Anuário da Justiça

"Rigor penal com que TJ-SP é rotulado é absolutamente técnico e constitucional"

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4 de agosto de 2019, 7h00

Spacca
Caricatura Fernando Torres Garcia [Spacca]Para o desembargador Fernando Antonio Torres Garcia, presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, juízes e desembargadores que atuam na área penal têm uma missão primordial: proteger a sociedade ordeira. Se isso significa ser mais criterioso e rigoroso na interpretação da lei, então a fama que o Judiciário paulista ostenta corretamente o precede. E não há nenhum impedimento nisso.

“Em São Paulo, mercê de sua Polícia e de seu Poder Judiciário, quiçá até mais rigoroso do que em outros estados, nós temos uma melhor sensação de segurança. E esse rigor com o qual São Paulo é rotulado é absolutamente técnico, baseado na Constituição, nos Códigos Penal e de Processo Penal e em toda legislação criminal”, afirmou, em entrevista para o Anuário da Justiça São Paulo 2019, com lançamento marcado para 11 de setembro.

Os números dão dimensão ao rigor paulistano. O estado de São Paulo alcançou, em 2019, a marca de 239 mil presos, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público. Esse número quadruplicou nos últimos 25 anos. Apesar de abrigar 21,8% da população brasileira, São Paulo tem sob sua responsabilidade 32,9% da população carcerária, que é de 727 mil detentos. A taxa de ocupação dos presídios paulistas é de 161%.

Essa postura rigorosa é replicada em diferentes graus nas 16ª câmaras julgadoras que compõem a Seção Criminal de TJ-SP e por vezes gera revisão das teses pelas cortes superiores e até atritos. Torres Garcia, que em novembro recebeu comitiva do Superior Tribunal de Justiça em reunião de trabalho para tratar de jurisprudência, nega desrespeito do tribunal paulista aos julgados que vêm de Brasília. O desembargador destaca os “porquês” de os julgadores adotarem determinados entendimentos.

“Por exemplo, essa questão de rotular São Paulo como um tribunal rigoroso. De fato, a certeza que tenho é que o Tribunal de São Paulo, os juízes criminais de São Paulo, tanto em primeiro quanto em segundo grau, privilegiam a sociedade sem qualquer desrespeito aos direitos individuais constitucionais de cada cidadão, em especial dos delinquentes. Nós privilegiamos e defendemos a sociedade. Então, se proteger a sociedade — fazer com que, por exemplo, um sentenciado retorne ao convívio social com muito critério —, se isso é ser rigoroso, nós de São Paulo realmente somos rigorosos”, explica.

Leia a entrevista:

ConJur — A Turma Especial Criminal vai julgar em breve o primeiro Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas em tema criminal do TJ-SP. Acredita que essa novidade do CPC 2015 pode realmente uniformizar o entendimento na Seção Criminal?
Fernando Torres Garcia — Esse IRDR é o primeiro que foi efetivamente instaurado na Seção Criminal. Nós tivemos dois outros pedidos, que não foram admitidos. Esse é o primeiro que efetivamente preencheu os requisitos legais. Ele cuida da natureza da decisão que defere a progressão de regime de cumprimento de pena. Se essa decisão é constitutiva ou declaratória. Eu acredito mesmo que o IRDR, mercê de sua força vinculante, desde que efetivamente preenchidos os requisitos legais, será um instrumento com bom potencial para a uniformização da jurisprudência.

ConJur — A matéria a que se refere o IRDR é um bom exemplo de como algumas vezes, na mesma câmara, desembargadores têm posições diferentes e, ainda assim, isso não gera voto divergente. Qual deve ser o limite entre uma divergência considerada “menor” e uma que requereria um voto vencido?
Fernando Torres Garcia —
Isso é uma questão de câmara a câmara, é uma questão muito subjetiva. É difícil estabelecer um padrão. Depende muito do momento, da câmara, do entendimento que a câmara tem, se é mais liberal ou mais rigorosa. Cada caso é um caso. Vou te dar um exemplo. Às vezes um desembargador entende que, em um caso roubo, o acréscimo por uma majorante deve ser de um terço ou de um quinto e o outro entenda que não. Isso, às vezes, em uma pena de seis anos, dez anos, nós estamos falando em dias, às vezes um mês. Então não compensa retardar um julgamento com eventuais embargos infringentes por coisas pequenas, por questão de dias para quem vai ter bastante pena a cumprir. Às vezes, o próprio réu tem interesse na prestação jurisdicional rápida, porque ele acerta isso depois na fase de execução. Foi só um exemplo. E assim existe em outros temas também: discussões pequenas que não recomendam que se… Não vou dizer que se adie, mas…

ConJur — Prolongue.
Fernando Torres Garcia —
Que se prolongue com eventuais embargos infringentes. Uma coisa que pode se resolver desde já, para que se evite um percurso às vezes de meses até interposição de embargos infringentes, de discussão, de julgamento. Trago a experiência da minha câmara [14ª Câmara Criminal]. Isso pouco acontece na minha câmara, mas nas demais eu sei que, às vezes, o desembargador declara a posição dele, mas, em razão do princípio da colegialidade, acaba julgando, até por uma celeridade na prestação jurisdicional.

ConJur — Cada câmara vai se ajustando?
Fernando Torres Garcia —
Cada câmara se ajusta nos próprios entendimentos. Isso, embora possa parecer incoerente, para fins de celeridade e uniformidade de julgamento, é o que melhor acontece. Pode ter certeza disso. 

ConJur — Em novembro, ministros do STJ fizeram reunião de trabalho com desembargadores do TJ-SP para tratar de  jurisprudência. O encontro foi produtivo?
Fernando Torres Garcia —
Foi uma reunião extremamente proveitosa. A minha assessoria preparou todo um material estatístico demonstrando dados inerentes a recurso especial e Habeas Corpus originários no STJ em relação às decisões de São Paulo. Os dados demonstraram que São Paulo, ao contrário do que se diz, cumpre, sim, as decisões do STJ. Houve algumas discussões a respeito de temas específicos e chegamos a alguns entendimentos. Mas o importante é que a reunião se mostrou extremamente proveitosa e passível até de repetição. São Paulo vai estar sempre à disposição do STJ e do Supremo Tribunal Federal para tudo o que quiserem conosco eventualmente conversar. 

ConJur — Discutiu-se entendimento jurisprudencial?
Fernando Torres Garcia —
Não jurisprudencial, mas sobre o porquê se julga desta ou daquela maneira. Por exemplo, essa questão de rotular São Paulo como um tribunal rigoroso. De fato, a certeza que tenho é que o Tribunal de São Paulo, os juízes criminais de São Paulo, tanto em primeiro quanto em segundo grau, privilegiam a sociedade sem qualquer desrespeito aos direitos individuais constitucionais de cada cidadão, em especial dos delinquentes. Nós privilegiamos e defendemos a sociedade. Então, se proteger a sociedade — fazer com que, por exemplo, um sentenciado retorne ao convívio social com muito critério —, se isso é ser rigoroso, nós de São Paulo realmente somos rigorosos. 

ConJur — Por isso a fama.
Fernando Torres Garcia —
Sim, mas talvez seja por isso que você sai aqui do Palácio da Justiça e vai até o outro lado da Praça da Sé com certa tranquilidade, coisa que em outros estados já não se consegue fazer com muita fluidez e com um mínimo de segurança. Em São Paulo, mercê de sua polícia e de seu Poder Judiciário, quiçá até mais rigoroso do que em outros estados, nós temos uma melhor sensação de segurança. E esse rigor com o qual São Paulo é rotulado é absolutamente técnico, baseado na Constituição, nos Códigos Penal e de Processo Penal e em toda legislação criminal. Tenho certeza disso. 

ConJur — Uma alteração legislativa recente na lei excluiu a majorante de roubo por uso de arma branca e levou a arguição de inconstitucionalidade pelo TJ-SP, depois declarada improcedente pelo Órgão Especial. Como avalia essa questão? 
Fernando Torres Garcia —
Discutiu-se a constitucionalidade ou não desse dispositivo da Lei 13.654, que alterou o artigo 157, do Código Penal. Quando houve essa alteração eu já estava na Presidência da Seção, não estava no dia a dia julgando matéria criminal. Por conta disso fui buscar socorro com os colegas que estão vivendo isso e obtive deles a certeza de que hoje a seção está pacificada em relação à constitucionalidade. Nos crimes praticados anteriormente à vigência dessa alteração, o tribunal tem reconhecido e tem feito o abrandamento das reprimendas. Particularmente, acho que do jeito que estava era melhor. Eu não teria feito essa alteração. Mas já que se fez e foi considerada constitucional, estamos cumprindo rigorosamente, sem qualquer sobressalto. 

ConJur — O tráfico de drogas é o delito que mais julgado pela Seção Criminal. Desembargadores afirmam que corresponde a até 70% dos casos na pauta. 
Fernando Torres Garcia —
 É realmente o nosso maior volume de trabalho. O número de processos relativos a esses crimes tem crescido vertiginosamente

ConJur — Isso em um momento em que discute-se alterações legislativas sobre o tema, com uma atualização da Lei de Drogas. Entende que é necessário fazer mudanças?
Fernando Torres Garcia —
Alterações sempre se mostram necessárias para adequar a norma à realidade social, mas torno a dizer: isso deve ser feito com muito critério. Não basta alterar a lei, abrandando o cumprimento dessas penas. Pelo contrário. A minha visão é mais rigorosa, talvez até pela própria natureza do nosso tribunal. Não é concedendo regime aberto a torto e a direito que nós vamos resolver esse problema. Por exemplo, não é reduzindo a pena sem muito critério que se resolve. Tem que haver rigor no cumprimento dessas penas. 

ConJur — O senhor fala do abrandamento do regime inicial.
Fernando Torres Garcia —
Se o traficante recebe de cara o regime aberto, isso não é retribuição que se dê a um crime tão grave que hoje assola nossa sociedade. O mal do nosso século é a droga, infelizmente. Se não houver uma repressão firme e uniforme por parte de todos os tribunais estaduais, não vamos vencer essa luta. Em São Paulo nós temos procurado manter o rigor na aplicação e execução das penas corporais derivadas dos crimes de tráfico de entorpecente. Evidentemente, temos feito a diferenciação entre usuário e traficante.

ConJur — Essa é também uma questão subjetiva.
Fernando Torres Garcia —
A diferença é nítida. Por exemplo, você pega um menino com cinco, seis gramas de maconha, sem nenhum sinal externo de traficância. Se for um traficante, está em início de vida delinquencial e deve ter uma primeira chance. Nós fazemos muito isso na Câmara Especial com os menores infratores. Mas não é só a pouca quantidade que diz se ele é ou não um traficante. 

ConJur — É o conjunto probatório.
Fernando Torres Garcia —
Exato. Hoje sabemos que os traficantes, ainda que em menor escala, não ficam com um quilo de entorpecente no bolso. Eles guardam, ficam com pouca quantidade, justamente para, se forem presos, não serem tachados de traficantes. Com isso, só mesmo a prova dos autos irá determinar se é ou não. Quando essa condenação transita em julgado, em São Paulo, nós temos buscado fazer com que esse cumprimento se dê com absoluto rigor, para que haja retribuição e, sobretudo, a prevenção nesse tipo de crime.

ConJur — Entre as discussões sobre a Lei de Drogas surge a de que a falta de objetividade é o grande problema. O artigo 33 traz 18 verbos para tipificar a prática do crime. Acredita que é necessária uma objetividade maior?
Fernando Torres Garcia —
Eu acho que esse tipo penal aberto deixa margem ao magistrado. Eu vi outro dia um deputado falando sobre estabelecer uma tabela: se for, por exemplo, até 100 gramas é usuário, de 101 para cima é tráfico. Mas você pode ter 110 gramas com um réu que não seja traficante e pode ter 80 gramas com um que é. Tabelar e objetivar é muito perigoso. 

ConJur — A criminalidade vai usar essa tabela.
Fernando Torres Garcia —
Sim. “Tem muito verbo”. Está bom, então vamos reduzir para dois. Quais verbos? Antes, na Lei 6.368 [revogada pela atual Lei 11.343/2006], a pena era de três a oito anos. Então veio o Legislativo: “agora vamos estabelecer uma lei rigorosa. Cinco anos é o mínimo”. Ótimo. Mas aí prevê no parágrafo quarto do artigo 33, da Lei de Drogas, que se for primário e de bons antecedentes, terá reduzida a pena de um sexto a dois terços. A pena cai para um ano e oito meses de reclusão.

ConJur — Não teve o efeito esperado.
Fernando Torres Garcia —
Todos esses momentos legislativos de impulso, sobretudo quando há mudança de governo, são perigosos. Para mais ou para menos. Então espero que passe este ano sem muita alteração legislativa, a fim de que haja uma reflexão maior, uma sedimentação das ideias, porque depois que você edita a lei o Judiciário fica amarrado. Nós, queiramos ou não, somos operadores da lei e aplicadores dessa lei. Essa alteração que você mencionou nos casos de roubo: para que ela veio? Estava sedimentada a jurisprudência e a polícia trabalhando certinho. Aí você tira a arma branca como uma majorante do roubo. Nós temos roubos gravíssimos cometidos com facão. E hoje não é mais considerada a arma branca para efeito de majoração. Então fica difícil. A gente precisa ter muita racionalidade. A reflexão é a melhor companhia que existe para esse tema de elaboração legislativa.

ConJur — Como o senhor avalia a ideia de flexibilizar o porte de armas? Fernando Torres Garcia — Minha posição é absolutamente pessoal, desvinculada da figura da Presidência da Seção de Direito Criminal. Cada juiz, cada cidadão tem o seu posicionamento. O meu é favorável. Isso não trará, ao contrário do que se diz, incremento da criminalidade. É o direito de cada cidadão de ser armar e se defender que, ao meu sentir, deve ser preservado. 

ConJur — Nesse momento em que o recado das urnas é o da maior repressão criminal, um juiz, quando decide, tem que levar em conta essa questão?
Fernando Torres Garcia —
Eu respondo por mim e tenho certeza de que pela maioria de nossos juízes. Não é o momento político que determina a nossa prestação jurisdicional. Tenha certeza disso. Se nós estivermos em um governo mais liberal ou mais rigoroso, não é isso que vai nos pautar. Nós nos pautamos pela observância rigorosa da lei e da aplicação do Direito.  É isso que nos guia, independentemente da paixão política de cada governo. É evidente que hoje o governo federal é muito mais impositivo do que era o anterior, em que havia uma flexibilidade de pensamento muito maior. Pelos 35 anos que tenho como magistrado paulista, digo que não é isso que pauta a cabeça de cada juiz de primeiro ou de segundo grau de jurisdição, tenha certeza disso.

ConJur — Nem os anseios da rua.
Fernando Torres Garcia —
Menos ainda. Se nós julgarmos com base no anseio de rua, os prejudicados não seremos nós, mas a própria sociedade, que não pode e não deve ter um Judiciário volátil, que se deixe levar pelo anseio momentâneo. Hoje o anseio é esse… e se amanhã for outro? O juiz não pode julgar com base em um momento político, nesta onda que está passando agora. Nós temos que julgar com base na Constituição, nas leis, na aplicação do Direito desde o seu nascedouro até a ponta final, que é a aplicação e o cumprimento de uma pena criminal.

ConJur — A revolução tecnológica vivida pelo judiciário paulista, se por um lado traz celeridade, por outro leva à automação dos julgamentos. Na Seção Criminal, onde a discussão é caso a caso, qual tem sido o impacto?
Fernando Torres Garcia —
Se eu disser que produtividade em massa, que os números que nós temos hoje a produzir não influenciam na qualidade, isso é mentira. Evidente que, para que se produza mais, você tem que abdicar um pouco de qualidade. Não que isso implique em qualquer fator pejorativo, mas por exemplo: se antes eu fazia um voto em 20 laudas citando jurisprudência, doutrina, julgados  do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, hoje não tenho mais como fazer isso. O volume de serviço implica em que se faça um voto mais enxuto, mais objetivo, justamente para produzir mais e ser mais direto, resolvendo o problema. O que o jurisdicionado quer é que se resolva o problema dele, de uma maneira ou de outra. Isso não implica, todavia, em abdicar do efetivo conhecimento dos fatos que o processo traz. 

ConJur — É preciso mudar a forma.
Fernando Torres Garcia —
Você pode massificar a maneira de produzir a sua decisão, mas não como você obtém os dados para essa decisão. Não vou deixar de analisar a prova porque ela não está mais no papel, ela vem por DVD, por CD ou vem no próprio sistema. Isso, tenho certeza, não acontece com qualquer magistrado. Você tem que tentar fazer uma linha de produção, mas sem abdicar da análise correta da prova. E a análise correta da prova é a busca da verdade real, que nos move do Direito Criminal. No momento em que você abdica disso, abdica do próprio Direito. Não é isso que nós temos que fazer. Agora, estruturar uma linha de produção sem abrir mão disso, isso é viável, sim. Há como padronizar, porém, sem abdicar do fato naturalístico que é trazido naquele processo específico. 

ConJur — Esse é o desafio.
Fernando Torres Garcia —
É o desafio de cada um. Em outras seções talvez seja possível fazer isso com mais facilidade. Na nossa seção não é possível, porque nós analisamos fatos. O Direito Penal não é uma ciência exata. Nós temos que nos debruçar sobre fatos. O que pode parecer exato para um não é para outro. Então, a discussão do fato é primordial na área criminal, e esse é o nosso dia a dia, é o nosso desafio. Tentar produzir sem ignorar a análise fiel dos fatos, sem abdicar da busca da verdade real.

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