O ministro Barroso, o TSE, o Supremo e a democracia no Brasil
26 de setembro de 2018, 6h34
Perante uma plateia de executivos, em evento promovido pela XP, o ministro Luís Roberto Barroso manifestou seu receio pelo que pode vir a ocorrer nos próximos meses tendo em vista a polarização no campo político.
Há muitos distintos aspectos que merecem ser destacados no pronunciamento de Barroso e, rapidamente, não é possível tratar de todos. Vamos a alguns, lembrando que o ministro integra o Tribunal Superior Eleitoral, responsável por dirigir o processo eleitoral e dirimir eventuais conflitos.
Inicio pelo, aparentemente, novo estado de ânimo de Barroso. Até há pouco o ministro exprimia um radiante regozijo pelo que chamava de tempo alvissareiro pelo qual estávamos passando graças à "lava jato".
Estranhamente, o estado de ânimo inicial mudou e, do otimismo, Barroso passou ao pessimismo, contraditoriamente apontando como motivos o "combate à corrupção, o impeachment de Dilma Rousseff e o sucesso de dois mandatos de Lula", que talvez pela influência do local e auditório haja convertido em fracasso.
Um ministro do STF e do TSE sair em defesa de que o resultado das futuras eleições seja aceito por todos somente pode soar natural se as pessoas acharem natural duvidar de que depois do domingo virá a segunda-feira. Quando as instituições funcionam normalmente, é desnecessário convencer as pessoas que as instituições funcionam normalmente.
O fundado receio do ministro, segundo minha leitura, está não no dito, mas no não dito.
Com efeito, a novidade do atual momento é a ascensão do fascismo. É possível negá-la retoricamente desde que se esteja com disposição de explicar em futuro próximo como se passa de um minuto a outro do otimismo ao pessimismo.
Em um cenário que respeita a realidade, todos os que, à semelhança de Barroso, têm biografia comprometida com a democracia estão tensos com a possibilidade trágica que aparece no horizonte como alternativa.
Há problemas na fala do ministro, não somente por esconder o rabo do gato, deixando o restante do gato à vista, mas ainda ignorando o gato como se dele não se pudesse falar, mas também porque: a) não perdeu a oportunidade de tentar intervir ativamente em um processo que deveria arbitrar; b) perdeu a oportunidade de ouro de se redimir pelo explícito apoio à sistemática violação da Constituição e das leis do processo penal, a partir da 13ª Vara Federal de Curitiba, com consequências devastadoras para a afeiçoada institucionalidade, para a nossa economia e, enfim, para a democracia no Brasil.
Para começar, o juiz Barroso faz o que proíbe os demais juízes de fazer. Com efeito, ao indeferir a liminar no Mandado de Segurança 35.793-DF, impetrado contra o Provimento 71 do CNJ, o ministro acentua a necessidade de limitar a manifestação de magistrados em redes sociais para evitar uma espécie de efeito em cadeia capaz de a um tempo influir na opinião pública e profanar a imagem de imparcialidade que deve caracterizar a jurisdição.
As redes sociais são meios relativamente novos da tradicional e potente comunicação social, comunicação social tradicional que no Brasil é um quase monopólio que se partidarizou e que se opõe ao campo político da esquerda. Estes são fatos e dados incontroversos e é inaceitável presumir que Barroso desconhecia a possibilidade do dito transcender o auditório dos executivos do mercado de capital e das finanças (hoje eles quase se confundem).
A fala do ministro do TSE em desfavor de um dos blocos políticos que disputam legitimamente o poder viola os elementos mais comezinhos a definir a imparcialidade e não se justifica de maneira alguma. Ao menos não em uma democracia que aspira confiar em instituições que (deveriam estar) estão funcionando normalmente.
Colocado perante o dilema de aceitar a presença institucional do NPD (partido neonazista), o Tribunal Constitucional Federal alemão decidiu, em 17 de janeiro de 2017, por admitir, em termos, essa participação. A citada decisão foi muito criticada, por mim inclusive, mas o fato é que os juízes da corte alemã se manifestaram no processo constitucional, sinal de quem aposta nas instituições. Não falaram antes e fora do processo ao capital ou ao trabalho.
O anunciado receio de Barroso claramente ecoa o sentimento difuso, entre os democratas brasileiros, de que a ameaça fascista é real e sugere controlar essa ameaça com a Constituição. Esse é o otimista inveterado, que à vista das ameaças de quebra institucional por altos oficiais da reserva das Forças Armadas anuncia convicção em contradição com práticas recentes.
Vale notar que a menção ao controle via Constituição parece contraditória com a insinuação de que o impeachment de Dilma Rousseff foi inconstitucional. A respeito do que, frise-se, o STF se omitiu. Barroso não disse que o impeachment de Dilma Rousseff foi inconstitucional, mas não esclareceu de que forma ele diferiu do de Collor de Mello, para ser fator determinante da crise pela qual estamos passando.
Evidente que nesta quadra é essencial reafirmar a autoridade do poder civil sobre as Forças Armadas. As Forças Armadas não são um poder do Estado. Estes são o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, únicos legitimados.
Essa afirmação, todavia, deve ser inequívoca, sem subterfúgios retóricos e sem indevidas compensações discursivas, inconciliáveis com a realidade.
No mundo real não há dois extremos contra a democracia, mas apenas um: a extrema direita, representada no pleito eleitoral por aquilo que há de mais atrasado em nossa história e que não se envergonha — antes se orgulha — de se inspirar na ditadura de 1964-1985.
Na tentativa de passar uma imagem de imparcialidade que certamente seria agradável ao público de executivos da XP, Barroso deu-se ao salto lógico de afirmar que o sucesso dos governos Lula foi a causa dos fracassos posteriores (?!) (extrema direita e a esquerda seriam igualmente responsáveis pela atual crise).
Neste ponto há concessão explícita à pós-verdade. Inflação baixa, juros baixos, investimentos em educação pública e pleno emprego são convertidos em seu oposto. Até aí, presumo, vai a empatia com o auditório.
Acredito, no entanto, que a omissão ao fato de que economistas do nível de Joseph Stiglitz (Prêmio Nobel de Economia) e pensadores da qualidade de Avelãs Nunes (Universidade de Coimbra) critiquem as políticas de austeridade no lugar das anticíclicas, embasando assim, com muita competência, as decisões que no mundo real levaram o governo Lula ao sucesso neste campo, tenha menos a ver com o auditório e mais com a omissão temporária do STF relativamente a Eduardo Cunha e o que foi a política de terra arrasada que ele promoveu em face do governo Dilma Rousseff, que também cometeu erros, o que é reconhecido por todos.
Ao deixar de citar os fatores para o impeachment Eduardo Cunha e Aécio Neves, ao deixar de se referir à mudança no cenário das commodities, ao negligenciar o papel destrutivo das ações de Sergio Moro e alguns outros juízes e membros do Ministério Público nas indústrias de petróleo gás, construção civil pesada, indústria naval e alta tecnologia, Barroso perdeu a oportunidade de contribuir para a correção de rumos.
Há corrupção nos grandes negócios em todo o mundo. Ela deve ser investigada, e seus responsáveis devem ser punidos. A questão é que nos países ditos centrais isso é feito preservando empresas, empregos e a economia.
No Brasil, desde Curitiba, isso foi feito sacrificando empresas, empregos, a economia, o Direito e a legitimidade da política.
Os erros mais elementares de aplicação da lei processual penal, intencionais ou não, terminaram por merecer do próprio Barroso apoio público. Seus autores seriam reprovados na graduação em Direito.
Não se despreza a Constituição impunemente para depois pedir socorro a ela. Vejo um aspecto positivo óbvio na entrevista de Barroso: segunda-feira vem depois do domingo. As instituições devem ser respeitadas.
Vejo, no entanto, com tristeza a contradição de apelar ao respeito às instituições e tentar interferir indevidamente no processo político. Percebo a perda de uma oportunidade: ao reconhecer finalmente que vivemos tempos sombrios, Barroso deveria assumir o compromisso de efetivamente devolver a centralidade à Constituição, resgatando a presunção de inocência e impedindo juízes parciais de seguirem interferindo indevidamente no mundo político e econômico brasileiro.
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