Ao contrário de Dilma, Crivella não será afastado em processo de impeachment
6 de abril de 2019, 10h40
O processo de impeachment que pode levar à destituição do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, tem uma peculiaridade. Ao contrário de Dilma Rousseff (PT), ex-presidente, e de Luiz Fernando Pezão (MDB), ex-governador do Rio, Crivella poderá responder pelas irregularidades cometidas sem deixar o cargo.
Crivella é acusado de cometer infração político-administrativa ao renovar, no fim de 2018, contratos de mobiliários urbanos da prefeitura do Rio com as empresas OOH Clear Channel e JCDecaux. Segundo o fiscal Fernando Lyra Reys, autor do pedido, as companhias tinham 20 anos para explorar o serviço. Após esse período, os imóveis passariam a pertencer ao Rio. Porém, uma emenda estendeu o prazo do contrato. Para o fiscal, essa medida só poderia ser feita via licitação. Sem isso, pode haver prejuízo para os cofres públicos, argumentou.
A Câmara Municipal do Rio abriu processo de impeachment contra Crivella na terça-feira (2/4). Foram 35 votos pelas admissibilidade do pedido, 14 contra e uma abstenção. O presidente da casa, Jorge Felippe (MDB), se declarou impedido por ser o primeiro na linha sucessória caso Crivella seja destituído do cargo.
Antes da votação, Felippe afirmou que o procedimento seguiria as regras do Decreto-lei 201/1967, conforme determinado pelo Parecer 4/2018 da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio (PGCM-RJ).
Em julho de 2018, após três pedidos de impeachment do prefeito serem protocolados, a Câmara Municipal questionou a PGCM-RJ sobre o rito do procedimento. Isso porque há regras — em alguns casos conflitantes — sobre ele no Decreto-lei 201/1967, na Lei Orgânica do Rio e no Regimento Interno da Câmara.
No parecer, o procurador-geral da Câmara Municipal, José Luis Galamba Minc Baumfeld, aponta que a Constituição Federal, no artigo 85, elenca alguns crimes de responsabilidade do presidente da República e delega sua regulamentação e do processo de impeachment a leis especiais. Recepcionada em grande parte pela Carta Magna de 1988, a Lei 1.079/1950 regula os procedimentos de impeachment de presidente e vice, governadores, ministros de Estado e do Supremo Tribunal Federal e do procurador-geral da República, entre outras autoridades. No caso de prefeitos e vereadores, as normas foram estabelecidas pelo Decreto-lei 201/1967.
Há dois pontos principais de divergência entre o Decreto-lei 201/1967 e a Lei Orgânica do Rio. Um deles é no quórum exigido para recebimento da denúncia e abertura do processo de impeachment do prefeito. A norma federal exige a aprovação da maioria dos vereadores presentes na sessão. A municipal, o aval da maioria absoluta dos parlamentares da casa – ou seja, de 26 políticos, já que a Casa tem 51 integrantes.
Em 1997, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio declarou a inconstitucionalidade do quórum de maioria absoluta, estabelecido no artigo 115, II, da Lei Orgânica carioca. Vinte anos depois, o Supremo, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.764, passou a compreender o artigo 51, I, da Constituição Federal ("compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o presidente e o vice-presidente da República e os ministros de Estado"), como de reprodução proibida aos estados. Isso pelo fato de o dispositivo consistir em uma exceção ao princípio republicano, sendo inaplicável o princípio da simetria constitucional no caso.
Dessa maneira, vale a regra do artigo 5º, II, do Decreto-lei/1967, afirmou o procurador-geral da Câmara Municipal do Rio. Ou seja: para abrir processo de impeachment contra o prefeito, basta a concordância da maioria dos vereadores presentes.
Sem afastamento
Outro ponto em conflito entre o Decreto-lei 201/1967 e a Lei Orgânica do Rio diz respeito ao afastamento ou não do prefeito após a instauração do processo de impeachment. A norma federal prevê que o chefe do Executivo municipal permaneça no cargo durante todo o procedimento, só o deixando se for condenado ao final. Por sua vez, a lei carioca, replicando o que a Constituição Federal dispõe sobre presidente e vice, diz que, uma vez aceita a denúncia, o prefeito será afastado de suas funções.
De acordo com o procurador-geral da Câmara Municipal, prevalece a regra do Decreto-lei 201/1967. A seu ver, é inaplicável a simetria das regras da Constituição Federal, pois a medida não é prevista no decreto que regulamenta o processo de impeachment de prefeitos. Com isso, Crivella não foi afastado do cargo, mesmo após os vereadores terem aceitado a denúncia contra ele.
Quando é afastado do cargo, o prefeito perde um tempo do mandato. Como essa perda é irreparável, o ideal é que ele possa permanecer no cargo enquanto responde ao processo de impeachment, avalia o professor de Direito Constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano. Até porque, quando os vereadores votam o recebimento da denúncia, o chefe do Executivo municipal ainda não teve chance de apresentar sua defesa.
Além disso, destaca Serrano, a permanência do prefeito no cargo é benéfica para o funcionamento das instituições. Afinal, afirma, esse tipo de expediente pode ser usado para transformar o impechment em um voto de desconfiança, próprio do parlamentarismo, não do presidencialismo – regime adotado pelo Brasil.
A diferença nas regras sobre afastamento de presidente e prefeitos se justifica pela discrepância entre a realidade federal e as dos municípios, analisa Ana Paula de Barcellos, professora de Direito Constitucional da Uerj.
"Em muitos lugares do país, os municípios não têm uma estrutura administrativa significativa, e o afastamento do prefeito pode efetivamente trazer problemas para a cidade. De qualquer modo, essa foi a opção legislativa e não visualizo invalidade nela", diz Ana Paula.
Na mesma linha, o jurista e colunista da ConJur Lenio Streck não vê sentido em discutir se o afastamento do prefeito é positivo ou negativo. Acima de tudo, ele repudia processos de impeachment estritamente políticos.
"Antes de tudo, é preciso rejeitar qualquer tentativa de impeachment com conteúdo eminentemente político. Impeachment não é remédio para tirar governante do qual não se goste. Impeachment no Brasil tem sido distorcido. Segundo: Não há previsão de afastamento prévio do prefeito. Logo, despiciendo falar se é bom ou ruim se o afastamento deveria ocorrer. Além disso, o prazo é peremptório. 90 dias. Que correm a favor do réu", diz Lenio.
Metade do tempo
O prazo do processo de impeachment é mais um ponto em que o caso de Crivella é diferente dos de Dilma e Pezão e Dornelles. No caso de presidente, governador e seus vices, os políticos são afastados do cargo após a instauração do processo. Este deve ser concluído em 180 dias. Se isso não ocorrer nesse prazo, os réus reassumem seus postos, ainda que o procedimento continue em andamento.
Já o prazo para julgamento do processo de impeachment de prefeito é de 90 dias. Passado esse período, o procedimento é arquivado. Porém, não há impedimento à apresentação de nova denúncia, mesmo que sobre os mesmos fatos.
Lenio Streck considera o prazo para julgamento do impeachment de prefeito muito curto. Nesse tempo, destaca, o exercício do contraditório e da ampla defesa podem ser restringidos.
"O prazo de 90 dias não é o adequado. O devido processo legal pode vir a ser prejudicado. Mas deve se levar em conta o prazo de 90 dias que conta a favor da autoridade vítima de impeachment. Devemos ter muito cuidado em casos de impeachment. Política não substitui direito. Juízos morais não substituem o voto popular. Diria que devido processo legal, no caso de impeachment, deve ser tão ortodoxo como um processo penal. Em jogo, a soberania popular. Uma regra de regimento interno, por vezes usada como condutora de rito, deve ceder diante do princípio da soberania do voto."
Por outro lado, Ana Paula de Barcellos opina que 90 dias podem ser suficientes para avaliar a questão. Da mesma forma, Pedro Serrano entende que há bons motivos para a diferença nos prazos dos processos de impeachment de presidente e de prefeitos.
"Existe o prazo de 180 dias na Constituição Federal porque há duas Casas legislativas pelas quais o processo tem que passar: a Câmara dos Deputados, que faz o juízo de admissibilidade, e o Senado [que processa e julga]. Mas quando o acusado é o presidente da República, sempre é um processo mais complexo. Envolve todo o pais, o debate é intenso a nível público etc. Então se justifica o prazo de 180 dias. Mas isso não quer dizer que o prazo de 90 dias seja absurdo. Em uma câmara de vereadores, que tem menos membros, é totalmente possível cumprir esses prazos", avalia o professor da PUC-SP.
Diferentes tipos
Presidente e governadores ficam sujeitos a processo de impeachment, no Legislativo, se praticarem crimes de responsabilidade. Mas o termo é usado de forma diferente quando se refere a prefeitos. O Decreto-lei 201/1967 estabelece que, caso pratiquem esses delitos, os ocupantes desses cargos devem ser julgados pelo Judiciário, independentemente de aval da câmara dos vereadores.
No parecer, o procurador-geral da Câmara Municipal, José Luis Galamba Minc Baumfeld opina que, quanto aos prefeitos, os crimes de responsabilidade são crimes comuns. Portanto, sujeitos a ação penal pública e com penas de detenção ou reclusão.
A categoria para prefeitos que corresponde aos crimes de responsabilidade de presidente e governadores é a de infrações político-administrativas. O processo de impeachment de Crivella é baseado na infração político administrativa tipificada no artigo 4º, VIII, do Decreto-lei 201/1967: "omitir-se ou negligenciar na defesa de bens, rendas, direitos ou interesses do município sujeitos à administração da prefeitura".
Passo a passo
Com a abertura do processo de impeachment de Crivella, foi formada uma comissão processante, com os vereadores Luiz Carlos Ramos Filho (PTN), Paulo Messina (Pros) e Willian Coelho (MDB). Este foi escolhido presidente, e Luiz Carlos, relator.
O rito do impeachment de Crivella foi descrito pelo presidente da Câmara Municipal, Jorge Felippe, na sessão desta terça-feira (2/4), na qual os vereadores receberam a denúncia contra o prefeito. Após a publicação da decisão na edição desta quarta (3/4) do Diário Oficial carioca, Crivella terá 10 dias para apresentar sua defesa. A comissão processante tem até 90 dias para apresentar um parecer sobre o pedido de impeachment do prefeito.
Passado esse período, a comissão processante emitirá parecer dentro de cinco dias, opinando pelo prosseguimento ou arquivamento da denúncia. Transcorrido o prazo sem manifestação da comissão, o presidente da Câmara Municipal submeterá ao Plenário a decisão do prosseguimento ou arquivamento da denúncia, que será tomada por maioria simples de votos. O mesmo procedimento se dará se a comissão propuser a extinção do caso.
Caso a comissão processante opine pelo prosseguimento dos trabalhos, será iniciada a fase instrutória do processo (na qual haverá o depoimento de Crivella, inquirição de testemunhas, entre outras medidas). O prefeito ou seu representante legal poderão acompanhar todos os atos e diligências.
A fase instrutória deverá ser concluída em até 30 dias. Com o fim dessa etapa, haverá a abertura de vista do processo a Crivella, no prazo de cinco dias. Em seguida, a comissão processante terá 10 dias para emitir parecer final pela procedência ou improcedência da acusação. Caso a comissão não se manifeste neste prazo, o presidente da Câmara Municipal convocará sessão para julgamento da denúncia.
Depois disso, a Câmara dos Vereadores julgará se depõe Crivella. Para isso, são necessários dois terços dos votos.
Se ele for deposto, o vice deveria assumir. Mas Fernando MacDowell, vice de Crivella, morreu em maio do ano passado. Nesse caso, é necessário convocar novas eleições.
Alguns vereadores estão buscando apoio para alterar a Lei Orgânica do município e transformar a indicação do novo prefeito em uma eleição indireta, na qual o cargo seria ocupado por alguém indicado pelos representantes do Legislativo.
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