Os nudges antiepistêmicos da delação premiada: entender para reformar
20 de dezembro de 2019, 8h00
Mesmo com ajustes no pacote aprovado, a delação continua a merecer a atenção dos estudiosos que se preocupam com o estímulo indevido que a instauração de uma investigação pode chegar a representar à determinação correta dos fatos. Declarações deliberadamente falsas podem ganhar as páginas dos anexos a partir de um empurrãozinho, um nudge3 antiepistêmico, que o sistema jurídico é capaz de gerar. Como se isso não bastasse, o problema das falsas declarações está longe de poder ser reduzido às mentiras intencionalmente armadas por aqueles que querem apontar algozes fictícios para lograr, assim, o desvio de atenção dos órgãos acusatórios. Porque há também os erros honestos que, por golpes do regular funcionamento da memória, são comissíveis por qualquer pessoa que tenha a genuína intenção de colaborar com o que sabe4. Outra vez, o desenho institucional relativo ao instituto pode estar tendente a funcionar como convite fácil a falsas hipóteses fáticas. Por essas razões, a preservação do instituto da delação premiada em nosso sistema jurídico faz necessário manter sob discussão os riscos epistêmicos5 que a atribuição de peso probatório à palavra de alguém sempre deve merecer.
I. A sobrevaloração da confissão
Assumir todos os delitos imputados a si configura o pontapé inicial de toda negociação que possa resultar em delação. “Colaborar” significa, em primeiro lugar, não resistir às alegações feitas pelo órgão acusatório contra si. Não é de hoje, contudo, que, com razão, questiona-se o potencial epistêmico das confissões. A confissão, entendida como declaração do sujeito de haver cometido um delito, seria instrumento de conhecimento do fato se e somente se a declaração corresponde ao que realmente ocorreu. Do contrário, tratar-se-ia de uma mera alegação daquele que pretende atingir resultados processuais que podem ser incompatíveis com a determinação adequada dos fatos. Ora, quando a afirmação de que se cometeu um delito pode fazer cessar a prisão provisória, as conduções coercitivas, o bloqueio a bens e as recorrentes ameaças de overcharging6, o preço do silêncio ganha contornos insuportáveis7. Dito de forma mais direta, a confissão de crimes não cometidos é sistematicamente propiciada pela falta de simetria do jogo processual como já sinalizado: "Na lógica da delação/colaboração premiada, por exemplo, a ideia é desarmar o oponente, transformá-lo física, psicológica, midiática e materialmente desamparado, tornando-o impotente às possibilidades defensivas de resistência. Com isso, quanto mais rápida e violenta for a investida, inclusive com ameaças a terceiros e familiares, melhores os resultados8.
Sendo assim, é questionável a voluntariedade de que depende o próprio valor epistêmico a ser atribuído à declaração de que se cometera um crime. O constrangimento joga por terra qualquer valor epistêmico que se possa inicialmente, por ingenuidade que seja, querer-se atribuir à confissão, pois o medo não é, nem nunca foi, instrumento adequado à correta determinação dos fatos9. Inegável, portanto, que o acusado se veja estimulado a tomar cursos de ação capazes de produzir desvios na pescaria probatória10 que lhe teve, até então, como alvo preferido. O cenário é propício à formulação de anexos detalhados o suficiente para aguçar a curiosidade da acusação de maneira que os métodos ocultos de investigação11 sejam redirecionados a outros sujeitos, que não o acusado.
Dessa maneira, a regulamentação da delação deve considerar a diferença entre mera coerência narrativa e cuidadosa determinação dos fatos. É preciso evitar produzir perversamente estímulos à primeira que nos distanciem de alcançar a segunda. Considerando a elevada coercitividade de que o órgão acusatório se serve para conseguir a confissão, a delação se afasta do potencial epistêmico desejável a todo e qualquer mecanismo de determinação dos fatos posto em uso em sistemas de justiça compromissados com a presunção de inocência e com um standard probatório penal que se diga elevado, pois a condenação conseguida através da sobrevaloração da confissão não alcança nem um, nem outro.
II. A porta aberta aos erros honestos
Para além do estímulo perverso que o sistema jurídico oferece a versões deliberadamente falsas no contexto das delações premiadas, há também o risco de reprodução dos chamados erros honestos. Os erros honestos são cometidos por aqueles que genuinamente acreditam numa informação que, no entanto, é falsa12. Assim, se por um lado a memória dos delatores configura-se num importante referencial para as investigações em face de futuros investigados, por outro, é imperioso considerar os fatores que podem contaminar a memória. A passagem do tempo é um desses fatores13, dado que muitas vezes os delatores devem preencher seus anexos com eventos de anos e anos atrás. A memória não funciona como uma máquina fotográfica e seu frágil conteúdo se degrada com transcurso temporal. A memória também não é um baú14 que armazena, intactos, os fatos aos quais o órgão acusatório entende relevantes.
Além do transcurso temporal, no âmbito das delações também preocupa o potencial sugestivo que a sua rotina pode apresentar: indicações para que determinados nomes sejam citados, o estímulo para dizer aquilo que os promotores querem escutar, podem produzir confusões entre fatos desejados e fatos efetivamente vividos. Diretivas de como o relato do delator deve ser produzido e integrado ao processo precisam ser formuladas tendo em vista um genuíno compromisso do processo penal em evitar condenações injustas, com respeito à presunção de inocência e a um standard probatório mais elevado15. A epistemologia e a psicologia do testemunho juntam-se ao garantismo processual penal numa dica de ouro: a forma de produção importa no resultado a ser produzido. Há um longo caminho regulamentatório a ser percorrido para que a delação possa, enfim, deixar de funcionar como um grande amontoado de nudges antiepistêmicos.
1. LOPES Jr., Aury. et al. A desconstrução do pacote Moro. In Estadão, acesso por: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-desconstrucao-do-pacote-moro/?fbclid=IwAR1zjxkbZ5HXBysa53n9lZdHy9N_0GUZcrdkvZYvTFJVkR98OuxLU2oL29A
2. Idem.
3. A noção de nudge (empurrãozinho) foi desenvolvida por Thaler e Sunstein em obra homônima e significa “qualquer fator que altere significativamente o comportamento de humanos” (p.17). Embora a obra se dedique prioritariamente a tratar de nudges positivos (que alteram o comportamento dos humanos para resultados positivos e desejáveis), é sempre possível que uma arquitetura equivocada funcione como um nudge negativo, propiciando comportamentos cujos resultados são indesejáveis. Nossa afirmação, neste artigo, é que a falta de regulamentação da colaboração até agora tem funcionado como um nudge negativo quanto aos compromissos epistêmicos, isto é, de correta determinação dos fatos. THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. “Nudge”. Trad. Ângelo Lessa. Rio de Janeiro: Objetiva. MORAIS DA ROSA, Alexandre; GOULART, Bianca Bez. O uso do nudge no comvencimento judicial penal. https://www.conjur.com.br/2018-jul-27/limite-penal-uso-nugde-convencimento-judicial-penal
4. Sobre o tema das falsas memórias, ver STEIN, Lilian Milnitsky et al. “Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas”. São Paulo: Artmed Ed. 2010.
5. Os riscos epistêmicos da delação premiada foi tema de TCC de Antonio Vieira no Master en Razonamiento Probatorio da Universitat de Girona. Sob a orientação de Jordi Ferrer Beltrán, Vieira escreveu trabalho que foi transformado no artigo Riesgos y controles epistémicos en la delación premiada: aportaciones a partir de la experiencia en Brasil, atualmente no prelo em obra coletiva intitulada “Del Derecho al razonamiento probatorio”, Jordi Ferrer Beltrán y Carmen Vázquez (orgs), da Marcial Pons, Espanha .
6. Boa definição de overcharging é oferecida por José Carlos Porciúncula: “No overcharging, o Ministério Público imputa ao sujeito crimes dos quais sabe que é inocente”. PORCIÚNCULA, José Carlos. Inconstitucionalidades e inconsistências dogmáticas do instituto da delação premiada (art.4o da Lei 12.850/13). In “Arquivos da Resistência: ensaios e anais do VII Seminário Nacional do IBADPP”, Diana Furtado Caldas, Gabriela Lima Andrade, Lucas Carapiá Rios (orgs.). Florianópolis: Tirant lo Blanch.
7. VIEIRA, A. “Riesgos y controles epistémicos en la delación premiada…”, pp. 12-13.
8. MORAIS DA ROSA, Alexandre; Bermudez, André Luiz. “Para entender a delação premiada pela teoria dos jogos: táticas e estratégias do negócio jurídico”. 2a ed. Florianópolis: Emais editora e Livraria Jurídica. p. 87.
9. Não por outra razão, John Langbein traça paralelo entre o plea bargaining e a tortura. A parte de que adotem mecanismos mais ou menos severos de coerção, ambos têm o objetivo de que o acusado ceda e se declare culpado. LANGBEIN, J.H. “Tortura y plea bargaining” in (Maier y Bovino, coord.) El procedimiento abreviado, Buenos Aires, Editores del Puerto, 2001. No mesmo sentido e estendendo o paralelo da tortura à delação, VIERA, Antonio. “Riesgos y controles epistémicos en la delación premiada…”, p. 9. Além disso, sobre o questionável valor da confissão, Ibáñez. “Conferência: A valoração racional da prova testemunhal”, ocorrida na UFRJ, em 25/10/2019, no marco de colaboração entre o GREAT, o Matrizes do Processo Penal Brasileiro e do IDDD. A partir de 1h15min Perfecto Andrés Ibáñez expõe crítica ao apego que mesmo os sistemas jurídicos de corte acusatório ainda nutrem a respeito da confissão. Acesso por: https://www.youtube.com/watch?v=oBwSppIHs5w;
10. Para saber mais sobre o fenômeno da pescaria probatória (fishing expedition), ver SILVA, Viviane Ghizoni da; SILVA, Philipe Benoni Melo e; MORAIS DA ROSA, Alexandre. “Fishing expedition e encontro fortuito na busca e apreensão: um dilema oculto do processo penal”. Florianópolis: EMais, 2019.
11. PRADO, Geraldo. “Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos”. São Paulo: Marcial Pons. 2014.
12. RAMOS, Vitor de Paula. “A prova testemunhal: do subjetivismo ao objetivismo. Do isolamento científico ao diálogo com a psicologia e a epistemologia”. São Paulo: RT, 2019.
13. DIGES, Margarita. “Testigos, sospechosos y recuerdos falsos: estudios de psicología forense”. Madrid: Trotta, 2016.
14. A metáfora do baú é de Lilian Stein e foi usada em aula ministrada à Defensoria Pública da Bahia, no âmbito do curso “Provas: questões fundamentais”.
15. A preocupação com um desenho institucional com compromisso epistêmico também mereceu atenção de Caio Badaró em MASSENA, Caio Badaró. “A prova testemunhal no Processo Penal brasileiro: uma análise a partir da epistemologia e da psicologia do testemunho”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 156, 27, São Paulo: RT, 2019.
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