Opinião

Inadmissão da apelação pelo juízo recorrido e o cabimento de reclamação constitucional

Autor

  • é pós-doutor doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) professor do Centro Universitário do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP/DF) procurador do estado do Pará e advogado.

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5 de maio de 2025, 13h22

Este ensaio pretende enfrentar situação concreta e relativamente comum na prática forense, em que o juízo recorrido exerce o controle da admissibilidade da apelação e não a remete ao respectivo tribunal, em flagrante desatendimento à sistemática prevista no CPC/2015.

O Superior Tribunal de Justiça enfrentou a questão, sob a sistemática dos recursos repetitivos (Tema 1.267/STJ).

A questão submetida a julgamento pela Corte Especial foi a seguinte:

“Possibilidade de aplicação do princípio da fungibilidade recursal, na hipótese de apresentação de correição parcial, ao invés da interposição de agravo de instrumento (artigo 1.015 do CPC), contra decisão de magistrado de primeiro grau que, exercendo juízo de admissibilidade, não admite apelação e, assim, não faz a remessa dos autos ao respectivo tribunal, na forma prevista pelo § 3º do artigo 1.010 do CPC de 2015”.

Duas premissas são necessárias para a compreensão da controvérsia: a) a apelação tem admissibilidade monofásica – apenas pelo juízo ad quem; b) o controle e a inadmissão da apelação pelo juízo a quo usurpam a competência do tribunal.

Aliás, pela leitura do artigo 988, do CPC, e de acordo com os limites desta escrita, a reclamação constitucional pode ser utilizada visando a preservação da competência e da autoridade das decisões do tribunal.

Destaco que a Corte da Cidadania vem enfrentando, em outras situações, o manuseio da reclamação constitucional, o que já foi objeto de reflexões anteriores [1] [2].

Uma coisa é certa: importante mudança sistemática foi trazida pelo CPC/15 quando retirou a dupla admissibilidade do recurso de apelação (artigo 1.010, §3º). O juízo a quo, portanto, passou a ser o órgão de recebimento do recurso e adoção das providências consagradas no artigo 1.010, do CPC/15, com o seu posterior encaminhamento ao tribunal.

Apesar de não exercer a admissibilidade, o juízo recorrido é competente para a determinação de medidas ligadas ao cumprimento da sentença, especialmente nos casos em que o recurso de apelação não possui efeito suspensivo legal / automático (artigo 1.012, §1º, do CPC).

Spacca

Não se deve confundir, portanto, a retirada da admissibilidade do órgão prolator da decisão, com a adoção de condutas aptas visando a satisfação de sua própria decisão.

Outrossim, no tribunal, o recurso de apelação é distribuído e passa, inicialmente, pela análise monocrática do relator, com vários circuitos deliberativos (artigos 932 e 1.011, do CPC):

– Possibilidade de concessão de tutela provisória no próprio recurso (artigo 932, II);

– Afirmação de que o apelo está prejudicado ou inadmissível, nos casos em que o recorrente não tenha apresentado impugnação específica (artigo 1.010, II e 932, III);

– Negativa de provimento, nos casos de recurso contrário a precedente vinculante (artigo 927 c/c 932, IV) ou provimento do apelo, quando a decisão recorrida estiver contrária a estes precedentes (artigo 927 c/c 932, V);

– Se não for caso de julgamento monocrático, poderá receber o recurso e elaborar seu voto, para apreciação pelo órgão fracionário (artigo 1.011).

A questão enfrentada no Tema 1.267/STJ refere-se à hipótese em que o juízo a quo não remete a apelação ao tribunal, por exemplo, negando seguimento ao recurso por vícios formais. Essa usurpação da competência pode ensejar qual (is) medida (s) processual (is)?

Não se desconhece que existem situações absurdas em que a remessa da apelação ao órgão ad quem pode ir de encontro aos princípios da celeridade, duração razoável etc., como em caso de apelação intempestiva ou sem atender ao padrão mínimo de dialeticidade. Contudo, será que mesmo nestes casos, o recurso deve obrigatoriamente ser remetido ao tribunal, para o exercício do juízo de admissibilidade?

Usurpação de competência do tribunal

Este é o ponto. O regramento processual é um só. O não encaminhamento da apelação usurpa a competência do tribunal, tendo em vista que o recurso tem admissibilidade monofásica.

Aliás, o Superior Tribunal de Justiça tem julgados no sentido de que o juízo a quo não pode exercer o juízo de admissibilidade da apelação – exatamente nos termos do previsto na legislação processual (artigo 1.010, §3º, do CPC), como se observa nestas passagens:

“Nos termos do art. 1.010, § 3º, do CPC , com a interposição da apelação – e após o prazo para apresentação de contrarrazões e apelação adesiva – os autos serão remetidos ao tribunal competente pelo juiz, que não procederá juízo de admissibilidade do apelo. Precedentes. Incidência da Súmula 83 do STJ” (AgInt no REsp 1.879.510/RJ, relator ministro: Marco Buzzi – 4ª T/STJ – J. 21/8/2023, DJe 24/8/2023).

“Referido dispositivo dá cumprimento ao objetivo do legislador de conferir celeridade ao processo, e não ao contrário, pois, ao extinguir a competência diferida do juiz de primeiro grau de realizar a admissibilidade da apelação, tornando-a, além de definitiva, exclusiva do Tribunal, a rigor do relator sorteado, evitou desnecessária e morosa hipótese de recurso” (AgInt no AREsp 2.143.376/SP, relatora ministro Nancy Andrighi – 3ª T/ STJ – J. 9/11/2022, DJe 11/11/2022).

Aliás, este mesmo entendimento deve ser feito para o recurso ordinário em mandado de segurança ou Habeas Corpus — obrigatória remessa ao órgão ad quem sem o exercício de qualquer controle pelo tribunal recorrido (artigo 1.028, §3º, do CPC).

A questão ganha outros contornos quando se passa a analisar qual é a medida judicial cabível em caso de inadmissão recursal por parte do juízo a quo. A prática forense indicou algumas variáveis: agravo de instrumento, reclamação constitucional, mandado de segurança, correição parcial, etc.

Tese firmada no Tema 1.276/STJ

A Corte Especial procurou estabilizar a interpretação das medidas judiciais cabíveis nestes casos de usurpação de competência. Irei desmembrar a tese firmada pela Corte Especial para melhor compreensão da controvérsia:

“1. A decisão do juiz de primeiro grau que obsta o processamento da apelação viola o § 3º do artigo 1.010 do CPC, caracterizando usurpação da competência do Tribunal, o que autoriza o manejo da reclamação prevista no inciso I do artigo 988 do CPC”;

Não há dúvida quanto a isso. Em que pese a Corte da Cidadania ter interpretação restritiva quanto ao uso da reclamação visando o controle de precedentes qualificados, especialmente após o resultado da RCL 36.476/STJ [3], o manejo da ação constitucional na situação tratada no Tema 1.276/STJ realmente objetiva resguardar a competência do tribunal (artigo 988, I, do CPC).

Uma indagação deve ser feita: em caso de recurso absurdo, incabível ou intempestivo, ainda assim deve ser remetido o feito ao tribunal? A resposta é positiva, o que pode significar na prática um deslocamento desnecessário, mesmo que obrigatório.

Realmente, a admissibilidade única é clara opção legislativa, pelo que a certificação do cabimento e a análise meritória devem ser exclusivas do órgão ad quem, por vezes em juízo monocrático do Relator (art. 932, III do CPC).

O segundo item da tese é o seguinte:

“2. Na hipótese em que o juiz da causa negar seguimento à apelação no âmbito de execução ou de cumprimento de sentença, também será cabível agravo de instrumento, por força do disposto no parágrafo único do artigo 1.015 do CPC.”

Neste ponto, a Corte Especial passou a enfrentar a duplicidade procedimental prevista nos artigo 988, I e 1.015, parágrafo único, do CPC.

Aqui também estamos diante de outra opção legislativa. Além da admissibilidade única da apelação, o CPC/15 consagrou o cabimento do agravo de instrumento apenas nas situações tratadas no rol do artigo 1.015; o que, aliás, foi objeto de enfrentamento específico pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema 988/STJ (taxatividade mitigada) [4].

Há, contudo, um detalhe importante. O parágrafo único, do artigo 1.015, do CPC, não restringe o agravo de instrumento em relação às decisões interlocutórias previstas na liquidação, cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário.

Nestes casos, como é sabido, a recorribilidade mediante agravo de instrumento é ampla e não se submete às hipóteses elencadas nos incisos do artigo 1.015, do CPC.

Portanto, no item 2 do Tema 1.276/STJ, a Corte consagrou, além da reclamação, também a interposição de agravo de instrumento contra a interlocutória que negar seguimento à apelação na execução ou cumprimento de sentença.

A rigor, penso que também deveria expressar a possibilidade de agravo de instrumento na liquidação [5] e no processo de inventário, seguindo a redação do parágrafo único, do artigo 1.015, do CPC.

Por derradeiro, o Superior Tribunal de Justiça tratou da modulação dos efeitos:

“Até a data da publicação dos acórdãos referentes ao Tema Repetitivo n. 1.267/STJ, é possível, com base no princípio da fungibilidade e em caráter excepcional, o recebimento da correição parcial (ou do agravo de instrumento previsto no do artigo 1.015 caput do CPC ou de mandado de segurança) como a reclamação apta a impugnar a decisão do juiz de primeiro grau que inadmite a apelação, desde que não tenha ocorrido o seu trânsito em julgado.”

Exatamente visando salvaguardar a boa-fé daqueles que manejaram outras medidas judiciais, a Corte Especial modulou o entendimento firmado no tema em comento, admitindo a possibilidade de recebimento, como medida excepcional e até a publicação do acórdão, da correição parcial, do agravo de instrumento ou mesmo do mandado de segurança, como a reclamação apta a impugnar o pronunciamento do juízo recorrido que nega o trânsito da apelação, com a ressalva relativa ao eventual trânsito em julgado.

Apesar da elogiável modulação da tese firmada, especialmente levando em conta a divergência interpretativa sobre o assunto, entendo discutível a possibilidade de recebimento de um recurso (agravo de instrumento), um incidente processual (correição parcial) ou mesmo uma ação com procedimento próprio e específico (mandado de segurança) como a reclamação — que também possui tratamento específico e diferenciado.

Aspectos procedimentais importantíssimos devem ser levados em consideração ao tratarmos de recebimento de uma classe por outra.

Estas são algumas reflexões visando compreender a importância do tema tratado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça.

 


[1] ARAÚJO, José Henrique Mouta. MS e reclamação visando a correta aplicação dos precedentes qualificados. Disponível aqui.

[2] ARAUJO, José Henrique Mouta. Se reclamação não é admitida, como recorrer de decisão sobre precedente qualificado? Disponível aqui.

[3] No tema: ARAUJO, José Henrique Mouta. Se reclamação não é admitida, como recorrer de decisão sobre precedente qualificado? Disponível aqui.

[4] A tese firmada no Tema 988/STJ foi a seguinte: “O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”.

[5] Não se desconhece a polêmica existente em relação à natureza jurídica e à recorribilidade da decisão que encerra a liquidação de sentença. No tema, ver: ARAÚJO, José Henrique Mouta e LEMOS, Vinicius Silva. A decisão de liquidação de título executivo, o Novo CPC e sua recorribilidade: uma questão a ser resolvida. Revista de Direito da ADVOCEF – Ano XIII – Nº 25 – Nov 17.

Autores

  • é mestre e doutor em Direito (UFPA), pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, procurador do estado do Pará, professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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