Cultura autoritária

"O autoritarismo é um vírus presente na sociedade brasileira", diz Santa Cruz

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29 de março de 2020, 9h12

Spacca
Desde a independência, em 1822, o Brasil vive sob sua sétima Constituição — uma no Império, uma sob a antiga República, duas durante o varguismo, duas sob período democrático (1946 e 1988) e uma na ditadura militar (1967).

A atual, sob a redemocratização, inaugurou um novo arcabouço jurídico-institucional, com ampliação das liberdades civis e direitos e garantias individuais. Mas na visão do presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, "nossa história não nos autoriza sermos lenientes com qualquer movimento autoritário". A entrevista exclusiva foi concedida antes da pandemia do novo coronavírus tomar o debate nacional

Para o advogado filho único de Fernando Santa Cruz, desaparecido político aos 26 anos de idade no Carnaval de 1974, "o Brasil é terra fértil para rupturas políticas, com embasamento jurídico".

Durante visita à revista eletrônica Consultor Jurídico, no último dia 10 de março, o presidente da OAB também falou sobre a criminalização do sigilo profissional do advogado e foi duro com o excesso de oferta dos cursos de Direito do país.

"O Ministério da Educação hoje é absolutamente fechado a esse debate. Quer ampliar a partir do ensino à distância. É um estelionato, não tem outro nome. Estão roubando, batendo a carteira dessas famílias."

Também se disse tranquilo em relação às contas da entidade, que tem sido cobrada pelo Tribunal de Contas da União, e voltou a defender eleições diretas para a escolha da liderança nacional da OAB.

A TV ConJur também disponibiliza trechos da entrevista no canal da revista no YouTube. Veja aqui, aqui, aqui e aqui os vídeos já veiculados. 

Leia a entrevista:

ConJur — O senhor vê condições objetivas para um golpe de Estado ou mesmo um autogolpe?
Felipe Santa Cruz — Se formos olhar a história do Brasil, [ela] não nos autoriza sermos lenientes ou negligentes com qualquer movimento autoritário. O país viveu boa parte de sua história, pré e pós-independência, com rupturas. Trocas de comando, de grupos. O papel do próprio imperador sendo questionado já no Primeiro Reinado [1822 a 1831], depois na vida republicana toda. Aquele ideal republicano de Rui Barbosa vai se esvaindo desde antes da virada do século 20, com quarteladas, com o papel do Exército e das Forças Armadas fora de seu papel institucional, com insurreições que são perdoadas e anistiadas.

Acho tão incrível que as pessoas não entendam o debate da anistia dos policiais militares. Na verdade, é uma discussão antiga na política brasileira, até institucional.

Nós tivemos anistias ao longo de todo o século 20, que foram todas elas embriões políticos, ou seja, uma forma de plantar em solo fértil rupturas institucionais. Então é muita falta de conhecimento da história brasileira dançar à beira desse precipício, que é o precipício do autoritarismo.

ConJur — Mas o senhor vê risco real neste momento?
Felipe Santa Cruz — Vejo um país que tem a cultura do autoritarismo, das soluções fáceis que, infelizmente, tem um baixíssimo nível de escolaridade, onde a população não conhece os malefícios do autoritarismo, onde muitas vezes começa a ser convencida de um passado que não houve. Quando se matava, se calava a imprensa. Quando houve a maior concentração de renda de todo o período republicano brasileiro.

Então é um país que é solo fértil às experiências autoritárias. E é preocupante que nós tenhamos nesse momento pessoas que ocupam o aparelho do Estado testando os limites da democracia. Por isso que acho que devemos estar preocupados com o destino da democracia no Brasil.

ConJur — A literatura moderna de ciência política, o próprio Direito também, não fala tanto em golpe de Estado, mas de recessos democráticos. Tem usado outras terminologias porque nem sempre tem um golpe clássico. E aí um jargão que está sendo criado é de constitucionalismo autoritário, com uma espécie de respaldo no Direito. O senhor acha que o Brasil pode ir por esse caminho?
Felipe Santa Cruz — O Brasil é terra fértil para rupturas políticas, com embasamento jurídico. O AI-1 [Ato Institucional de número 1, de 1964] foi absolutamente pensado, dizendo que a força constituinte revolucionária é o poder maior que emana do povo para transformar aquela realidade, que era de ruptura.

Depois, em 1968, por um quadro também falsamente criado por inimigos externos que não existiam, um debate com o Congresso absolutamente pueril, [o deputado pela Guanabara] Márcio Moreira Alves faz um discurso defendendo que as famílias não deixem suas filhas dançar com os cadetes do Exército. A partir daí se pede a cassação dele. Por isso a imunidade parlamentar é tão sagrada entre nós.

Djalma Marinho [deputado pela Arena do Rio Grande do Norte] diz que ao rei tudo, menos a honra. O Congresso nega e há o AI-5, também embasado juridicamente, digamos assim, numa necessidade temporária. Suspensão de direitos, fechamento do Congresso, suspensão de Habeas Corpus.

Então nós temos um histórico ao longo do século 20 de arranjos. Em 1937, quando se parecia que ia abrir o sistema, que nós teríamos uma eleição, que estava na rua, o governador de São Paulo [Armando de Sales Oliveira] era candidato. É interrompida com a adoção unilateral, autoritária e arbitrária de uma Constituição, a "Polaca", redigida também por um grande jurista [Francisco Campos, o "Chico Ciência"], a base do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Mas nós temos uma escolha estética e filosófica. Os grandes juristas autoritários do Brasil não são lembrados em lugar nenhum. Podem ter sido talentosos, muito capacitados, mas aqueles que ficaram na contramaré e defenderam a democracia e a liberdade, base da atual democracia liberal, que está sob ataque, viraram pessoas míticas, pessoas-chave na nossa história jurídica.

ConJur — Um país com nossa tradição autoritária, segundo o senhor citou, e vendo a atual conjuntura atual, qual é o papel da advocacia neste momento?
Felipe Santa Cruz — 
É a defesa da liberdade. Aliás, nosso estatuto [da OAB] tem uma série de instrumentos que só possui no Brasil. Me espanta, me causa perplexidade quando vejo advogados que não compreendem que todo esse arcabouço, ou seja, a advocacia constitucionalizada, no texto constitucional, lei federal como estatuto, exame de Ordem obrigatório, inscrição nacional obrigatória e agora a violação de prerrogativas como crime, tudo isso existe para que a OAB sirva como proteção para a democracia liberal.

Todo esse conjunto de forças se organiza para que a advocacia possa atuar livremente na defesa da cidadania, na defesa do cidadão, nessa missão que o ônus público do advogado na sua função privada, mas também esse papel que a Ordem dos Advogados do Brasil exerce de defesa da sociedade civil, das liberdades de imprensa, de organização, de expressão, de todas que estão elencadas na Constituição de 1988.

Por isso que a Carta de 1988 é uma Constituição de advogados. Basicamente é um elenco de liberdades de um povo que sofreu regimes autoritários durante quase todo o século 20.

Então não compreender a frase do recém-finado e saudoso Eduardo Seabra Fagundes [presidente da OAB na ditadura, morto no fim do ano passado], "que a Ordem é fator de prestígio da advocacia, e que a advocacia é fator de prestígio da Ordem", é não compreender que esse prédio foi construído com essas bases.

Em nosso estatuto temos a defesa da sociedade, dos direitos humanos, das minorias antes mesmos das nossas tarefas de defesa do cotidiano do advogado. Porque é esse o papel de representação da sociedade civil, que confere a legitimidade para a Ordem dos Advogados exercer esse papel que vai além dos seus muros. Porque senão ela é um conselho — e aí não é um demérito aos outros conselhos — e perde a sua importância.

ConJur — Parece que há uma tendência de criminalizar o sigilo profissional do advogado. O que pode ser feito?
Felipe Santa Cruz — Nós temos que deixar muito claro que o autoritarismo é um vírus presente dentro da sociedade brasileira, e toda vez que ele se manifesta, se volta contra o pleno exercício da advocacia, se volta contra as religiões minoritárias, contra o jornalismo. Vejo as pessoas não levando em consideração a extensão da liberdade de imprensa que temos hoje, com quase todo o século 20 com presença de censores nas redações, quem poderia ou não ser contratado.

Começa o ataque aos artistas, à manifestação cultural. "Ah, isso não é arte. Isso é arte."

Começa a tentar se dirigir a arte, que aliás é um traço de união entre a ultraesquerda e a ultradireita. A vontade de usar a arte a serviço de uma manifestação de seu pensamento. E aí não tolera a liberdade artística. Nesse ponto, o Brasil está se vivendo um ataque à democracia.

E a advocacia é uma última fronteira. É a profissão que resiste a uma verdade dada, que resiste ao juiz parcial, resiste ao Ministério Público aparelhado por uma visão político-institucional. "Então eu tenho que criminalizar a advocacia, pedindo dela o que nenhuma outra profissão liberal tem que prestar contas".

Ou seja, ninguém chega ao oftalmologista e pergunta: "este cliente que acabou de sair aqui declarou a origem lícita do seu pagamento?"

Você não pergunta a um grande médico, dos grandes hospitais de São Paulo: "seu cliente que acabou de ser operado declarou a origem lícita do que pagou, na remuneração do seu trabalho?"

É uma estratégia de criminalização da advocacia. Agora, nós temos que ser proativos, nós temos que antecipar esses passos e criar, sim, instrumentos que garantam o exercício da advocacia, a ética profissional e comprometida, que não se confunde com os crimes eventuais de clientes, mas que existe para defender inclusive o culpado ou principalmente o culpado, como dizem alguns criminalistas.

Porque esse culpado, aquele que será condenado, precisa muito do serviço, do amparo de um advogado. Essa questão é muito simples., como o exame de Ordem.

Quando está fazendo a prova, ele me odeia, odeia a OAB, descobre ali toda a fragilidade do seu curso jurídico que ele não conhecia até então. Então volta a sua carga contra nós. E quando passa no exame, vira um defensor. Sabe que ali está um instrumento de proteção da sua profissão.

Também há o fenômeno do cidadão médio que diz: "olha que absurdo, ele está recebendo honorários de alguém que praticou um crime". Isso até a hora que ele precisa de um advogado habilitado, que possua os instrumentos de prerrogativa, que não seja submisso ao Poder Judiciário, como acontece em muitos países do mundo.

Já o nosso modelo não é de dependência. Nosso estatuto fala numa palavra linda: diz que o advogado não deve temer a impopularidade. Eu pergunto: que outra lei federal fala do conceito de popularidade, tão moderno?  Pois o advogado tem que aceitar a impopularidade.

ConJur — O senhor, como presidente da Ordem, foi denunciado pelo Ministério Público por crime de calúnia contra o ministro da Justiça, Sergio Moro. A denúncia já foi rejeitada, mas gostaria que fizesse uma leitura desse episódio.
Felipe Santa Cruz — Mais um episódio do circo dos absurdos que nós estamos vivendo. O Ministério Público Federal, um procurador lotado em primeira instância, pediu o afastamento do presidente da Ordem dos Advogados por uma manifestação.

Uma crítica, aliás, que eu estava certo, porque menos de 48 horas depois o ministro [Luiz] Fux [do STF] deu liminar que proibia a destruição das provas, dos vazamentos dos grampos do The Intercept Brasil.

E o ministro da Justiça [Moro] havia dito que destruiria essas provas. Ele não era mais juiz, muito menos daquela causa. Está no Executivo. Não poderia fazer isso.

Até na época reconheci a força da fala, o exagero da imagem. Mas o ministro agora vive a esfera do debate público. Não está mais, digamos, cercado da solenidade que nós mesmos devemos preservar no Judiciário.

Aceitei que tinha exorbitado um pouco na retórica, mas voltei a frisar que, no mérito, estava correto. E assim foi rejeitado.

Estranho é que a gente conviva com esse fenômeno de aparelhamento político institucional em setores do Ministério Público. Existe no país uma espécie de cruzada de setores punitivistas, basicamente sediados nas primeiras instâncias do MPF e da magistratura para uma visão ideológica de mundo.

Eles acusam os outros de ideologia, mas na verdade a ideologia deles deve ser a defesa da Constituição e das leis. Aí eu pergunto: onde na história da nossa República alguém pediu o afastamento do presidente da Ordem dos Advogados por opinião, por defender um pensamento da advocacia? Eu durmo absolutamente tranquilo, considero uma distinção essa denúncia. E digo: se o advogado não deve temer impopularidade, imagine o presidente da Ordem?

ConJur — O senhor não crê que boa parte dos advogados espera que a OAB defenda mais o interesse da classe em vez de se dedicar ao debate público?
Felipe Santa Cruz  Acho que o cotidiano da OAB é a defesa do interesse da classe, porque isso também é defesa da democracia, no exercício do caso concreto. Tanto que nós montamos nos últimos anos uma estrutura nacional de defesa das prerrogativas que passa da subseção, nas seccionais e no conselho federal.

Há uma estrutura nacionalizada hoje, muito mais complexa do que, por exemplo, quando eu comecei a participar da vida da OAB. Também há uma incompreensão de alguns advogados quando eles dizem: "ah, não, a OAB devia tratar só de assuntos internos".

Ora, o perecimento do Estado Democrático de Direito é o perecimento da advocacia. Obviamente que na hora em que esses poderes autoritários se instalam no fato concreto, o advogado perde margem legal de exercício, independência, autonomia, prerrogativas. Por isso que tem esse arcabouço legal a serviço da democracia, conquistado com muita luta.

Uma coisa conquistou a outra. Nosso cotidiano é duro, é no processo, lá na comarca, na ponta. E a OAB tem, sim, que estar cada vez mais presente, sabendo que a Ordem somos todos nós. É um exercício coletivo da advocacia brasileira.

Mas, na outra ponta, na hora em que a democracia morre, todas as experiências históricas mostram que vai haver uma contaminação no processo concreto, uma diminuição da independência do nosso papel.

ConJur — Em 2008, a OAB aprovou a criação do Cadastro Nacional de Violadores de Prerrogativas. Mas, para colocar em prática, é necessário mudar o estatuto da entidade. Há algum projeto nesse sentido?
Felipe Santa Cruz — Esse é um processo que deve ser feito com muito cuidado. Acho que mais importante que criminalizar ou atacar a imagem, é nós sabermos em cada comarca, em cada Estado, quem são aqueles que violam prerrogativas. A Ordem está forte e permanentemente nos desagravos, nos atos, ao impor limites.

Tivemos um episódio de uma advogada algemada [em setembro de 2018] e, 48 horas depois, numa audiência, toda a advocacia brasileira estava na porta do Fórum de Duque de Caxias [Baixada Fluminense]. Isso para mim é mais importante do que fazer uma lista com todas as possibilidades de injustiça que possa ter nessa lista.

Sobre alteração no Estatuto da Advocacia, você vai incorrer no risco de ser um agente acusador perigoso. Prefiro trabalhar no caso concreto. É uma visão minha. Uma reação forte, sistêmica, permanente, toda vez que alguém, que um profissional, tiver a sua prerrogativa violada.

O primeiro ato nosso neste ano foi um debate sobre a nova lei de criminalização da violação de prerrogativas, para que possamos ter uma estratégia na aplicação.

Estamos tratando de 1,2 milhão de advogados, que trabalham em situações de litígio, em situações muito tensas, normalmente num Judiciário que não dá nem respostas, moroso, em situações verdadeiramente de desespero de clientes, num país empobrecido, que vem de uma crise econômica aguda que já dura anos, e não dá sinais de que vai parar, que vai acabar.

Então todo esse caldo de tensão precisava de muita responsabilidade da nossa parte. Acho que mais do que fazer uma lista, acusar pessoas de violação de prerrogativas, temos que trabalhar no caso a caso, pedagogicamente. E também com a capacidade de sermos mediadores de soluções naqueles conflitos.

ConJur — Como o senhor bem frisou, são 1,2 milhão de advogados. O senhor vê a classe unida em defesa do Estado Democrático de Direito?
Felipe Santa Cruz — Vejo a classe unida. Temos 48 ramos diferentes de atuação, basicamente, num grande escritório. Temos profissionais em áreas muito heterogêneas, uma advocacia muito heterogênea no país inteiro, mas entendo que essa unidade em torno do Estado Democrático de Direito existe, sim. Vejo no meu cotidiano.

ConJur — Numa entrevista à ConJur, o ministro Herman Benjamin, do STJ e diretor da Escola Nacional de Formação de Magistrados, diz que há um dilúvio de bacharéis em Direito no Brasil, que famílias estão sendo enganadas por acreditarem que todos os formandos terão espaço na área. Além do filtro do exame da OAB, há alguma outra medida concreta em estudo? Estão em contato com o Ministério da Educação?
Felipe Santa Cruz — O Ministério da Educação hoje é absolutamente fechado a esse debate. Quer ampliar a partir do ensino a distância. É um estelionato, não tem outro nome. Estão roubando, batendo a carteira dessas famílias. Tem mais de 1,2 milhão de advogados, um número que concorre com o americano numa economia que é dez vezes menor, em crise.

Boa parte dessa juventude sonha com uma carreira pública que não virá. O país está numa crise fiscal aguda.

Então é um engodo. É muito triste ver o sonho das pessoas sendo enganado por um mero comércio, mercantilismo do mais vil. Vira promoção, desconto, propaganda, um produto como qualquer outro, mas um produto que não é entregue, que é um sonho de vida, de projeto, de futuro.

Estamos tentando já há muito tempo discutir a própria grade curricular, um esquema de avaliação que a OAB recomenda das universidades. Tentamos montar o sistema de acompanhamento da qualidade dos cursos semestre a semestre, que seria feito online até o final da minha gestão.

Por que hoje qual a pesquisa que nós temos? O estudante acha que está tudo bem. Pergunta para um estudante: a sua universidade é boa? "Eu acho que é razoável". E você é bom aluno? "Estou com a média". Só que a média dele caminha para o abismo.

Qual o dia que ele descobre que essa média não é a média que terá empregabilidade? É no exame da Ordem. Então toda a notícia ruim é o exame da OAB que dá para esse jovem, para essa família.

Nós entendemos a insatisfação, a frustração. Não é satisfação para ninguém essa tarefa, mas é absolutamente necessária. Basta ver que o exame hoje é um selo mínimo de qualidade indispensável para o exercício profissional.

Tem que se cobrar do Estado. Ajuizamos uma ação recentemente contra o ensino a distância. Não obtivemos sucesso na liminar. Estudamos outras formas, judicializar essa questão.

Nós precisamos de uma moratória na ampliação de vagas para o curso de Direito. Temos hoje quase 900 mil estudantes sentados em sala de aula. Temos outra advocacia quase cursando entre o primeiro e o último semestre da faculdade.

Pergunta a qualquer cidadão médio qual é o destino da maior parte desses 900 mil, e nós sabemos que será o mesmo processo de precarização que outras profissões passam também.

O mundo está em transformação, o trabalho está em transformação, seria estranho que o Direito também fosse uma espécie de ilha nesse mundo em crise. Uma profissão privada, em sua maioria, com uma crise econômica aguda, com a transformação do mundo do trabalho, esse quadro só tende a ficar mais agudo. E me espanta que a tendência do Ministério da Educação seja a criação e ampliação das vagas.

ConJur — Nesse sentido, o senhor não acha que a tabela de honorários ofende a livre concorrência, prejudica o cliente.
Felipe Santa Cruz — A discussão, enquanto meramente informativa, não. Temos uma discussão do nosso código de ética, um debate sobre o tema, mas defendo que seja meramente informativa. Não acho, sinceramente, que o caminho seja a criminalização de quem não segue a tabela.

Mas temos que culturalmente estabelecer um parâmetro mínimo. No Rio de Janeiro, quando era presidente da seccional, conseguimos um grande diálogo. Chamamos diretores jurídicos, escritórios de massa, onde, por exemplo, havia o problema das audiências, para estabelecer um parâmetro mínimo de remuneração por audiência.

Mas isso fica mais difícil quando a crise fica mais aguda, acaba que a concorrência empurra os preços para baixo. Muitas vezes os honorários acabam sendo aviltantes, e a OAB tenta, por meio da sua tabela, criar um patamar mínimo, digno do exercício profissional. Mas acho que é muito mais cultural do que coercitivo.

ConJur — A OAB é considerada uma autarquia sui generis, que o Tribunal de Contas da União considera passível de fiscalização. O que o senhor pensa a respeito?
Felipe Santa Cruz — Acho que a OAB não deve temer nenhuma fiscalização. A Ordem tem um modelo de gestão para mim a ser copiado. Funciona em rede. Neste exato momento, no Brasil, mais de mil subseções estão funcionando. A entidade está a serviço da sociedade. Certamente tem alguém viajando para defender direitos humanos, prerrogativas, por conta da OAB.

É uma instituição em que os dirigentes não se confundem com a entidade. O período é muito curto. Eu, por exemplo, em 12 anos, fui de conselheiro seccional, a presidente do conselho federal, passando pela Presidência da minha seccional e da minha caixa de advogados.

Em dois anos serei um ex-presidente e um dirigente aposentado da Ordem. Não há encastelamento, não há falta de transparência. Temos é que nos modernizar na nossa prestação de contas, até para que possamos ajustar com a classe permanentemente quais são as nossas finalidades.

Por exemplo, a OAB nos últimos anos aplicou a maior parte dos seus recursos em ser a porta de entrada do processo eletrônico. Foi um ônus? Foi, a lei dizia que o Judiciário que tinha que ter feito isso. Teria feito? Tenho certeza que não.

Semana passada autorizei a compra de quase mil computadores pelo conselho federal, para as pequenas seccionais. Esse dinheiro tem que ser mostrado à classe. Fui ao Tribunal de Contas [TCU]. Acho que não temos que temer a fiscalização. Mas temos que salvaguardar a independência da entidade.

Na hora que eu tiver que começar a discutir com o Tribunal de Contas que há duas semanas fizemos o encontro nacional da mulher advogada, para defender minorias, para defender mulheres negras, para defender quem são vítimas todos os dias do feminicídio, aí a história muda de patamar. Acho que esbarra no papel histórico institucional da Ordem. Por isso a decisão do Supremo, que nos transforma numa entidade sui generis.

Estranho quando o advogado diz: "ah, a OAB não devia tratar desses outros temas". Se não for tratar efetivamente ela deve se submeter ao Tribunal de Contas, plenamente, e ser apenas um conselho ético profissional, ou seja, um órgão de controle disciplinar de sua produção.

A OAB extrapola quando salta esse muro, quando tem que fazer essa função a serviço da sociedade. Ela precisa de independência e autonomia na utilização dos seus recursos, o que não significa ser imune à transparência.

Agora em janeiro entrou um novo provimento em vigor, que tem uma série de exigências que preparam a Ordem para ter um padrão de compliance, de controle de contas que não deixa dever a nenhuma instituição no nosso país.

ConJur — O senhor sempre defendeu eleições diretas para o conselho federal. Como seria na prática?
Felipe Santa Cruz — Assim como a transparência é um desafio, a Ordem não pode ser contra. Tem que modernizar seus instrumentos, garantindo a sua independência.

A eleição direta para o conselho federal é uma necessidade da modernização da entidade. Temos hoje uma classe com mais de 2 milhões de advogados, que participa diretamente da vida da entidade, que acompanha a entidade pelo site, via redes sociais.

O conselho federal mudou de atribuição, se aproximou dessa base. Como era antigamente? Era uma federação realmente estabelecida, onde o presidente da seccional era a figura maior da Ordem. Mas algo muito distante, um porta-voz das grandes crises. No momento de impeachment, da luta pela democracia.

Então temos que modernizar essa participação. Mas como? Não podemos fazer uma cópia pura e simples do modelo de eleição direta. Seria fragilizar a eleição para o abuso do poder econômico, como nós já tivemos no passado recente. Seria fragilizar as eleições para grupos ideologicamente comprometidos.

Mas o atual sistema da OAB, bem ou mal, nestes anos todos tem o equilíbrio garantido exatamente por essa mobilidade interna ao sistema. Os quadros vão sendo testados dentro do sistema até chegar à Presidência do conselho federal

A lógica da federação é outra muito importante. Fica muito simples para mim, como uma liderança que vem do Rio de Janeiro, ou para uma liderança de São Paulo falar, já que metade da advocacia brasileira está nesses dois estados. Não é simples fazer valer um inscrito, um voto.

O conselho federal é uma grande câmara de compensação de um desequilíbrio natural de tamanho entre os estados brasileiros. Como eu mantenho esse pacto federativo e amplio a democracia? Esse é o grande desafio.

ConJur — O senhor citou a OAB no impeachment. No de [Fernando] Collor [1992], a entidade teve um papel central, e esse processo de impeachment é considerado "de manual", exemplar. O da presidente Dilma [Roussef], em 2016, parece ter sido mais controverso. Como o senhor viu o papel da OAB no último impeachment?
Felipe Santa Cruz — Impeachment é um momento de paixão, um processo político institucional. É muito fácil falar olhando para trás. Cada impeachment teve uma realidade. É sempre traumático. Sempre lembro [o ex-deputado] Ulysses Guimarães, que será o paraninfo da nossa conferência nacional. Ele dizia que impeachment é algo muito doloroso para a sociedade, para a democracia. Eu vivi os dois.

Era liderança estudantil em 1992. Depois já era uma liderança da Ordem, e posso dizer o quanto foi doloroso para todas as lideranças. Não importa os que eram a favor ou contra, como foi duro discutir aquilo. Eu acho que a gente tem que dar tempo ao tempo.

Que foi duro para a democracia brasileira, a prova está num certo empobrecimento que houve da esfera democrática nos últimos anos.

É muito ruim para o país que dois presidentes depois da Constituição de 1988 não tenham encerrado o seu mandato pela via do impeachment, mas ao mesmo tempo é um sinal de vitalidade da democracia e da própria Constituição de 1988 que essas duas rupturas também não tenham gerado uma ruptura do nosso Estado Democrático de Direito.

ConJur — Sobre as manifestações pelo fechamento do Congresso Nacional ou do Supremo Tribunal Federal…
Felipe Santa Cruz — É um paradoxo. As pessoas têm esse direito exatamente por causa da democracia. Tem esse direito de chamar, usar as redes. É o paradoxo das democracias. Aliás, o caso mais célebre desses é exatamente a transição do nazismo.

A Alemanha vai ao ápice da democracia na República de Weimar [1919 a 1933]. Vai ao ápice da constituição democrática. Mas essa democracia, junto com a fragilização e com a crise econômica e institucional, vem a frustração, a raiva, que gera o nazismo, que usa a liberdade para demolir a própria democracia, para tentar demolir a liberdade no mundo, diga-se de passagem.

Então é um paradoxo dos regimes de liberdade, que nós temos que enfrentar. Eu continuo acreditando na força das palavras, do compromisso, do princípio, da pedagogia. Continuo acreditando que precisamos explicar a essa juventude o que foi a ditadura, que erramos na transição.

Sou filho de um desaparecido político desaparecido [o pai, um estudante e militante símbolo da resistência contra a ditadura, desapareceu em fevereiro de 1974]. Admito o meu erro. Sempre defendi a transição gradual, moderada, até por compromisso com a agenda da OAB.

E devemos tolerar os resultados do nosso erro, mas não podemos errar de novo, temos que ser muito firmes em dizer que há um limite que não pode ser cruzado. Existe uma trincheira a ser cavada. Eu quero um Congresso melhor? Todos os dias. Melhor, mais qualificado, mais comprometido. Eu quero um Judiciário mais célere, mais ético, eu quero o Judiciário plenamente independente. Não parcial. Quero um Judiciário que garanta o contraditório? Quero todos os dias, eu luto por isso, mas eu sou o primeiro a morrer se o Judiciário estiver em risco, a liberdade efetiva da magistratura estiver em risco. Sou o primeiro a dar a minha vida se alguém voltar a dizer que quer fechar o Congresso Nacional, porque eu sei onde vai terminar isso. E normalmente termina no sacrifício dos mais pobres.

Na história do Brasil nunca foi diferente. As classes dominantes fazem o seu arranjo, as suas anistias, a concentração de renda aumenta, as pessoas empobrecem, as polícias ficam mais violentas, matam, encarceram. É sempre nas costas dessa nossa escravidão, dessa dívida com essa parcela da sociedade que explode a conta do autoritarismo.

É aula de introdução à história. Não é possível que a gente continue a repetir o mesmo erro.

ConJur — O senhor defende uma maior participação dos advogados e da sociedade civil no CNMP. Por quê?
Felipe Santa Cruz — CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) nasceram com a ideia de controle externo. Acho que estamos em um momento em que há um conflito tão grande, de polarização da sociedade, que nós temos que retomar algumas agendas que são civilizatórias.

O CNJ, por pressões e exposições da magistratura, entendo que avançou mais que o CNMP. O Ministério Público é muito corporativo, ainda muito recuado na punição. Esse ativismo político-ideológico, seja ele de direita ou de esquerda. Então nós precisamos voltar a pensar o Poder Judiciário um pouco mais longe.

Pensar qual o papel do Supremo, se não é a hora de uma corte constitucional, voltar a pensar em mandato de ministros do STF. É correto que um ministro fique 40, 45 anos no Supremo nesse modelo de hipertrofia dos poderes?

Acho que é hora de voltar a discutir, sim, mandato com possibilidade de uma recondução ou não, um mandato único de 10, 12 anos para ministro do Supremo.

É hora de voltar a discutir o papel do Superior Tribunal de Justiça, talvez virando um tribunal maior, que seja verdadeiramente o estuário de todas essas causas que hoje estão paralisadas.

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