Anuário da Justiça

TJ-SP ignora Supremo, mas usa literatura médica para condenar por tráfico

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29 de agosto de 2019, 7h15

Por se tratar de crime contra a saúde e a paz pública e com potencial de amplo reflexo em toda a sociedade, o tráfico de drogas deve ser tratado de forma que não permita o esvaziamento do rigor penal. Essa é a tônica utilizada nos julgamentos no Tribunal de Justiça de São Paulo em casos enquadrados na Lei 11.343/2006, a Lei de Drogas. A postura é defendida amplamente nos acórdãos e faz com que alguns desembargadores adotem critérios estritos para o apenamento.

Um dos exemplos é a definição de dose letal utilizada em algumas câmaras para mensurar a reprovabilidade do caso concreto. Baseados em jurisprudência –um voto do desembargador Alceu Penteado Navarro, de 2013– e em literatura médica, quatro desembargadores adotam a medida de 0,02 g para calcular quantas doses letais a quantidade de cocaína ou crack apreendida poderia render. No caso de maconha, o cálculo é 0,76 g por “um fininho”.

Assim, réu pego com 4,5g de cocaína em 19 invólucros tem potencial para “225 porções insuportáveis, ensejando quadro de overdose”, segundo o desembargador Julio Cesar Farto Salles, da 8ª Câmara. Há exemplos do mesmo posicionamento em decisões da , Câmaras – nesta última, o desembargador Luiz Antonio Cardoso cita como referência voto do desembargador Geraldo Luis Wohlers, da 5ª Câmara, que não utiliza mais esse critério desde março de 2018.

A literatura médica citada inclui o livro “Manual de Medicina Legal”, de Delton Croce e Delton Croce Júnior, que faz referência a uma “forma superaguda de intoxicação cocaínica que evolve rapidamente para o colapso e morte”. E, nesses casos, microdoses podem ser suficientes.

Levantamento feito para o Anuário da Justiça São Paulo 2019, que será lançado em 11 de setembro, dá medida ao rigor bandeirante contra traficantes. Em 11 das 16 câmaras julgadoras, o entendimento majoritário é o de que o condenado pelo delito deve iniciar cumprimento de pena encarcerado. Mesmo que a obrigatoriedade do regime fechado, detalhada no parágrafo 1º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2012.

E para nove delas, a aplicação do chamado tráfico privilegiado, destinado a traficantes iniciantes e sem ligação com o crime organizado, não retira a hediondez do delito. Isso significa que benefícios prisionais e progressão de regime seguirão regras mais duras do que as delegadas a crimes comuns. 

Redutor de pena previsto no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei de Drogas, o tráfico privilegiado já foi declarado não-hediondo pelo STF em 2016, em decisão que não tem efeito vinculante, porque tomada em Habeas Corpus. Esse entendimento é seguido pelas 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça, que julgam matéria criminal. 

Gravidade abstrata
Dados da Secretaria Judiciária mostram que, em 2018, a corte recebeu 47.903 casos de tráfico de drogas, quase o dobro do número do segundo crime mais julgado, de roubo (27.978). Nas sessões de julgamento e acórdãos, desembargadores da Seção de Direito Criminal fazem referência à explosão do número de casos, que se desdobram em recursos, embargos e agravos de execução. Em muitas câmaras, 70% da pauta é composta por casos enquadrados na Lei 11.343/2006.

“O mal do nosso século é a droga, infelizmente. Se não houver uma repressão firme e uniforme por parte de todos os Judiciários estaduais, não vamos vencer essa luta. Em São Paulo nós temos procurado manter o rigor na aplicação e execução das penas corporais derivadas dos crimes de tráfico de entorpecente”, afirmou o presidente da Seção Criminal, desembargador Fernando Torres Garcia, em entrevista ao Anuário da Justiça

Para o assessor criminal da Defensoria Pública de São Paulo, Glauco Mazetto, muitas câmaras do TJ-SP têm posição refratária em relação aos julgados de Brasília. “Se você tem um posicionamento de corte superior de que não se deve reconhecer um direito ao réu, muitas vezes não demoram a acolher. Mas quando o posicionamento implica em reconhecer um direito, o resultado é oposto”, afirma.

A hediondez do tráfico privilegiado é apontada por ele como sintomática, especialmente porque a diferença entre a pena mínima é sensível: cai de 5 anos no tráfico de drogas para 1 ano e 8 meses quando aplicado o redutor. “Aparentemente, faz-se um juízo político e não jurídico dessa escolha legislativa. Vai de encontro com a percepção política sobre o crime”, diz Mazetto.

Para o defensor público, há a impressão de que parte dos desembargadores considera o tráfico de drogas tão grave que merece sempre o mesmo direcionamento. “Há várias decisões no STJ e STF que afastam a gravidade abstrata do delito como argumento jurídico válido, mas não é o que acabamos vendo”, aponta.

Esvaziamento do rigor penal
“O tráfico, se não combatido com destemor, incute sentimento de insegurança e descrédito. De que vale o trabalho honesto e, não raro, remunerado de maneira indigna, se o traficante condenado recebe punição branda? Isso repugna, sem dúvida, o senso médio do cidadão”, avalia o desembargador Luiz Toloza Neto, da 3ª Câmara, uma das mais rígidas do TJ-SP. As críticas são recorrentes por parte dos julgadores.

Na opinião do desembargador Luis Soares, da 4ª Câmara, é essa falta de rigor na aplicação da lei que faz com o delito seja visto como ato corriqueiro e cotidiano. “Não há distinção entre ricos ou pobres, raça ou religião; o comércio ilegal avança de forma incontrolável, ora favorecido pela insuficiência policial, ora beneficiado pelo abrandamento do rigor penal”, concorda o juiz em segundo grau Cesar Augusto Andrade de Castro, da 3ª Câmara.

O desembargador Amaro Thomé, da 2ª Câmara, defende que também o pequeno traficante tenha punição severa, pois basta que a venda de drogas seja realizada uma única vez para causar série de malefícios. “Respeitosamente, ao meu ver, resulta ilógico proceder-se ao esvaziamento deste rigor aos condenados por crimes de tráfico de drogas, sob pena de eliminar o tratamento rígido que a lei buscou a fim de concretizar a política criminal”, explica.

Para o desembargador Roberto Porto, da 4ª Câmara, o tratamento mais severo configura eficiente medida política-criminal, inclusive de acordo com tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. O desembargador Miguel Marques e Silva, da 14ª Câmara, define como “imprescindível” que essa resposta dura seja dada pelo Judiciário. “A sociedade não tolera o traficante, não podendo o Poder Judiciário fazer ouvidos moucos ao clamor social”, exalta o desembargador Poças Leitão, da 15ª Câmara.

“Uma sociedade repleta de viciados e dependentes é uma sociedade que caminha a passos largos para sua própria destruição com o prejuízo de todos, menos dos traficantes que, com o dinheiro e patrimônio amealhados de forma criminosa, poderão deixar o País e mudarem-se para outros lugares, onde, com certeza, passarão a destroçar outras sociedades, outras inúmeras famílias”, explica o magistrado.

A resposta, portanto, deve vir do Judiciário. Nas palavras do desembargador José Damião Cogan, da 5ª Câmara, “não pode o julgador ter seu olhar voltado para as estrelas, mas deve ser homem do seu tempo, que não ignora que a leniência com o tráfico destrói famílias, jogando usuários e viciados na sarjeta, bem como incrementa roubos, latrocínios, furtos e homicídios”. 

Humanidade em risco
Ao negar uma arguição de inconstitucionalidade feita pela defesa em um caso, o desembargador Ruy Alberto Leme Cavalheiro, da 3ª Câmara, discorreu sobre a evolução da legislação penal, que culminou na promulgação de lei especial sobre o tema. Isso se deveu ao fato de o uso de drogas ter deixado seu lado romântico, simbolizado por Sherlock Holmes, personagem dos livros do britânico Arthur Conan Doyle, que faz uso recreativo de entorpecentes, para chegar à situação atual.

“Isso significa que a perpetuação da espécie pode estar em risco, posto que a sua degeneração pela transferência de caracteres genéticos assim contaminados pode prejudicar o que a natureza, para os evolucionistas, ou Deus, para os criacionistas, trouxe para o Homem. Basta analisar a discussão sobre o seriado de TV Walking Dead em que se debate se aqueles mortos-vivos estariam, ou não, representando os usuários de droga na atual sociedade”, afirma, no acórdão.

O desembargador Antonio Carlos Machado de Andrade, da 6ª Câmara, também chama a atenção para a zumbificação dos dependentes químicos, ao criticar as consequências do tráfico de drogas. Em sua opinião, o traficante causa mal irreparável à sociedade ao transformar “seu semelhante num morto vivo, ou seja, um verdadeiro zumbi, como os que se vê na mídia”, e tudo por apenas uma razão: “devido à ação de pessoas destituídas de qualquer sentimento de amor ao próximo, como é o caso do traficante”.

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