Público & Pragmático

Modelagem regulatória de incentivos, sustentabilidade ambiental e debêntures

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4 de maio de 2025, 8h00

O setor de infraestrutura é rico em razões que justificam, em tese, o manejo de regulação econômica. Recentemente a União passou a estruturar balizas normativas para induzir e incentivar os agentes do setor a implementarem ações socioambientalmente responsáveis nos seus respectivos empreendimentos. Uma dessas medidas é a moldura jurídica que vem sendo construída em torno da emissão e compra de debêntures.

As debêntures são títulos representativos de dívida emitidos por empresas. Trata-se de forma de captação de recursos alternativa aos financiamentos bancários, que tem o potencial de viabilizar a implantação de projetos de infraestrutura que exigem financiamentos vultosos, a partir da redução do seu custo de capital.

Com o objetivo de ampliar o rol de instrumentos de financiamento privado para contratos de longa duração, o ordenamento brasileiro criou as “debêntures incentivadas” (Lei nº 12.431/11) e, mais recentemente, as “debêntures de infraestrutura” (Lei nº 12.8021/24), que concedem benefícios fiscais para as os adquirentes e para os emissores dos títulos, respectivamente.

Em 28 de março de 2024, o governo federal publicou o Decreto nº 11.964, que regulamenta a emissão das “debêntures incentivadas” e das “debêntures de infraestrutura”. O decreto fixa os critérios objetivos para o enquadramento e acompanhamento dos projetos de investimento considerados prioritários na área de infraestrutura, para fins de emissão das debêntures.

De forma simples, a norma estabelece definições sobre quais projetos terão aptidão para se valer de recursos captados por meio da emissão de debêntures, com os respectivos benefícios fiscais.

Dada a atratividade dessa forma de captação de recursos, a fixação de critérios para o enquadramento de projeto se releva interessante mecanismo regulatório. Isso porque, além dos critérios estabelecidos no Decreto 11.964/24, os ministérios setoriais possuem autonomia para fixar exigências complementares, alinhadas às suas políticas setoriais (artigo 3º).

Essa liberdade regulamentar abriu espaço para que os ministérios setoriais instituam critérios complementares para a qualificação dos projetos, critérios esses capazes de induzir comportamentos que estejam alinhados a atender finalidades coletivas. Possibilita-se, portanto, a criação de normas de estímulo ou indução voluntária de comportamentos em que os mecanismos de recompensa econômica ou de geração de posições jurídicas de vantagem vêm acompanhados do trade off fixado naquele esquema regulatório [1]. No caso, a vantagem seria a emissão de debêntures com benefícios fiscais.

Critérios de sustentabilidade

No que se refere, especificamente, à temática ambiental, o Decreto nº 11.964/24 prevê que, para fins de fiscalização e acompanhamento, o emissor da debênture deve protocolar no ministério setorial correspondente uma série de informações sobre o projeto e, dentre elas, os “benefícios sociais ou ambientais advindos da implementação do projeto” (artigo 8º, I, “d”).

Embora sinalize a relevância da questão ambiental, a discrição da exigência confere ampla discricionariedade para que cada ministério estipule exigências ambientais vinculadas à sua política pública setorial.

Nesse sentido, alguns ministérios ligados ao tema da infraestrutura já têm estabelecido novos critérios de sustentabilidade que merecem destaque nesse artigo.

Em primeiro lugar, o Ministério de Transportes disciplinou o enquadramento de projetos prioritários através da Portaria nº 689, de 17 de julho de 2024. A norma estabeleceu que, para a emissão de debêntures com incentivos fiscais, os projetos de investimento ou os contratos a que estejam associados devem prever investimentos em sustentabilidade.

De forma mais especifica, a norma exige a realização de investimentos em mitigação de gases de efeito estufa, transição energética, ou implantação e adequação de infraestrutura para resiliência climática (artigo 5º, I).

Com o objetivo de tornar mais célere o enquadramento dos projetos, o Ministério dos Transportes fixou a competência da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para listar requisitos técnicos e objetivos de enquadramento que tornem dispensável a necessidade de atestação específica para cada projeto (artigo 5º, §3º).

A ANTT, então, editou a Resolução nº 6.057, de 28 de novembro de 2024, por meio da qual instituiu o Programa de Sustentabilidade para Rodovias e Ferrovias. O Programa está estruturado em três níveis e o enquadramento do projeto depende da assunção de obrigações de responsabilidade ambiental específicas, que devem ser incorporadas no contrato de concessão (artigo 15).

O enquadramento no Programa de Sustentabilidade da ANTT viabiliza ao contratado o recebimento de “Incentivos de Reconhecimento”, dentre os quais está o enquadramento do projeto para emissão de debêntures incentivadas e de infraestrutura (artigo 25, I, “a”).

A manutenção dos incentivos previstos na norma está condicionada ao cumprimento continuado das obrigações assumidas no contrato, sendo o descumprimento injustificado fundamento para a suspensão dos incentivos, reenquadramento do regulado em nível inferior ou, ainda, exclusão temporária do programa (arts. 26 e 27). As exigências de sustentabilidade passarão a ser obrigatórias para editais de licitação publicados após 26 de janeiro de 2026.

Em segundo lugar, no âmbito do Ministério de Minas e Energia, a regulamentação setorial complementar para as debêntures com incentivo fiscal foi objeto da Consulta Pública nº 180, de 23 de janeiro de 2025, que recebeu contribuições da sociedade civil. Conforme indica a análise de impacto regulatório (AIR) [2] que guiou a elaboração da Minuta de Portaria do MME, a política setorial terá como enfoque os projetos de transformação de minerais estratégicos para a transição energética.

Nesse sentido, a Nota Técnica nº 11/2024/DTTM/SNGM [3] reconhece a transição energética como oportunidade para que o Brasil contribua para o planeta e desenvolva uma robusta indústria de transformação de minerais. Além disso, o documento identifica os agentes econômicos afetados pela regulação e referencia estudos que demonstram quais minerais são estratégicos para a transição energética e quais produtos serão gerados a partir da sua transformação.

A partir das informações constantes nos instrumentos regulatórios, houve a elaboração e divulgação da Minuta da Portaria do MME, que classifica como elegíveis a emissão de debêntures com benefícios fiscais os projetos que resultem na produção de substâncias específicas, alinhadas com o objetivo de promover a transição energética.

Em terceiro lugar, cumpre examinar a iniciativa setorial do Ministério de Portos e Aeroportos. Por meio da Portaria nº 419, de 29 de agosto de 2024, o Ministério definiu como prioritários os projetos de hidrovias, portos organizados e instalações portuárias e aeródromos e instalações aeroportuárias, ao tempo em que possibilitou que sejam enquadradas como prioritárias as ações e intervenções complementares ao projeto de investimento que tenham a finalidade de reduzir ou mitigar emissões de gases de efeito estufa. As ações complementares estão sujeitas, contudo, à aprovação ministerial [4].

Conclusão

Como se vê, as iniciativas setoriais analisadas estão em diferentes estágios de desenvolvimento e estipulam diferentes níveis de exigências para os agentes regulados. O setor de transportes possui desenho normativo de regulação das debêntures bastante estruturado, tendo havido, inclusive, a regulamentação por parte da agência reguladora. O Ministério de Minas e Energia, apesar de estabelecer como foco da política setorial promover a transição energética, está, ainda, em fase de Consulta Pública. Por outro lado, o Ministério de Portos e Aeroportos já possui Portaria publicada, mas alocou os critérios ambientais no enquadramento de ações e intervenções complementares ao projeto principal.

Não obstante, a exigência de critérios de sustentabilidade nas regulamentações setoriais para a emissão das debêntures com benefícios fiscais contribui para a consolidação dos mecanismos de regulação ambiental por indução no ordenamento jurídico brasileiro.

Em complemento à criação de obrigações ambientais específicas calibradas como normas do tipo comando-e-controle, típicas de qualquer empreendimento de infraestrutura – seja no próprio contrato, seja como condicionantes em licenciamentos ambientais –, a União vem desenvolvendo a arquitetura jurídica necessária para induzir os particulares a adotarem ações ambientalmente sustentáveis a partir dos seus motores principais: o custo de capital e o retorno econômico do projeto.

 


[1] Binebojm, Gustavo. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação: Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador, p. 174.

[2] Análise Impacto Regulatório: “1.25. Espera-se que o Brasil, que detém reservas significativas dos minerais estratégicos para a transição energética, que detém abundante oferta de energia limpa e renovável para seu processamento, mão-de-obra competitiva, capacidade de desenvolvimento tecnológico e robusta infraestrutura, se torne ainda mais atraente para o investimento na estratégica indústria de transformação dos minerais para a transição energética dentro das cadeias de valor globais de baterias, veículos elétricos, motores elétricos, turbinas eólicas, etc. 1.26. Os investimentos nessa indústria vão propiciar agregação de valor aos minerais brasileiros, geração de empregos de qualidade, multiplicação da renda nacional, inclusive nas comunidades locais, ampliarão consideravelmente as chances de o Brasil desenvolver também os elos seguintes (downstream) nas cadeias de valor citadas e concederá ao Brasil um peso estratégico na indústria mundial relacionada à transição energética”.

[3] Nota Técnica nº 11/2024/DTTM/SNGM: “2.10. Para o Brasil, a transição energética abriu a oportunidade, e a responsabilidade, de ajudar o planeta nos esforços de ampliação da oferta dos minerais críticos, bem como, a oportunidade de desenvolver no país uma robusta indústria de transformação desses minerais, integrada às cadeias de valor globais das baterias, painéis solares, motores elétricos, aerogeradores e veículos elétricos. O Brasil tem os minerais e tem uma robusta matriz de energia limpa e renovável para o seu processamento. Além disso, tem mão-de-obra competitiva a ser treinada para esse desafio e uma robusta rede de centros tecnológicos capazes de desenvolver no país as tecnologias hoje dominadas pelas empresas chinesas”.

[4] Portaria nº 419, de 29 de agosto de 2024: “Art. 3º Os projetos de investimento deverão fazer parte do escopo de um contrato de concessão, autorização ou arrendamento nos subsetores prioritários de que trata o art. 1° desta Portaria e só poderão abranger ações de implantação, ampliação, aquisição, reposição, manutenção, recuperação, adequação ou modernização de bens de capital. Parágrafo único. Ações e intervenções complementares ao projeto de investimento que tenham a finalidade de reduzir ou mitigar emissões de gases de efeito estufa serão enquadradas como projetos prioritários e sujeitos a aprovação ministerial prévia”.

Autores

  • é doutorando em Direito do Estado (USP), mestre em Direito Público (UFBA), MBA em Parcerias Público-Privadas e Concessões (FespSP), professor da Faculdade Baiana de Direito e advogado.

  • é aluna especial de disciplina de pós-graduação na Universidade Federal da Bahia e advogada.

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