Público & Pragmático

Inovação institucional como novo motor do complexo econômico industrial da saúde

Autor

  • Guillermo Glassman

    é dvogado doutor em Direito Público (PUC-SP) MBA (Insper) mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie) especialista em Direito Administrativo (Cogeae) certificado em Contratos de Infraestrutura (FGV) autor de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos (Thoth 2021).

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14 de abril de 2024, 8h00

O governo federal adotou o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (Ceis) como uma de suas bandeiras principais[1].

As iniciativas do governo Lula 3 para o fortalecimento do Ceis estão diretamente ligadas à inovação, seja mediante a absorção de tecnologias para o parque produtivo nacional ou desenvolvimento autóctone de novas soluções incrementais ou disruptivas.

As intenções do governo federal têm sido aos poucos materializadas, como por exemplo no programa Mais Inovação Brasil Saúde, promovido pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para conceder recursos não-reembolsáveis para pesquisa em projetos que envolvam risco tecnológico “para o aproveitamento das potencialidades nacionais e para a autonomia tecnológica e produtiva do Ceis” [2].

A iniciativa é louvável, apesar de os recursos disponibilizados estarem muito aquém do necessário [3]. Tão preocupante quanto a escassez de recursos, entretanto, é imaginar que parte desse investimento pode ser perdido em meandros regulatórios e administrativos, dadas as dificuldades que a administração tem de lidar com produtos e soluções inovadores, sem claros precedentes.

Esse é o ponto que, na indústria da saúde, determina se uma solução inovadora sai da “bancada” de pesquisa e chega a impactar a vida das pessoas.

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Nesse cenário, o Decreto nº 11.715/2023 definiu como um dos objetivos da estratégia nacional para o desenvolvimento do Ceis a criação de um “ambiente institucional que favoreça o investimento, a inovação, a capacitação e a geração de empregos diretos e indiretos no âmbito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde” (artigo 3°, IV).

Falar de “ambiente institucional” num contexto de incentivo ao desenvolvimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde é falar, basicamente, de Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e de Ministério da Saúde.

Ambos (Anvisa e Ministério) têm apostado, ao longo dos últimos anos, no experimentalismo institucional como principal instrumento para a superação dos dilemas da saúde pública brasileira. Entretanto, essas iniciativas tem sido pontuais e casuística, sem a formação de um programa de inovação institucional estruturado. Aqui reside uma importante oportunidade de avanço.

Já há mais de 30 anos é corriqueira a utilização do acrônimo Vuca (Volatility, Uncertainty, Complexity, Ambiguity) em ambientes de negócios para denotar uma crescente incapacidade de compreender o mundo, lidar com as coisas que acontecem ao nosso redor e construir soluções para problemas cada vez mais dinâmicos [4] — o que parece ter sido agravado desde a Covid-19 [5].

Os desafios de transitar num meio em constante e abrupta mudança, naturalmente, não se apresentam apenas às empresas no mercado, mas também aos governos, tanto em sua tarefa de prestar serviços à população, como na de regular os agentes privados.

Nesse contexto, o campo da saúde tem apresentado, nos últimos anos, uma dinâmica especialmente disruptiva. Exemplo recente foi a dimensão alcançada pela epidemia de dengue no Brasil, provavelmente influenciada pela crise climática intensificada pelo fenômeno El Niño [6]. As estruturas institucionais da saúde pública e vigilância sanitária brasileiras têm, em geral, demonstrado notável resiliência e razoável capacidade de resposta a essas adversidades.

Parcerias tecnológicas

O Ministério da Saúde, por exemplo, tem enfrentado esses obstáculos por intermédio de parcerias tecnológicas do SUS, como as tenho denominado [7]. Tratam-se de arranjos negociais complexos, envolvendo laboratórios farmacêuticos oficiais e a indústria privada, que utilizam o poder de compra do Estado (correspondente à necessidade de abastecimento do SUS) para viabilizar a incorporação ou desenvolvimento de tecnologias no âmbito do Complexo Econômico Industrial da Saúde [8]. São bons exemplos disso a fabricação da vacina Oxford/AstraZeneca contra a Covid-19 pela Fiocruz [9] e a vacina da dengue do Butantan, que se encontra em vias de aprovação sanitária [10].

A Anvisa, por seu turno, tem também apresentado iniciativas inovadoras, marcadas por um caráter experimental, que merecem reconhecimento. Um caso representativo é o do projeto piloto de implementação do procedimento de avaliação otimizada (para fins de registro sanitário), aprovado pela recente Resolução RDC nº 823, de 19 de outubro de 2023.

Identificando que o tempo médio atual de análises de pedido de registro de novos produtos (inclusive medicamentos) tem superado os prazos legais [11], postergando o acesso a eles pela população, a Anvisa, por meio da RDC nº 823/2023, definiu procedimento otimizado (i. e., abreviado) para análise dos pedidos de registro, desde que preenchidos, dentre outros requisitos, a composição por  ingredientes de baixo risco e que, para esses ingredientes, a Anvisa conte com um alto nível de conhecimento e experiência adquiridos.

Esse caso, assim como diversas outras soluções adotadas pela Anvisa e do Ministério da Saúde nos últimos anos, aproxima-se da prática conhecida como “sandbox regulatório”, que consiste, justamente, em testar projetos inovadores em ambiente regulatório real, seja no âmbito interno ou externo ao órgão. A própria utilização da expressão “projeto piloto” pela Resolução RDC nº 823/2023 atesta a perspectiva experimental que tem ganhado espaço como instrumento para solução de desafios da saúde brasileira.

A mesmíssima expressão (projeto piloto) consta, também, da Portaria nº 1.297/2019 do Ministério da Saúde, que deu base à celebração do primeiro acordo de compartilhamento de riscos no Brasil, tendo por objeto o medicamento Spinraza (Nusinersena).

Nesse contexto, um recente projeto da Anvisa e do Ministério da Saúde, ainda em curso no momento da publicação deste artigo (prazo limite para submissão de propostas em 7 de maio de 2024), merece destaque. Trata-se do edital de chamamento conjunto nº 1, de 05 de abril de 2024 [12]. Mais uma vez, surge aqui a expressão “projeto piloto”, que é o rótulo que se convencionou utilizar para o experimentalismo no âmbito da agência e do ministério.

O projeto é fascinante e completamente aderente ao objetivo de criar um “ambiente institucional” que favoreça o investimento e a inovação no âmbito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Trata-se, basicamente, do acolhimento, pela Anvisa, de startups desenvolvedoras de medicamentos para que a agência acompanhe o desenvolvimento do produto prestando assessoria técnica para que as etapas da investigação sejam realizadas em aderência ao regramento sanitário e possam chegar ao mercado mais rapidamente, atendendo a necessidades médicas da população.

Entretanto, nos termos do edital, apenas três startups serão selecionadas no país, sendo, especificamente, uma desenvolvedora de medicamento fitoterápico, uma de medicamento sintético novo e uma de produto biológico.

O caráter experimental do projeto, do ponto de vista interno da agência, está em que serão colhidos subsídios que possam aprimorar a estratégia de informação, orientação e aconselhamento científico da Anvisa em contextos semelhantes e avaliadas novas abordagens regulatórias para fomento à inovação.

Do ponto de vista externo, a inovação está em que a Anvisa terá, perante as startups, um papel ativo no diálogo regulatório com elas — e não apenas uma postura passiva, limitadora e sancionadora, que é o que usualmente se verifica.

Falha na experimentação

Em todo caso, causa estranheza que um projeto como esse não seja permanente, nem mais abrangente. Isso expõe uma falha grave da experimentação no âmbito da Anvisa e do Ministério da Saúde: não há um espaço institucionalizado e procedimentalizado para que essas inovações no ambiente institucional a que se refere o artigo 3°, IV, do Decreto nº 11.715/2023 sejam apresentadas, tramitem de forma transparente, sejam analisadas com a abertura cognitiva que o novo sempre exige e, por fim, operacionalizadas por meio de medidas normativas e práticas que se mostrem necessárias.

A ausência desse espaço institucional para inovação permanente e procedimentalizada gera dois problemas principais. O primeiro deles é que não havendo um caminho pavimentado, surge o incentivo para a criação de atalhos — o que pode implicar em favorecimentos pessoais e, no limite, corrupção. O segundo é que, dada a ausência de transparência, os agentes privados receiam lançar produtos ou soluções inovadores do ponto de vista regulatório — o ambiente torna-se tóxico para a inovação institucional.

Um passo inicial para a superação desses obstáculos foi a expedição da recente Portaria nº 1.100, de 28 de setembro de 2023, que institui a política de inovação da Anvisa. O problema está em que a portaria define apenas objetivos gerais e naquilo que diz respeito a medidas concretas apenas indica que as diversas “unidades responsáveis” da agência devem “promover ações e iniciativas que favoreçam a implementação” da política de inovação.

É preciso que a Anvisa avance rapidamente neste ponto e, preferencialmente, crie um espaço institucional próprio para a inovação — e não, como consta na Portaria nº 1.100, fragmente essa competência e responsabilidade dentre diversas unidades.

A inovação no ambiente institucional-regulatório da saúde carece, portanto, de órgãos e instrumentos especializados — especialmente no âmbito da Anvisa e do Ministério da Saúde — para que soluções inovadoras desenvolvidas ou absorvidas pelo Ceis não sejam natimortas. É preciso, da parte daqueles “vivem a saúde pública” a partir do campo jurídico, refletir, contribuir e cobrar para esses avanços aconteçam. Este singelo artigo serve para isso, como uma convocação inicial à reflexão por parte daqueles que têm ou que pretendem ter voz ativa em direito e saúde no Brasil.

 


[1] Governo retoma complexo econômico industrial da Saúde como política de estado. Ascom CNS, 26 de set. de 2023. Disponível em: < https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/3160-governo-retoma-complexo-economico-industrial-da-saude-como-politica-de-estado>. Acesso em 11/04/2024.

[2] Edital disponível em: < http://www.finep.gov.br/images/chamadas-publicas/2024/22_01_2024_SAUDEICT_Edital.pdf>.

[3] Demanda por recursos supera em dez vezes o valor do edital Mais Inovação Saúde – ICTs, com R$ 2,5 bi em solicitações de financiamento. FINEP, 10 de abr. de 2024. Disponível em: < http://www.finep.gov.br/noticias/todas-noticias/6776-demanda-por-recursos-supera-em-dez-vezes-o-valor-do-edital-mais-inovacao-saude-icts-com-r-2-5-bi-em-solicitacoes-de-financiamento>. Acesso em 11/04/2024.

[4] Kraaijenbrink, Jeroen. What Does VUCA Really Mean? FORBES, 19 de dez. de 2018. Disponível em: < https://www.forbes.com/sites/jeroenkraaijenbrink/2018/12/19/what-does-vuca-really-mean/?sh=49a0b37c17d6>. Acesso em 11/04/2024.

[5] FOSTER, Deanna. Leading Through Uncertainty. Harvard Business Publishing, 12 de mar. de 2020. Disponível em: < https://www.harvardbusiness.org/leading-through-uncertainty/>. Acesso em 11/04/2024.

[6] Entenda por que tem mais dengue com o El Niño e por que a situação pode piorar ainda mais. G1, 24 de jan. de 2024. Disponível em: < https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2024/01/24/entenda-por-que-tem-mais-dengue-com-o-el-nino-e-por-que-a-situacao-pode-piorar.ghtml>. Acesso em 11/04/2024.

[7] GLASSMAN, Guillermo. Estratégia Nacional da Saúde e o futuro das parcerias tecnológicas do SUS. CONJUR, Público & Pragmático, 15 de out. 2024. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2023-out-15/publico-pragmatico-estrategia-saude-futuro-parcerias-tecnologicas-sus/>. Acesso em 1/04/2024.

[8] Ver: GLASSMAN, Guillermo. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos. Londrina: Thoth, 2021.

[9] AZEVEDO, Cristina. Fiocruz assina memorando para ampliar parceria com Astrazeneca. Agência Fiocruz de Notícias, 06 de jul. de 2023. Disponível em: < https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-assina-memorando-para-ampliar-parceria-com-astrazeneca#:~:text=Fiocruz%20assina%20memorando%20para%20ampliar%20parceria%20com%20Astrazeneca,-182335&text=Compartilhar%3A,no%20enfrentamento%20a%20outras%20doen%C3%A7as.>. Acesso em 11/04/2024.

[10] MAZZONETTO, Caroline. Vacina da dengue do Butantan tem eficácia “muito satisfatória”, mas ainda está em desenvolvimento e precisa de aprovação da Anvisa. Comunicação Butantan, 06 de fev. de 2024.

[11] Nos termos do VOTO Nº 292/2022/SEI/DIRE2/ANVISA, Processo nº 25351.935242/2022-81. Disponível em: < https://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/6531732/Voto+292+-+Dire2+-+CP+1136_2022.pdf/8244b179-79c2-4e0d-af2f-8ec7dac1a954>. Acesso em 11/04/2024.

[12] Disponível em: < https://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/6741385/EDITAL+DE+CHAMAMENTO+CONJUNTO+N%C2%BA+1%2C+DE+5+DE+ABRIL+DE+2024.pdf/562f2b32-2093-42dd-8433-434116ecdbb8>.

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