Entre a cruz e a espada

Divulgação de reunião de Bolsonaro opõe princípios da segurança e transparência

Autor

18 de maio de 2020, 15h18

A decisão sobre dar publicidade ou não a uma reunião ministerial coloca em choque dois princípios jurídicos fundamentais: a lei da interceptação telefônica (Lei 9.296/96), que limita o conteúdo a ser divulgado no processo, e o norte da administração pública, que tem o dever de publicizar seus atos.

Caberá ao decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, relator do inquérito 4.831, a intrincada solução jurídica para o caso concreto — divulgar ou não a transcrição da reunião de 22 de abril, na qual, segundo o então ministro Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro solicitou interferência na Polícia Federal.

Antonio Cruz/ Agência Brasil
Inquérito no STF investiga declarações de Sergio Moro sobre pedido de Jair Bolsonaro para interferir na Polícia Federal 
Antonio Cruz/ Agência Brasil

Do ponto de vista político, uma grande curiosidade circunda a todos sobre o conteúdo das discussões na reunião. Segundo advogados, porém, é preciso ponderar o alcance e a repercussão que eventual levantamento de sigilo pode ter.

O constitucionalista Eduardo Mendonça explica que a regra geral é dar publicidade aos atos estatais, mas pondera que ela não abrange todas as reuniões. Ele detalha que a ampla divulgação não encontra precedentes em outros países, além de ser impossível, pela natureza estratégica e sigilosa das discussões e dos dados.

"O que for pertinente ao objeto do inquérito deve ser tratado como prova e mantido no processo. Sendo prova do processo, a regra é a publicidade. Só poderia deixar de ser divulgado fundamentadamente, se houver falas entremeadas sobre temas que devam ser mantidos em sigilo por segurança nacional", afirma.

Ele ressalta, no entanto, que as partes devem ter acesso irrestrito aos documentos, como forma de proteger o devido processo legal e assim, criticar, se for o caso, eventual seleção que deixe de fora trecho relevante para o objeto da investigação. "A publicidade ampla é que precisa ser limitada ao objeto do inquérito. Não acho que se possa invocar princípio da publicidade para exigir divulgação geral de todo o conteúdo de uma reunião ministerial, que não é um ato público", explica Mendonça.

Excepcionalidades
O que está posto é a justificativa do sigilo em relação a temas não relacionados ao inquérito. E uma das principais motivações para essa excepcionalidade é o conteúdo da reunião, que poderia revelar algum segredo de Estado, causar incidentes diplomáticos ou ainda colocar em risco a segurança nacional. 

Mas não é o caso, segundo um dos interessados na divulgação integral do conteúdo, Sergio Moro. Segundo o ex-ministro, o fato de alguns ministros terem feito declarações potencialmente ofensivas não justifica a manutenção do sigilo.

Mesmo diante da possibilidade de ter informações sensíveis, chamou a atenção do criminalista Welington Arruda que o Planalto defenda a divulgação de parte do diálogo entre o presidente e Moro. "Quem garante que durante a reunião, como um todo, não houve manifestação do chefe do Executivo no sentido de interferir na PF, tal qual acusou o ex-ministro, em outros diálogos, que não com Moro?", questiona.

Segundo o advogado, a reunião faz parte de uma investigação e a lei define que ela precisa ser pública, com exceção das hipóteses em que haja "motivos que garantam o sigilo das informações e de documentos". Para Arruda, não havendo essas hipóteses, o decano somente manteria o sigilo do vídeo para "evitar dissabores políticos com o Planalto".

Direitos balanceados
A constitucionalista Vera Chemim analisa que o cenário das gravações sobre as tratativas entre agentes públicos remetem inevitavelmente aos princípios constitucionais.

Ela ressalva que os direitos fundamentais individuais não são absolutos e aponta que as informações gravadas dizem respeito à função pública exercida por pessoas físicas. Neste contexto, diz, o artigo 21 do Código Civil prevê o direito à privacidade a pessoa natural e não a função pública de um agente público.

"Portanto, a 'pessoa natural' tem direito à vida privada mas, os atos dos agentes públicos, ou seja, as funções públicas exercidas por eles são de 'interesse público' e devem ser divulgadas, prevalecendo incondicionalmente sobre o seu direito à privacidade enquanto 'pessoa natural', ainda mais num contexto permeado de indícios que permitem deduzir que se está diante de 'desvios de finalidade' na condução da Administração Pública", explica.

Entenda o caso
O inquérito 4.831 investiga as acusações feitas pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro ao pedir demissão da pasta. Segundo ele, na reunião de 22 de abril — aniversário de 520 anos do Brasil — Bolsonaro, movido por intenções pouco republicanas, o pressionou para indevidamente trocar o comando da Polícia Federal.

Cada parte do processo defende um lado. A Advocacia-Geral da União sugere que apenas as falas de Bolsonaro devem ter o sigilo levantado. A Procuradoria-Geral da República pediu que não seja divulgada a íntegra do conteúdo da reunião, mas só as falas do presidente relacionadas ao objeto da investigação, ou seja, as relacionadas à atuação da Polícia Federal. Já a defesa de Sergio Moro quer a divulgação ampla para amparar as acusações do ex-juiz federal, conhecido por seus vazamentos seletivos e descumprimento à lei das escutas telefônicas. 

Celso de Mello definiu inicialmente que o inquérito tramitaria com ampla publicidade, mas depois impôs sigilo temporário no caso específico da reunião. A gravação da reunião foi enviada à corte e transcrita. Agora, aguarda-se manifestação do ministro sobre o alcance da publicidade que será dada à reunião.

Inq 4.831

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!