Lei nº 14.852/2024: surgimento do Direito Público dos Games
2 de junho de 2024, 8h00
Com a, finalmente, promulgação do “Marco Legal dos Games”, uma vez convertido o Projeto de Lei nº 2.796/2021 na Lei nº 14.852/2024, algumas perguntas sobre o tema começaram a surgir na comunidade jurídica, natural que se deflagra, pois, a importância da relação entre direito e jogos eletrônicos.

Cabe destacar que, no último dia 31 de março, tivemos a honra de publicar aqui nesta coluna o artigo O Marco Legal dos Games como primeiro passo para a regulação do setor no Brasil. Os autores sugerem aos leitores a prévia leitura deste artigo, pois ele serve como ponto de partida para o texto que ora se desenvolve.
Aparentemente, a própria dúvida sobre o que se poderia conceber como Direito Público dos Games, como novo ramo do direito público trazido pela Lei nº 14.852/2024, constitui a principal delas. Ao nosso ver, tal questão poderia ser respondida da seguinte forma.
Direito Público x Direito Privado
Em primeiro lugar, convém recorrermos à, talvez, primeira e mais conhecida das dicotomias jurídicas: direito público vis-à-vis direito privado.
A concepção mais simplória a se considerar seria no sentido que divisa o direito privado na seara das relações jurídicas entre particulares (casos clássicos dos direitos civil e empresarial) e o direito público nas questões próprias do Estado ou em suas relações com os particulares (casos clássicos dos direitos constitucional, tributário e administrativo).
Contudo, assim a consideramos (utilizando a palavra “simplória”) à medida que os últimos anos têm revelado, ao mesmo tempo, como fenômenos interligados, a privatização do direito público (ou, pelo menos, do direito administrativo) e a publicização (ou, ao menos, constitucionalização) do direito privado.
Feita esta contextualização e, desde já compreendido que hodiernamente todo direito privado tem um pouco de público e vice-versa, cumpre também traçar alguns parâmetros sobre o chamado direito dos games, independentemente de como poderemos abordá-lo, seja no direito privado, seja no direito público.
Direito dos Games (jogos eletrônicos)
Em termos puramente dogmáticos, o direito dos games (direito dos jogos eletrônicos, direito gamer, gaming law, ou qualquer terminologia parecida), distinguindo-se de arcabouços teóricos mais tradicionais (como os direitos civil, administrativo, constitucional, por exemplo) não se amolda ao formato de ramo jurídico autônomo, com metodologia e princípios próprios. Isso, a rigor e tecnicamente, lhe retira a condição de matéria dogmática do ensino jurídico.
O mesmo se pode dizer do direito da infraestrutura, direito da construção [1] e do direito do terceiro setor [2], entre outros. É que, assim como nestes casos, a indústria dos jogos eletrônicos, na realidade, caracteriza segmento econômico que não se limita a regimento jurídico determinado e exclusivo, mas exsurge como objeto de estudo de qualquer dos ramos de conhecimento, ditos tradicionais, do direito.
Explica-se: no estudo do direito, os segmentos econômicos necessitam ser manejados com interdisciplinaridade, o que torna possível, no caso dos games, falarmos em direito tributário dos jogos eletrônicos ou em direito desportivo dos jogos eletrônicos, dentre tantas outras possibilidades.
Do academicismo à prática, entretanto, alguns leitores provavelmente já devem ter se deparado com anúncios de publicidade de autointitulados “advogados especialistas em gaming law”. Trata-se, em verdade, de profissionais que, na grande maioria das vezes, atuam nas causas de direito do consumidor de jogos eletrônicos (reconhecimento da relação consumerista entre jogadores/players/gamers e desenvolvedoras de jogos/publishers) e de direito do trabalho dos jogos eletrônicos (questões trabalhistas de atletas profissionais/pro-players de jogos eletrônicos — eSports).
É claro que o mercado jurídico dos jogos eletrônicos não se resume a isso. Pelo contrário, no campo preponderantemente privado, segue por apresentar significativa complexidade, abarcando uma gama extensa de situações relacionadas a direitos autorais e de imagem (e até de conteúdo gerado pelos próprios jogadores dentro dos jogos), bem como a marcas e patentes, isto é, todas as dimensões da propriedade intelectual — este, aliás, talvez um dos ramos inaugurais do gaming law [3]; relações contratuais gerais, atinentes aos chamados stakeholders e demais envolvidos com a indústria; relações de ordem empresarial e societária, inclusive de startups etc.
Direito Público dos Games (jogos eletrônicos) e Lei nº 14.852/2024
Já no âmbito, não menos complexo, de predominância do direito público, cabe ao Estado, com a novidade do Marco Legal dos Games, a tutela do equilíbrio entre o desenvolvimento da indústria dos games (com medidas de incentivo/fomento) e a acomodação deste segmento ao sistema constitucional, ao seu conjunto de valores socioeconômicos e direitos fundamentais que permeiam a sociedade (para alguns, esta seria a regulação de externalidades em sentido estrito).
Com efeito, é possível encontrar na Lei nº 14.852/2024 exemplos tanto da sua função regulatória de fomento, quanto da disciplinar.

No primeiro caso, tem-se como exemplo o reconhecimento dos games como obras de entretenimento ou de contemplação artística e, a partir disso, a viabilização de recursos da Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991), como medida de incentivo à indústria e à profissionalização do setor dos jogos eletrônicos. No segundo caso, o melhor exemplo a ser citado certamente vem com a importância dada pelo Marco Legal aos canais de escuta e diálogo, expressamente a fim de proteger crianças e adolescentes.
Cabe observar, todavia, que há uma série de questões que não podem ser esquecidas e que sempre desafiarão o Estado a uma regulação mais ampla e com mecanismos mais sofisticados, para além da Lei nº 14.852/2024.
Veja-se, por exemplo, que imprescinde da função regulatória estatal a crescente possibilidade de transações financeiras, como talvez tenham inovado os jogos Farmville e o World of Warcraft no passado [4] e que agora passa a ser lugar comum com a disseminação do uso de criptoativos. Não raro, em um futuro próximo, alguns desenvolvedores de games terão que inserir preocupações de uso de seus ambientes por criminosos para riscos de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo [5].
Muitos exemplos ainda poderiam ser apresentados, mas, apenas para ilustrarmos o argumento, sem prejuízo, com uma questão curiosa do direito asiático, convém mencionar o instituto de Shutdown law (também conhecido como “Lei da Cinderella”), aprovada pelo Parlamento sul-coreano, que proibia os jovens menores de 16 anos de jogarem jogos online de madrugada. Posteriormente, a lei foi abolida, justamente por questionamentos de que tal regulação feriria direitos constitucionais. [6]
Importância do Direito Público dos Games e o eterno desafio regulatório do Estado brasileiro
Neste ponto, caminhando para a conclusão, torna-se importante lembrar a principal ideia oferecida no artigo anterior em que lançamos luz à problemática jurídica, dando conta que, até mesmo em razão dos consecutivos ciclos de disrupção tecnológica, tão inata ao universo dos games, o desafio legislativo-regulatório para acompanhar a velocidade da evolução gamer será contínuo e eterno.
Em verdade, é bem este desafio — o qual, repise-se, impõe ao Estado a necessidade de uma regulação mais ampla e com mecanismos mais sofisticados — que desvela, não obstante hoje contarmos com a Lei nº 14.852/2024, a relevância de desenvolvermos o Direito Público do Games.
Será, afinal, por meio da evolução deste arcabouço teórico que poderemos aprimorar o entendimento de integração sistemática do Marco Legal do Games no ordenamento jurídico (sim, porque problemas de aplicação da lei, de certo, irão aparecer), assim como amadurecer alternativas complementares, como instrumentos adequados de soft law e a necessária otimização do enforcement regulatório infralegal de nosso país — tópicos sobre os quais, por conseguinte, desejamos escrever nas próximas oportunidades como pesquisadores da temática.
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[1] Vide, por André Castro Carvalho: CARVALHO, André Castro. Direito da infraestrutura: perspectiva pública. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.114-117.
[2] Vide OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de gestão. 2. ed. São Paulo: RT, 2008.
[3] Nos EUA, por exemplo, o Atari v. Amusement World movimentou o país em relação ao tema de propriedade intelectual e jogos eletrônicos, sendo uma relevante controvérsia jurídica dos anos 1980.
[4] Por André Castro Carvalho, em seus estudos de nível pós-doutoral, confira-se: CARVALHO, André Castro. Regime jurídico da e-cash bitcoin no direito financeiro brasileiro. Revista de Direito Público da Economia – RDPE. a. 16. n. 61. jan./mar. 2018, p. 11.
[5] Como, por exemplo, ocorre no filme Rede de Ódio (2020), disponível na plataforma Netflix.
[6] Vide: https://www.koreaherald.com/view.php?ud=20211115000803
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