Opinião

Sandbox regulatório pode ser aplicado para experimentar novas modalidades de planos de saúde?

Autores

  • é advogada sanitarista doutora em saúde coletiva pela Unicamp professora colaboradora da Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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  • é médico docente da Faculdade de Saúde Pública da USP e foi presidente da Anvisa.

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1 de março de 2025, 6h05

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) abriu Consulta Pública ANS n° 151, de 2025, para a participação da sociedade na apresentação de críticas e sugestões sobre as regras para a constituição e funcionamento de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório) denominado Plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames.

Reprodução

Importante destacar que a modalidade regulatória experimental (sandbox), prevista na Lei Complementar n° 182/2021, que institui o Marco Legal das Startups e do empreendedorismo inovador, define o sandbox regulatório [1] como o “conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado”. A minuta da Resolução Normativa da ANS, sob consulta pública, visa dispor sobre tais regras em relação aos planos de consulta eletiva e exames.

A questão central é saber se essa nova modalidade regulatória experimental, que permite sejam testados, de modo ágil, modelos de negócios inovadores em ambiente de flexibilidade temporária das regras que regem a atividade, o serviço ou o produto em teste – seria cabível na saúde suplementar, como pretendido pela ANS.

Certamente que o país precisa experienciar novas regras nesse novo horizonte tecnológico, de inovações, criatividade, competitividade para manter-se atualizado e não perder oportunidades importantes. Contudo, faz-se necessário discernir entre os negócios que podem ou não ser objeto dessa flexibilidade a garantir maior agilidade na nova experiência antes de ir para o mercado aberto. Aspecto que exige cautela, especialmente quando se trata de serviços, ações, produtos, protegidos pela Constituição no campo dos direitos fundamentais, como é o caso da saúde.

Daí a necessidade de se compreender se nas ações e serviços de saúde tal flexibilidade seria cabível. Lembramos que a Constituição tratou a saúde como serviço de relevância pública, sem se importar com a sua titularidade, se pública ou privada.

Mesmo sendo as ações e serviços de saúde livres à iniciativa privada, elas se situam no campo dos direitos fundamentais e estão sob resguardo estatal, cabendo ao poder público a sua regulamentação, fiscalização e controle, sendo dever do Estado atuar em suas diversas dimensões como a regulatória, a protetiva, a prestacional.

Limite da flexibilização das normas que protegem a saúde

É o artigo 197 que exige esse amplo controle sobre as ações e serviços de saúde com o fim de proteger a população de riscos de agravos evitáveis. O conceito de relevância pública das ações e serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados, confere à atividade uma natureza pública, que sujeita a liberdade da iniciativa privada à proteção governamental. Daí não poder se sobrepor ao direito à saúde o interesse do mercado, sem que isso possa significar qualquer forma de  cerceamento à iniciativa privada, que ao atuar tais serviços deve entender que a área é de relevância e natureza pública.

Tanto isso é fato que até mesmo o rol de procedimentos e eventos da ANS, conforme Lei n° 9.656/1988, que regula os planos de saúde, não pode ser fechado, conforme determinou a Lei n° 14.454, de 2022, sendo ele, o rol, uma referência básica de cobertura, sem ser taxativo. Ora segmentar o plano-referência em consultas médicas eletivas e exames é desrespeitar a norma legal a que ela está subordinada, e ainda que tenha competência para dispor sobre esse tema, deve observar as referências legais, sob pena de se retroceder o direito.

A saúde como direito fundamental, vinculado ao direito à vida e à dignidade das pessoas, em que o princípio da precaução se faz presente, assim como a relevância pública, exige indagar se a flexibilização, em caráter experimental, das normas que protegem a saúde das pessoas, em nome da maior liberdade do exploração empresarial para testar modelos de negócios, é permitida.

Spacca

Não há como compatibilizar o princípio da precaução presente na saúde, o rol não-taxativo, o plano-referência da Lei n° 9.656, de 1998, de um lado, com a possibilidade de testar modelo de negócio que tem por finalidade implementar plano de consulta médica eletiva e exames, de outro. Tal experimentalismo mercadológico na área da saúde é incompatível com o conceito de atenção integral e direito fundamental. Se a saúde regulada pela ANS é suplementar à pública, como poderá não observar seus pilares constitucionais, uma vez que o direito à saúde não distingue se a titularidade é pública ou privada. É o direito à saúde que goza de proteção constitucional, não importando o seu domínio.

Como conciliar a norma constitucional com a decisão da ANS?

O artigo 199 da Constituição, ao dizer ser livre à iniciativa privada a saúde, não abdicou do fundamental papel do Estado de regulamentar, fiscalizar e controlar os serviços privados, podendo-se afirmar, na esteira do STF, ministros Gilmar Mendes e Eros Roberto Grau [2], que essa liberdade condiciona-se ao disposto no artigo 197 que dá ao interprete as condições jurídicas de afirmar que essa liberdade é uma “permissão” constitucional para atuar nesse campo, sob vigilância do Estado.

Desse modo, a ANS, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, que tem por finalidade cumprir o que determina o artigo 197 da CF quanto aos planos e seguro saúde, atua no controle de serviços de natureza pública. Santos & Carvalho [3] entendem que a criação da ANS só reforça esse entendimento de que o serviço de saúde de titularidade privada, nos termos do artigo 199, tem natureza pública, e deve por esse motivo, estar inteiramente sob regulamentação, fiscalização e controle estatal, afirmando os autores que a norma do artigo 199 deve ser interpretada em consonância com o artigo 197.

Tanto é fato que o STJ [4] reafirmou por diversas vezes, em julgamentos de ações judiciais contra a ANS, que o rol de procedimentos e eventos não era taxativo, o que ficou apaziguado com a edição da Lei n° 14.454, de 2022, conforme mencionado acima. Sendo pois o rol exemplificativo e não taxativo, como poderia a ANS fragmentar o conceito de saúde integral ao permitir plano de consulta médica eletiva e exames com a adoção, ainda, do sandbox regulatório? Como conciliar a norma constitucional com tal decisão da ANS?

Caberia ainda a pergunta quanto à inovação pretendida pela ANS, uma vez que consultas médicas eletivas e exames já são objeto de diversos serviços privados, como clínicas populares, Dr. Consulta, criticados pela população, conselhos de saúde, pela sua insuficiente cobertura assistencial, que acaba por levar a pessoa aos serviços do SUS e pela falta absoluta de regulamentação, fiscalização e controle quando elas são obrigatórias na saúde.

Além do mais, tal proposta, em seu conteúdo, deixa claro que seus proponentes não estão levando em conta, ao concordar com tal experiência, uma das forças que impulsionam a regulamentação da prestação de serviços de saúde, que é a assimetria de informação. Parece ser uma solução, mas na verdade ela escamoteia um outro e mais grave problema, ao ignorar que o cidadão e a cidadã, ao comprarem o serviço, acreditam estarem comprando uma solução, mas na verdade, estão comprando um problema. E essa proposta de solução incorre ainda em um segundo agravo. É o agravo da medicalização, no conceito proposto por Foucault: confundir consumo de ações e serviços de saúde com saúde. A proposta em resumo é um estimulo a consumir serviços e considerá-los como saúde, quando é só consumo!

Também é necessário dizer que, pela Lei Complementar n° 182, de 2021, entende-se não poder ser testado em ambiente regulatório excepcional aquilo que não pode ser considerado uma inovação. O mesmo pode se dizer de serviços de relevância e natureza pública, nos quais o princípio da precaução é uma imposição, incompatível pois com ambiente regulatório experimental.

A ANS é um órgão público regulador da saúde suplementar, o que lhe obriga a atuar em consonância aos pilares do direito à saúde, por se tratar de uma suplementação dos serviços públicos, ainda que ofertados pela iniciativa privada. Por isso há a Lei n° 9.656/2021 a regular os planos de saúde à qual a ANS deve observar, pois seu poder de regulamentar a saúde suplementar privada advém da lei, não podendo ela inovar nesse campo, mas sim atuar nos limites da lei a favor da população, protegendo-a.

 


[1] Sandbox é uma expressão da língua inglesa que significa caixa de areia, parquinho de areia, e foi usada no sentido de se experimentar em ambiente controlado, por prazo determinado,  modelos de negócio inovadores, de modo mais flexível. O art. 11 da LC 182, de 2021, dispõe que “Os órgãos e as entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial poderão, individualmente ou em colaboração, no âmbito de programas de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), afastar a incidência de normas sob sua competência em relação à entidade regulada ou aos grupos de entidades reguladas”.

[2] ADI 1266-5/BA; ADI 1007-7/PE, de 2005.

[3] Santos & Carvalho. Comentários à Lei Orgânica da Saúde, 5ª edição, 2018. São Paulo: Saberes Editora.

[4] Acórdão 1430154, 07440203120218070001, 6ª Turma Cível, 2022.

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