Criminal Player

Os desafios de conformidade das atividades de inteligência policial

Autor

14 de março de 2025, 10h16

Enquanto a investigação criminal regulada por procedimentos é temporalmente limitada, com início, meio e fim, a inteligência policial é contínua, ampla e incremental. É justamente sobre os relacionamentos entre as duas modalidades de investigações que o Tratado de Inteligência Aplicada à Investigação Criminal, organizado pelos colegas Emerson Wendt e Cristiano de Castro Reschke se destaca, ao preencher lacuna relevante na gestão do conhecimento associado à atividade policial.

Spacca
Alexandre Morais da Rosa com tarja

A Gestão do Conhecimento [GC] é uma disciplina que envolve a identificação, captura, compartilhamento e utilização do conhecimento dentro de uma organização, comunidade e/ou domínio [universo do discurso; mundo pequeno]. No contexto do Processo Criminal, a GC é fundamental para maximizar a eficiência, aumentar a inovação e facilitar a tomada de decisões, desde que observadas as regras de conformidade.

O domínio da inteligência policial, em geral, era atividade paralela e complementar, realizada a partir dos resultados obtidos nas investigações criminais analógicas, isto é, orientava-se à compilação do passado (o que já havia sido objeto de investigação tradicional). Ainda que servisse de suporte às decisões estratégicas, após o 11 de setembro, a capacidade de processamento de dados e a redução dos custos das máquinas associada à qualificação do corpo policial, a inteligência policial ganhou protagonismo e relevância.

O contexto digital, com a ampliação das fontes de consulta, especialmente fontes abertas (Osint), autorizou a construção de bancos de dados estruturados, orientados à descrição e à predição do comportamento de relevância penal. Por consequência, as agências de controle social constataram a importância da atividade de Inteligência Policial. O livro representa o esforço de profissionais dedicados à melhoria do desempenho nas atividades de gestão do conhecimento a partir de dados.

Por um lado, exigem-se decisões políticas orientadas à qualificação do corpo técnico e, também, da alocação de recursos tecnológicos aptos à consolidação da estrutura necessária ao exercício da atividade de inteligência policial. Por outro lado, persevera o desconhecimento e a desconfiança quanto às atividades de Inteligência, ainda vinculadas ao modelo analógico de policiamento e de investigação, com desqualificações e preconceitos aos profissionais que, aparentemente, “não pegam no pesado”.

A polícia de contato, da investigação em campo, sempre será necessária. O que a inteligência policial confere são atalhos investigativos por meio da construção incremental do conhecimento de modo ampliado. Enquanto o modelo analógico dependia da expertise do agente policial, o modelo de inteligência policial promove a construção do conhecimento coletivo, pelo qual a aposentadoria, as férias ou questões pessoais não reduzem a possibilidade de correlações entre o imenso volume de dados disponíveis.

Neste sentido, a atividade de investigação policial jamais será capaz de substituir o policial humano, especialmente no tocante à qualidade das inferências relacionadas aos métodos investigativos (indutivo e abdutivo). O que a máquina, por exemplo, consegue realizar é o tratamento de dados por meio do método dedutivo que, por definição, é insuficiente ao estabelecimento da hipótese criminal, isto é, a Teoria do Caso da Etapa de Investigação Criminal. O ganho é o de poder ofertar aos investigadores conjuntos de dados estruturados que ampliam as condições de eficácia e de eficiência, justamente porque os humanos são limitados quanto à capacidade de memória e de correlação entre os dados.

Dizem os autores:

A Inteligência tem, sim, um papel fundamental na investigação policial-criminal, não só por auxiliá-la na coleta de dados e informações, mas na atuação proativa, na atuação preditiva, com produção de conhecimentos válidos e úteis com base em evidências coletadas nas ações de inteligência. Também, as ferramentas operacionais, incrementadas pela reserva judicial, podem ser destacadas como fundamentais no processo de produção de provas e evidências, de autoria e materialidade, a partir de interlocução com o ELO [Elemento de Operações], treinado e capacitado, por exemplo, a realizar uma infiltração tradicional ou virtual.

Ao mesmo tempo que confere vantagem competitiva, surgem desafios de conformidade e riscos associados ao acesso e ao tratamento de dados sensíveis e privados aptos a conferir imensa vantagem competitiva que, na ausência de governa de dados, normas claras, protocolos de atuação, submetem os agentes de inteligência ao risco de responsabilização administrativa, civil e penal.

Em geral, os rastros digitais estarão presentes em todas as atividades relacionadas às operações em banco de dados, conhecidas como Crud, acrônimo em inglês das 4 (quatro) operações possíveis: “Criar, Ler, Atualizar e Deletar” (Create, Read, Update, Delete). Daí que se a atividade de inteligência não pode se confundir com a de fishing expedition (pescaria probatória), as ações devem se orientar por protocolos que garantam tanto os agentes públicos, como os titulares dos dados, em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Embora a própria LGPD tenha ressalvado a atividade de investigação e de inteligência (artigo 3º), sem a edição da LGPD-Penal, a novidade introduzida pela Emenda Constitucional 115, declarando a proteção de dados pessoais como direito fundamental, na linha do que o Supremo Tribunal Federal já vinha reconhecendo (ADI 6.388; 6.389; 6.390; 6.393), alterou o cenário do tratamento de dados, inclusive das atividades de inteligência.

Em consequência, os agentes de inteligência policial “andam no fio da navalha”, sempre com risco de se “cortar”, especialmente quando há tentativa de transformação em atividade de governo e não de Estado. A inteligência policial é atividade de Estado e, como tal, realiza interesse público, sem que possa se confundir com as necessidades e/ou interesses dos governantes eventuais. O risco de instrumentalização é recorrente, motivo pelo qual a previsão e eficácia de mecanismos de compliance é uma garantia de todos.

Os coordenadores destacam na introdução:

Foi pensando nisso que organizamos este livro em quatro pontos, partindo (a) de uma revisão conceitual, necessária [o óbvio precisa ser dito e lembrado!], passando (b) pela utilidade da Inteligência no enfrentamento ao crime [organizado ou não], baseado na tecnologia ou não, com uso de técnicas específicas de análise de dados, como nos Lab-LDs, Ciber-Labs ou na interceptação telemática, analisando (c) a importância dela nos processos de contrainteligência, como mecanismos de proteção e mitigação de riscos à organização policial e seus integrantes, e finalizando (d) com o tema da gestão policial baseada em governança da Inteligência e fomento político-administrativo ao segmento.”

Do ponto de vista operacional, o livro apresenta um conjunto de reflexões de profissionais que atuam na prática e apontam avanços, retrocessos e, principalmente, questões que merecem reflexão coletiva para o fim de extrair o melhor desempenho, englobando, redes nacionais (Renato Márcio da Rocha Leite), perspectivas da atividade de inteligência (da amiga que admiro Sabrina Leles de Miranda), inteligência judiciária (Romano Costa e Licurgo Nunes Neto), Criminalidade Organizada (Éverson Aparecido Contelli e Katia Machado Fernandez), prevenção e investigação do crime organizado (Alcino Ferreira de Sousa Júnior), crimes biométricos (Caetano Paulo Filho), Laboratório de Lavagem de Dinheiro (Eduardo Augusto de Paula Botelho), Inteligência Virtual (Mayra Fernanda Moinho Evangelista), Análise Telemática (Adorisio Leal Andrade, Jeremias dos Santos e José Darcy Santos Arruda), Ciber-labs (do parceiro de pesquisas Alesandro Gonçalves Barreto e Quesia Pereira Cabral), redes sem fio (Ricardo Magno Teixeira Fonseca e Roberto Buery Silva), necessidade de protocolos de atuação (Caroline Batista Martins, Cristiano de Castro Reschke e Emerson Wendt), Governança em Inteligência (Cristiano de Castro Reschke e Emerson Wendt), integração de forças policiais (João Alves de Albuquerque) e inteligência interagências (Fernando Vila Pouca de Sousa).

Aprendi muito com a leitura do vasto conteúdo, especialmente porque os textos são firmados por profissionais com experiência pessoal em atividades de investigação analógica e de inteligência, providos do esforço sincero de melhoria contínua da atividade, ainda que lutando contra o desconhecimento e o preconceito. Embora a investigação criminal orientada ao esclarecimento de caso penal concreto ainda seja a porta de entrada e de saída da atividade policial, por meio de procedimentos criminais de investigação, a função da inteligência policial ampliou-se significativamente.

Diante dos atributos de continuidade, de consolidação do conhecimento do domínio de segurança pública, próprios da atividade de inteligência, a função de suporte às investigações concretas proporcionada pela inteligência policial será o grande, controverso e importante tema desafiador dos próximos anos. Com Luis Guilherme Vieira refleti, em texto específico [1], sobre a instrumentalização da atividade de inteligência às sombras e da importância de mecanismos de garantia, em especial, da cadeia de custódia, justamente para distinguir a atuação em conformidade da instrumentalização das práticas de inteligência. O fundamental é repensar e atualizar as coordenadas normativas e de governança da inteligência policial, orientada pelo respeito aos Direitos Fundamentais e pela realização do interesse público.

A Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública, em geral, foi estabelecida em contexto distinto, sem que tenha sido ajustada devidamente ao impacto da tecnologia. Por um lado, fornece coordenadas de atuação e, por outro, deixa espaços ambíguos e vagos quanto às possibilidades, limites e riscos da atividade policial relacionada às atividades de inteligência. Perdeu-se uma grande oportunidade há pouco tempo porque Emerson Wendt poderia agir com inteligência, ao contrário dos movimentos orientados por ideologia, dado o lugar e a função de Estado (e não de Governo) relacionada à Inteligência Policial.

De qualquer forma, o impacto da tecnologia na gestão do conhecimento associado às práticas analógicas ainda causa muita perplexidade quanto ao desconhecimento e inabilidade dos agentes procedimentais relacionados à identificação, ao reconhecimento, à indexação, ao processamento e à análise dos dados disponíveis. A inteligência policial precisa entrar na agenda política e legislativa, porque se perdem chances relevantes de prevenção e repressão às atividades criminalizadas. Basta ver a funcionalidade dos grafos na identificação das redes e organizações criminosas.

Por isso, recomendo o Tratado de Inteligência aplicada à investigação criminal. Foi um momento importante porque conheci novas perspectivas, refletindo sobre o lugar e a função da atividade de investigação, além de reiterar a admiração pelo trabalho dos delegados Alesandro Gonçalves Barreto, Emerson Wendt e Sabrina Leles de Miranda.

O desafio de conformidade se renova, dadas a investidas contra a proteção de dados no Brasil e no mundo. No entanto, a atividade policial se faz necessária e quanto mais qualificados forem os profissionais da área de segurança pública, melhores os resultados coletivos. Daí a relevância e coragem de reconhecer os profissionais por suas qualificações e não por critérios políticos, como sempre foi a luta quanto à autonomia e o respeito à atividade policial. Eis o desafio.

________________________________________

[1] VIEIRA, Luis Guilherme; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Veto a uso de agências de inteligências e nulidade das investigações. https://www.conjur.com.br/2022-dez-07/vieirae-rosa-veto-uso-agencias-inteligencia-parte

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!