Importações por conta e ordem: imunidades e benefícios devem prevalecer?
18 de fevereiro de 2025, 8h00
A participação de empresas em certames promovidos por hospitais públicos e privados que se enquadrem em situações de imunidade ou contemplados por benefícios fiscais levanta uma questão recorrente: seria possível estender essas vantagens tributárias às operações de importação na modalidade “por conta e ordem”, na hipótese em que o beneficiário final é a entidade imune ou amparada pelo benefício?
Este artigo tem por objetivo analisar o entendimento vigente das autoridades fiscais sobre a aplicação de imunidades e benefícios fiscais em importações indiretas, bem como explorar argumentos que podem embasar discussões futuras em âmbito administrativo ou judicial.
1. A posição restritiva da Receita Federal
A Receita Federal do Brasil (RFB) tem externado, em diversas Soluções de Consulta, posição contrária à aplicação de benefícios tributários em operações de importação por conta e ordem quando o adquirente final é o verdadeiro beneficiário. Cita-se, por exemplo, a Solução de Consulta Cosit/RFB nº 123/2018, segundo a qual a suspensão da exigência do PIS-Importação no âmbito do Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi) “não se aplica às importações realizadas por conta e ordem de adquirente beneficiária desse regime”.
Posteriormente, a Solução de Consulta DISIT/SRRF08 nº 8.044/2018 ratificou esse entendimento. No que diz respeito às imunidades, a Solução de Consulta Cosit/RFB nº 191/2019 afirmou que, em importações por conta e ordem, o importador deve ser tratado como contribuinte de direito, enquanto o adquirente figuraria como contribuinte de fato. Como as imunidades subjetivas (previstas no art. 150, IV, “c”, da Constituição) se aplicam ao contribuinte de direito, a pessoa imune, na condição de mera adquirente de fato, não poderia invocá-las.
A fundamentação parte do Tema nº 342 do Supremo Tribunal Federal, julgado em sede de repercussão geral no RE nº 608.872, sob relatoria do ministro Dias Toffoli. A Suprema Corte assentou que imunidades de caráter subjetivo se aplicam ao contribuinte de direito, restando irrelevante a repercussão econômica do tributo (suportada pelo contribuinte de fato). Em linha similar, a Solução de Consulta Cosit/RFB nº 223/2021 frisou que, sem previsão normativa específica, não se pode estender um benefício próprio do adquirente à empresa importadora que atua por conta e ordem.
Assim, para a fiscalização aduaneira, tanto imunidades quanto benefícios fiscais (como isenção, alíquota zero ou suspensão) incidiriam apenas em casos em que o próprio beneficiário realiza a importação, salvo exceções legais. Ou seja, a regra geral indica que a vantagem tributária não se estende a importações indiretas, a menos que haja previsão expressa.
2. Contribuinte de direito nas importações indiretas
Apesar deste entendimento das autoridades fiscais, é necessário notar que, no caso dos tributos federais incidentes sobre a importação (seja a tarifa, correspondente ao Imposto de Importação, sejam tributos niveladores, correspondentes ao IPI-Importação, PIS-Importação e Cofins-Importação) tem prevalecido a interpretação de que o importador, ao promover o despacho aduaneiro em seu nome, é o contribuinte de direito. Nesse sentido, o Decreto-Lei nº 37/1966 (arts. 31 e 32) afirma expressamente que o importador é o contribuinte do II, prevendo a responsabilidade solidária do adquirente na hipótese de importação por conta e ordem.
A mesma lógica se aplica ao IPI-Importação, uma vez que o Decreto nº 7.212/2010 (RIPI) equipara o estabelecimento importador a industrial, atribuindo-lhe a condição de contribuinte por ocasião do desembaraço aduaneiro (fato gerador). De forma correlata, as Leis nº 10.865/2004 (arts. 3º e 5º) definem que o PIS-Importação e a Cofins-Importação serão de responsabilidade daquele que promove a entrada da mercadoria estrangeira em território nacional, consolidando a figura do “importador” como sujeito passivo principal.
2.1. Exceção recente no Reidi para PIS/Cofins-Importação
Apesar do posicionamento clássico da Receita Federal do Brasil sobre este tema, cabe notar que a Instrução Normativa RFB nº 2.121/2022 passou a autorizar expressamente, em seus arts. 646 e seguintes, a extensão do Reidi à modalidade de importação por conta e ordem para máquinas, aparelhos e materiais de construção destinados a obras de infraestrutura. Determinou-se, inclusive, um dever acessório específico para o importador, que deve informar, na descrição da mercadoria, o número do ato de habilitação do adquirente ao regime.
É relevante observar que tal norma não decorreu de alteração legislativa — a Lei nº 11.488/2007 apenas dispõe que o Poder Executivo regulamentará a forma de habilitação no programa. Assim, pode-se dizer que se trata de um novo posicionamento da Administração, que contraria as Soluções de Consulta anteriores (exemplo: Cosit/RFB nº 123/2018) na hipótese específica do Reidi. Logo, em relação ao PIS/Cofins-Importação, há um precedente normativo favorável à aplicação do benefício em importações por conta e ordem, restrito ao Reidi.
3. ICMS: impactos do Tema STF nº 342 e a distinção entre contribuinte de fato e de direito
O STF, no Tema nº 342, analisou a imunidade de entidades beneficentes em relação ao ICMS, tributo cujo fato gerador recai sobre quem realiza a operação de circulação de mercadoria (contribuinte de direito), e não sobre quem suporta o custo (contribuinte de fato). Assim, a Corte considerou irrelevante a repercussão econômica. Esse paradigma foi adotado pela Receita Federal para negar benefícios ao adquirente, mesmo sendo este o verdadeiro interessado na mercadoria.

Contudo, alguns entendem que o caso do ICMS não se compararia integralmente à importação por conta e ordem, pois, nesta última, a figura do importador funciona como mero prestador de serviços, enquanto o adquirente arca com todo o ônus financeiro e se apresenta como destinatário jurídico do bem. A modalidade de importação indireta (instituída formalmente a partir da Medida Provisória nº 2.158-35/2001) permite dissociar quem efetivamente realiza o pagamento e assume o risco do negócio (adquirente) de quem apenas pratica o despacho aduaneiro em seu nome (importador).
Sob essa ótica, em diversos julgados e atos administrativos, reconhece-se que o adquirente (na importação por conta e ordem) figura como o real interessado na operação, assumindo todos os riscos e custos. A própria RFB, em manifestações específicas, já admitiu que o adquirente tem legitimidade para pleitear restituições ou compensações referentes aos tributos indevidamente recolhidos na importação. A interpretação é a de que o importador seria um mandatário, sem demonstrar a capacidade contributiva real, pois não manifesta a riqueza nem suporta o desembolso financeiro principal.
4. Reflexos na competência estadual e posicionamento do STF sobre o ICMS
No âmbito do ICMS-Importação, o STF, ao julgar o ARE nº 665.134/MG (Tema nº 520 de repercussão geral), concluiu que, em importações por conta e ordem, o imposto estadual deve ser recolhido à unidade federativa onde se localiza o adquirente (considerado o “destinatário jurídico” da operação). Embora o julgamento se refira à repartição de competência entre estados, esse fundamento reforça a tese de que, juridicamente, o adquirente é o sujeito que dá causa à operação de importação, não se limitando a uma figura de contribuinte de fato.
5. Possibilidade de discussão administrativa ou judicial
Atualmente, a posição preponderante da Receita Federal é a de que, na modalidade por conta e ordem, as imunidades e benefícios fiscais (em sentido amplo) se aplicam apenas quando o próprio beneficiário é quem importa diretamente. Na prática, portanto, não seriam estendidos ao adquirente que contrata a empresa importadora para executar os trâmites aduaneiros.
Contudo, há espaço para discussão. A recente Instrução Normativa nº 2.121/2022, ao permitir o uso do Reidi em importações por conta e ordem, sugere uma flexibilização do posicionamento oficial, no mínimo para as contribuições incidentes sobre a importação, quando se tratar de obras de infraestrutura. Soma-se a isso a possibilidade de questionar a adequação do Tema STF nº 342 às peculiaridades das operações indiretas de importação, especialmente diante dos precedentes que reconhecem o adquirente como destinatário jurídico e economicamente responsável.
A dissociação entre contribuinte de direito e de fato pode ser relativizada em casos em que o “importador” não age por conta própria, mas como simples mandatário, prestando serviços ao real adquirente, que efetivamente arca com a totalidade dos encargos. Em tais hipóteses, o argumento central é o de que a capacidade contributiva e a materialidade do fato gerador estão concentradas na figura do adquirente, sendo, portanto, essa pessoa a quem se deveria reconhecer imunidades ou benefícios fiscais.
6. Conclusão
Embora prevaleça, na esfera administrativa, a tese de que imunidades e benefícios fiscais não se estendem automaticamente ao adquirente em importações por conta e ordem, a matéria não está isenta de controvérsias. A regulamentação mais recente acerca do Reidi, bem como os precedentes do STF sobre a competência estadual no ICMS-Importação, dão margem para argumentações de que, em certos casos, a legislação não deveria vedar esses incentivos ao verdadeiro interessado econômico na operação.
Em suma, quem busca aplicar imunidades ou vantagens tributárias a operações de importação indireta encontra hoje um cenário predominantemente restritivo, mas dispõe de argumentos sólidos para levar a questão a debate nos órgãos competentes, seja em âmbito administrativo, seja na via judicial rumo a um amadurecimento deste debate. Com a gradual evolução do entendimento jurisprudencial e normativo, é possível vislumbrar avanços na uniformização dessas regras, contemplando, de forma mais coerente, a realidade econômica das importações por conta e ordem.
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