Território Aduaneiro

Selic na prorrogação do regime de admissão temporária

Autor

  • é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax) doutor mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional" e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

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6 de maio de 2025, 12h22

A reforma tributária recolocou em foco a admissão temporária para utilização econômica, limitando a Selic a casos de mora efetiva; por outro lado, o projeto da Lei Geral do Comércio Exterior em discussão no Congresso pretende replicar a mesma lógica para os demais tributos incidentes sobre a importação de bens.

Nesse contexto, volta a ser decisivo compreender por que os juros vêm sendo exigidos em prorrogações tempestivas de RAT-Utilização Econômica, e em que medida o novo desenho normativo resolve ou ainda precisa resolver a controvérsia.

Espécies de admissão temporária

No direito aduaneiro brasileiro, a admissão temporária assume cinco modalidades principais [1], cada qual prevista no Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009) e voltada a finalidades específicas. Na admissão temporária com suspensão total dos tributos, os bens ingressam no território aduaneiro para finalidade definida, tais como mostras, feiras, testes, espetáculos culturais ou esportivos, pesquisas científicas, missões diplomáticas, e a exigibilidade dos impostos federais, do AFRMM, do PIS‑Importação e da Cofins‑Importação é integralmente suspensa até que o bem seja reexportado ou o regime extinto por outra forma legal.

A subcategoria que se valia do ATA Carnet era um procedimento operacional dessa mesma suspensão total, autorizado pela Convenção de Istambul. Desde a Nota Diexp/Coana 120/2021, a Aduana brasileira deixou de processar novos carnets; apesar de sua previsão em convênio internacional e no Decreto 7.545/2011, a opção se encontra indisponível e as operações que antes recorreriam ao carnê voltam, por ora, a cumprir o rito nacional de admissão temporária com suspensão total [2].

Na admissão temporária para reparo, conserto ou restauração, o bem entra exclusivamente para manutenção e regressa ao exterior depois de concluído o serviço. Os tributos referentes ao bem principal ficam suspensos e incidem apenas sobre as peças ou serviços agregados, mantendo-se a lógica de tributação proporcional ao valor acrescido.

A admissão temporária para utilização econômica com suspensão parcial é destinada a bens empregados na prestação de serviços ou na produção de outros bens destinados à venda. Sob esta modalidade, o importador recolhe uma tributação proporcional ao tempo de permanência do bem, até o limite de cem meses, ficando suspensa a diferença. Prorrogações tempestivas e, se necessário, nova admissão temporária sem saída física do bem preservam a suspensão do saldo desde que obedecidas as condições do regulamento.

Finalmente, há a admissão temporária simplificada, utilizada para bens de menor valor ou de emprego muito específico, como equipamentos audiovisuais para cobertura jornalística, com suspensão total de tributos, mas com formalidades reduzidas.

Regime de admissão temporária para utilização econômica

Spacca

O regime de admissão temporária para utilização econômica, hoje previsto nos artigos 373 a 378 do Regulamento, permanece peça-chave da política aduaneira: viabiliza a entrada, por prazo certo, de bens de capital sem o ônus integral dos tributos incidentes sobre a importação.

Assim, são exemplos recorrentes de equipamentos admitidos sob esse regime bens de alto valor, tais como como plataformas de perfuração, turbinas geradoras, guindastes portuários, escavadeiras de grande porte, robôs automotivos, colheitadeiras, locomotivas, aeronaves, vagões, unidades móveis de ressonância magnética ou tomografia, torres de iluminação, geradores modulares para grandes obras, entre outros bens necessários para a economia nacional.

Lógica tradicional do pagamento proporcional

Desde 1996, o artigo 79 da Lei 9.430 autorizou que tributos sobre bens admitidos para utilização econômica fossem recolhidos “na razão de um centésimo por mês” enquanto esses bens permanecessem no País. Em 2009, o Regulamento transportou a norma para o plano infralegal (artigo 373, § 2º) e, em 2014, o Decreto 8.187 fixou o prazo global do regime em cem meses.

A mecânica é simples: na declaração de importação o beneficiário informa o tempo inicial de uso — por exemplo, 24 meses. O sistema calcula 24 % dos tributos federais (II, IPI, PIS‑Importação e Cofins‑Importação) e suspende a parcela restante, formalizada em termo de responsabilidade. Se, transcorridos 20 meses, o contrato precisar ser estendido por mais um ano, o importador protocola pedido de prorrogação antes do vencimento, retifica a DI, complementa mais 12 % (passando de 24 % para 36 %) e mantém suspensos os 64% remanescentes. Cada retificação gera novo Darf e atualiza o controle de prazo; não há vencimento antecipado da diferença, pois o crédito continua suspenso enquanto o regime estiver vigente.

Para garantir esse saldo, a Receita pode exigir caução (fiança bancária, seguro‑garantia ou depósito) equivalente ao valor suspenso, medida que resguarda a Fazenda caso o bem seja descaminhado ou não reexportado ao fim dos cem meses. O termo de responsabilidade e a garantia substituem o lançamento imediato do tributo; por isso o regime foi concebido, na prática, como verdadeira moratória legal e, neste sentido, nenhum dispositivo legal (nem a Lei nº 9.430, nem o regulamento) mencionava juros enquanto o prazo de vigência fosse cumprido.

Assim, a diferença entre o total dos tributos que incidiriam no regime comum de importação e os valores pagos na proporção do período de permanência no país ficam com exigibilidade suspensa (artigo 373, caput e § 3º do RA/2009; IN RFB nº 1.600/2015, artigo 56, caput e § 3º):

 

TRIBUTO FUNDAMENTO LEGAL OBSERVAÇÃO
Imposto de Importação (II) DL nº 37, de 1966, art. 75 Pagamento proporcional com exigibilidade suspensa para a diferença
Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) DL nº 37, de 1966, art. 75
PIS/PASEP-Importação Lei nº 10.865, de 2004, art. 14
COFINS-Importação Lei nº 10.865, de 2004, art. 14
Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) Lei nº 10.893, de 2004, arts. 14, inc. V, alínea “c”, e 15 Suspensão total durante o RAT-Utilização Econômica; devido integralmente ao final do regime, exceto na reexportação
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) Convênio ICMS nº 58, de 1999, cláusula segunda Estados e DF podem reduzir a base de cálculo do ICMS para equivaler à cobrança proporcional dos impostos federais

Diga-se, a respeito do ICMS-Importação, não ser possível a sua cobrança, vez que as hipóteses de locação, arrendamento operacional ou comodato não configuram o fato gerador do tributo estadual (Tema RG nº 297/STF), salvo diante do excepcional exercício de opção de compra.

Pelo mesmo motivo, quanto à base de cálculo, é cabível a aplicação dos métodos substitutivos do Acordo de Valoração Aduaneira, devendo o valor declarado deve ser consistente, podendo ser revisto a qualquer tempo em caso de descumprimento ou despacho para consumo.

Introdução dos juros sobre os tributos correspondentes ao período adicional

Essa arquitetura foi alterada administrativamente por meio da edição do art. 20 da IN RFB 1.361/2013, que previa pagamento dos tributos sobre o período adicional “(…) com os acréscimos legais cabíveis”, o que franqueava fundamento para a imposição de juros e multa de mora, motivo pelo qual o dispositivo foi alterado poucos meses depois pela IN RFB nº 1.404/2013, que optou por retirar a expressão por completo.

Por fim, o artigo 64 da IN RFB nº 1.600/2015, atualmente vigente, passou a determinar que “os tributos correspondentes ao período adicional (…) serão calculados (…) acrescidos de juros de mora”, exigindo, sem amparo em lei, a aplicação da taxa Selic desde a data do desembaraço original até o pagamento da prorrogação.

Sob a lógica da IN, cada prorrogação equivaleria a um atraso retroativo, ainda que solicitada dentro do prazo: o complemento de 12% do exemplo anterior seria acrescido de Selic sobre todo o período, como se os 12% devidos pelo 25º ao 36º mês houvessem vencido no dia do desembaraço. Essa interpretação converteu a suspensão parcial em base de cálculo permanente de juros, onerando contratos longos — sondas de perfuração, locomotivas em leasing, turbinas de backup — com encargos que não estavam previstos na lei.

No entanto, deixa-se de cobrar a multa de mora, pois se entende não haver descumprimento do prazo para pagamento dos tributos (RA/2009, artigos 73, inciso IV, 107 e 748; IN RFB nº 1.600, de 2015, artigo 64; SCI Cosit n° 26, de 2016), sendo necessário se decidir se há ou não há mora.

Posicionamento jurisprudencial

A controvérsia chegou ao Judiciário. Em 2021, a 1ª Turma do STJ decidiu, no AgInt no REsp 1.930.684/RJ, que “a concessão do regime especial resulta na suspensão da exigibilidade e, durante sua vigência – inclusive o período de prorrogação – não pode incidir juros”. O tribunal observou que mora pressupõe vencimento; como o vencimento do saldo é diferido para o encerramento do regime, não há atraso enquanto as prorrogações forem requeridas antes do prazo. Tribunais Regionais Federais replicaram a tese, afastando a Selic em casos concretos.

Pagamento proporcional do IBS e da CBS

A reforma tributária manteve a lógica da proporcionalidade, mas aperfeiçoou‑a. A Lei Complementar nº 214/2025 reservou uma seção específica, entre os regimes aduaneiros especiais, para o tratamento da permanência temporária de bens, prevendo a suspensão integral de IBS e CBS para a maioria das admissões temporárias, e parcial na hipótese de utilização econômica, devendo o importador, neste caso, realizar o recolhimento proporcional ao tempo de permanência do bem no país.

A lei complementar converteu o índice mensal de 1 % em cálculo diário de 0,033 % para IBS e CBS, ou seja, por cada dia compreendido no prazo de concessão do regime, refletindo a prática internacional de ratear o tributo pelo número exato de dias (não pelo arredondamento para cima do mês). Quanto à cobrança de juros, condicionou a cobrança de Selic ao “pagamento após a data em que seriam devidos”, blindando prorrogações tempestivas de juros moratórios, que passam a incidir unicamente se o recolhimento ocorrer depois da data prevista no cronograma do ato concessório.

Assim, a Lei Complementar nº 214/2025 passou a determinar, para os regimes de permanência temporária, o seguinte regime tributário:

a) 88: Suspensão integral de IBS/CBS enquanto o bem estiver em qualquer modalidade de permanência temporária (admissão ou exportação temporária).

b) 89: Na utilização econômica, a suspensão torna‑se parcial. O importador recolherá 0,033 % por dia (33 milésimos) sobre o montante de IBS e CBS, até o limite de 3.030 dias. O legislador transformou o antigo cálculo mensal em fórmula diária, eliminando distorções quando o período não ultrapassa trinta dias.

c) 2º: Selic somente se o pagamento ocorrer após a data prevista (artigo 67, II, da própria LC), ou seja, quando houver atraso real. A regra explicita que não há juros durante prorrogações solicitadas dentro da vigência.

d) Exceções: até 2040, atividades de petróleo, gás e GNL permanecem com suspensão total; a ZFM mantém isenção plena enquanto vigorar o artigo 92‑A do ADCT; contratos de arrendamento mercantil de aeronaves têm isenção na importação, mas recolhem IBS/CBS sobre as contraprestaçõ

Lei Geral de Comércio Exterior

O Projeto de Lei n° 4.423, de 2024, conhecida como “Lei Geral de Comércio Exterior”, ainda em tramitação, na busca de alinhar o Regulamento Aduaneiro às diretrizes constitucionais e a compromissos internacionais, dedicou o seu Livro III para tratar dos regimes aduaneiros.

O projeto passou a conceituar a categoria de um regime aduaneiro comum e agrupou os regimes especiais, no § 1º do seu artigo 94, em quatro gêneros internacionalmente conhecidos (trânsito, depósito, permanência temporária e de aperfeiçoamento), definindo-os como modalidade de “tratamento aduaneiro diferenciado, por prazo determinado, com desoneração total ou parcial dos tributos federais de comércio exterior, condicionada ao cumprimento de requisitos específicos”.

No ponto que interessa à admissão temporária para utilização econômica, a Lei Geral foi harmônica com o critério diário de 0,033 % consagrado pela Lei Complementar nº 214/2025 para IBS/CBS, mas o estende aos tributos tradicionais (Imposto de Importação, IPI-Importação, PIS/Pasep‑Importação e Cofins‑Importação), fixou o mesmo limite global de 3.030 dias (cem meses) e exigiu que o beneficiário, ao protocolar cada prorrogação antes do vencimento, retifique a declaração e recolha somente a diferença correspondente aos novos dias acrescidos.

Na prática, o projeto reconhece que a declaração retificada dentro do prazo não implica vencimento do crédito suspenso e, portanto, não há mora. Ao transpor essa condição para II, IPI, PIS/Pasep‑Importação e Cofins‑Importação, o texto infirma a validade do artigo 64 da IN nº 1.600/2015.

Neste particular, ao ratar do RAT-Utilização Econômica, o projeto alinhou o Brasil às recomendações da OMA (proporcionalidade transparente e cálculo ad valorem claro), superou a contradição que gerou o litígio contra a IN 1.600/2015 e passou a proporcionar aos importadores — de turbinas a guindastes, de máquinas agrícolas a equipamentos de diagnóstico — previsibilidade uniforme, qualquer que seja o tributo envolvido na admissão temporária para utilização econômica.

O projeto manteve a exigência de garantia equivalente ao crédito suspenso quando houver risco fiscal; confirmou o prazo máximo para saldo total de permanência; e introduziu um dispositivo multiportas de autorregularização. Além disso, se o importador identificar ausência ou insuficiência de recolhimento proporcional antes de qualquer procedimento fiscal, poderá complementar o valor com Selic contada apenas a partir do dia seguinte ao vencimento original, sem multa de ofício.

O que muda e o que permanece o mesmo

 

Aspecto Situação pré‑reforma Após LC214/2025 Se a Lei Geral do Comércio Exterior for aprovada
Cálculo da quota 1 % ao mês (II, IPI, PIS‑Imp., Cofins‑Imp.) 0,033 % por dia (IBS/CBS) 0,033 % por dia para todos os tributos federais
Selic em prorrogação tempestiva Exigida pela IN 1.600/2015 Vedada (só se houver atraso) Vedada para todos os tributos
Prazo máximo 100 meses (3.000 dias) Mantido 3.030 dias (ajuste técnico)
Base legal Decreto 6.759/2009 + IN 1.600 LC 214 arts. 88‑89 Projeto da Lei Geral do Comércio Exterior arts. 105‑108

 

Conclusão

Com a Selic restrita a verdadeiros atrasos no contexto do IBS e da CBS e, futuramente, para todos os tributos incidentes sobre as operações de importação, o regime de utilização econômica recupera seu propósito original: de onerar o bem na exata medida do tempo de sua permanência.

O ajuste normativo reduz litígios, alinha o Brasil a padrões internacionais e devolve previsibilidade a setores que dependem de bens de capital importados; resta concluir a harmonização infralegal para que a solução seja plena e uniforme.

 


[1] Cf. artigo de Fernando Pieri aqui.

[2] Cf. artigo de Fernanda Kotzias aqui

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), pós-doutorando, doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com estágio doutoral pela Westfälische Wilhelms-Universität (WWU), presidente do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA) e da Comissão de Estudos em Direito Aduaneiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), membro do Conselho Deliberativo da Associação Paulista de Estudos Tributários (APET), ex-conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax).

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