, e, em 2021, até o último dia 16, 9.829 processos.

Paradoxo do sermão da montanha
Pesquisa realizada em dezembro de 2020 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssam) aponta que quase 117 milhões de pessoas no Brasil vivem em situação de insegurança alimentar 
 isto é, não se alimentam em quantidade e qualidade adequadas.

Desses, ao menos 20,5% não contam com alimentos em quantidade suficiente e 9% passam fome — a maior taxa desde 2004. Além da situação de fome, analistas apontam que o cenário para a economia do Brasil em 2022 tende a piorar. O Itaú — maior banco privado do país — revisou sua estimativa de crescimento do PIB brasileiro de 1,5% para 0,5%. A instituição também passou a prever a piora nos índices de desemprego com a taxa de desocupação subindo de 12,1% para 12,5% em dezembro de 2022.

A mulher presa por furtar dois pacotes de miojo e outros itens de pequeno valor se tornou notícia após ser solta. Em entrevista ao programa Brasil Urgente, ela explicou ao apresentador José Luiz Datena que o seu sonho "era ser gente".

"Quando a viatura chegou, joguei as coisas e saí correndo, assustada. Fiquei com medo de ser presa. Estava com fome, enfatizei que estava com fome (…). Nos últimos dias, estava fazendo reciclagem, não estava roubando ninguém. Eu não queria, não estou acostumada, não queria fazer. Só estava com muita fome, queria muito comer um miojo, estava doida para tomar um leite condensado e um refrigerante gelado. Não tenho dinheiro para isso", explicou.

A fala forte de Sibele provocou comoção e se juntou à imensa memorabilia da fome brasileira. Assim como o vídeo de pessoas garimpando comida em um caminhão de lixo em Fortaleza. As imagens foram gravadas no dia 28 de setembro no bairro Cocó, área nobre da capital cearense.

A crise econômica e a falta de comida na mesa funcionam como um verdadeiro indutor para o crime, em muitos casos. Esse conflito entre o direito a alimentação e o direito a propriedade afluem no melhor dos cenários para o Poder Judiciário. Na pior hipótese, o autor de furto famélico é submetido não a um dos poderes da República, mas conduzido a "quartos da tortura" em que seguranças privados dos supermercados atuam como promotores e julgadores. E carrascos. Em alguns casos, a prática é filmada pelos próprios algozes.

Em setembro de 2019, seguranças do supermercado Ricoy, na região sul de São Paulo, açoitaram um jovem negro após ele tentar furtar um chocolate. "Não coloca a mão. Tira a mão, porra!", gritava o agressor nas imagens que viralizaram e chocaram o país. Os funcionários foram condenados pela 4ª Câmara de Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo pelos crimes de tortura, lesão corporal, cárcere privado e divulgação de cenas de nudez de vulnerável, cometidos contra o adolescente. As penas foram arbitradas em dez anos, três meses e 18 dias de reclusão, em regime inicial fechado. A decisão é de novembro de 2020.

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Seguranças do supermercado Ricoy torturaram menor que tentou furtar chocolate
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Dentro do sistema punitivo legalmente instituído, a tortura não é permitida. Mas falta compreensão em relação às mazelas sociais para muitos operadores do Direito, na opinião do ministro Sebastião Reis. "Não podemos recorrer ao Direito Penal para solucionar nossos problemas sociais. Se a prisão e o aumento do punitivismo fossem a solução para a criminalidade que toma conta do Brasil, certamente não estaríamos hoje na situação em que nos encontramos — mais de 800 mil presos, sendo que cerca de 40% sem condenação", afirma.

O ministro defende a adoção de penas alternativas à prisão e outras soluções que não a ação penal para lidar com casos do tipo. "O juiz tem que ser uma pessoa com capacidade de ver dentro da pessoa que ele julga o ser humano que lá está. Processo não tem capa, mas tem gente cuja vida depende de uma decisão de um juiz; uma pessoa cuja vida pode ser destruída ou salva por um julgador cuja realidade é completamente diferente daquela vivida por aquele cuja vida está na berlinda", diz.

Ele critica a formação atual dos juízes, que são tecnicamente bem preparados, mas que não têm consciência social e conhecimentos de disciplinas como sociologia, história e economia. "Temos que decidir de uma vez por todas que tipo de justiça penal nós queremos. A 'justiceira', 'vingativa', que se preocupa com o que a 'sociedade' vai achar da decisão, ou aquela que procura simplesmente aplicar o direito ao caso concreto, de forma justa e correta, sem preconceito e sem se preocupar com a repercussão do que for decidido", defende.

A epidemia da fome — aliada a uma percepção generalizada de impunidade  impõe ao Poder Judiciário lidar com a máxima do sermão da montanha às avessas. Na famosa passagem bíblica, Jesus teria dito que eram "bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!". Mas a ideia de que se pune pouco em um país com superpopulação carcerária ajuda a subverter o conceito. Faz com que aqueles que têm sede de Justiça colaborem para uma ideia punitivista do Direito Penal e atuem, ainda que indiretamente, como algozes dos que têm fome de comida.

Os exemplos são muitos. A Defensoria Pública de São Paulo, por exemplo, já teve que recorrer a cortes superiores em casos de furto como três pacotes de batata frita, refrigerante, peças de carne, caixa de bombom, desodorantes e pacote de fraldas. 

Literalidade x bom senso
O jurista Lenio Streck, colunista da ConJur, explica que o princípio da insignificância é, como o nome atesta, um princípio. Um padrão normativo. "Por vezes é mal aplicado ou não é aplicado. Basta ver os casos que chegam ao STJ e ao STF. Só chegam lá porque alguém não aplicou antes. Em quase 30 anos de MP, nunca sustentei uma condenação que tivesse como crime um furto insignificante. E olha que trabalhei em milhares de processos criminais. Em tempos de crise, aumenta a incidência de furtos famélicos ou de coisas com valor econômico irrelevante. É nestes casos que testamos não a sensibilidade, porque Direito não se decide por gostos ou bondades, mas, sim, o valor de um princípio", explica.

A atuação do Ministério Público nesse tipo de caso vem ganhando notoriedade e tem sido bastante questionada pela comunidade jurídica. Em outubro deste ano, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul teve que apresentar contrarrazões da apelação feita pelo MP em um processo em que dois homens são acusados de invadir área restrita de supermercado para furtar comida vencida que seria descartada. Os acusados furtaram 50 fatias de queijo, 14 unidades de calabresa, nove unidades de presunto e cinco unidades de bacon que, conforme os padrões de segurança alimentar do comércio, estariam impróprios para o consumo humano. 

"Tristes tempos em que LIXO (alimento vencido) tem valor econômico. Nesse contexto, se a mera leitura da ocorrência policial não for suficiente para o improvimento do recurso, nada mais importa dizer", escreveu o defensor Marco Antonio Kaufmann em resposta ao recurso apresentado pelo Parquet.

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Absolvição de furto de bacon e outros produtos impróprios para o consumo humano provocou recurso do MP
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Em artigo coletivo, os especialistas Aury Lopes Jr., Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Janaina Matida, Alexandre Morais da Rosa e Marcella Mascarenhas Nardelli da coluna Limite Penal, publicada pela ConJur pontuaram que, sob qualquer ângulo que se olhe, acusações assim constituem abuso do poder de acusar. "Nas situações em que o Ministério Público excede seu poder racional de acusar, é imprescindível a pronta intervenção jurisdicional, rejeitando a denúncia. No caso em análise, a denúncia foi recebida (nem deveria), tendo os réus sido absolvidos sumariamente", diz trecho do artigo. 

Gustavo de Almeida Ribeiro, defensor público federal designado para atuar perante o STF, explica que os furtos famélicos e aqueles que incidem sobre bens de pequeno valor sempre existiram. "Com o aumento visível da miséria, da fome e do desemprego, eles cresceram muito. As pessoas cada vez mais sentem dificuldade de obter os alimentos essenciais para sua subsistência. Também é muito comum que esses furtos tenham como objetos produtos de higiene pessoal e íntima ou de crianças, como absorventes e fraldas", explica.

O defensor afirma que considerar esse tipo de conduta como criminosa não é o procedimento adequado, já que encarcerar pessoas em vulnerabilidade muitas vezes faz com que os seus filhos fiquem entregues à própria sorte. "Essa não é a melhor solução. Essas pessoas que são presas acabam ficando expostas e mais vulneráveis a outras violências. Tanto de praticarem como de serem vítimas. Em um país desigual, resolver tudo com o Direito Penal me parece ao mesmo tempo ingênuo e perigoso", argumenta.

O defensor público Glauco Mazetto, da Defensoria Pública de São Pailo, explica que o problema sobre a não aplicação do princípio da insignificância se concentra nos juízos de primeira e segunda instâncias. "Isso ocorre por dois motivos. O primeiro é que muitos juízes e desembargadores sustentam que nosso ordenamento não admite a existência desse princípio porque não está escrito em lugar nenhum. É a ideia de que, se não há uma previsão literal admitindo a existência do princípio da insignificância, não é possível aplicá-lo. Outros, ao invés de partir do argumento para tese, partem para o argumento. Ou seja, entendem que o princípio da insignificância é descabido e acabam buscando argumentos para sua não aplicação", diz.

Ele cita que os vetores consagrados para aplicação do princípio da insignificância são muito abertos. São eles: mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

"É muito fácil para qualquer magistrado que não queira aplicar o princípio da insignificância. Tirando o último vetor, que é a inexpressividade da lesão jurídica, os outros quatro são muito abertos", sustenta.

Um dos fundamentos mais usados para não aplicação do princípio da insignificância é a reincidência do crime. O STF, contudo, tem consolidado a jurisprudência de que, quando a lesividade da conduta é mínima e não há dano efetivo ou potencial ao patrimônio da vítima, o princípio deve ser aplicado ainda que o réu seja reincidente.

Esse entendimento não é, entretanto, inteiramente aceito e aplicado em instâncias inferiores. "Entendo que parte dos magistrados que são contrários ao princípio da insignificância partem de um entendimento preventivo. A ideia de que se eu prender essa pessoa previnem-se outros crimes. Só que a origem desse tipo de delito não está no Direito Penal, mas na desigualdade", diz.

Muitos juízes não consideram apenas a reincidência, mas processos em andamento para justificar a aplicação do princípio de insignificância. "É muito comum. Se uma pessoa tiver, por exemplo, três processos em curso, a chance da insignificância não ser reconhecida e dela ficar presa por um bom tempo é muito grande", diz.

"O único caminho passa por um processo multidisciplinar de educação em direitos de todos os entes do sistema de Justiça. É uma solução de médio e longo prazo. A não ser que a nossa sociedade consiga diminuir a desigualdade e erradicar a pobreza", finaliza.

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