Esvaziamento das garantias fundamentais: sobre o AgRg no RHC 200.123-MG (parte 1)
3 de maio de 2025, 8h00
O presente artigo, dividido em três partes, propõe um exame reflexivo do julgamento do AgRg no RHC 200.123-MG [1], proferido pela 5ª Turma do STJ, à luz dos princípios estruturantes do processo penal brasileiro em um Estado democrático de Direito.

Para que a crítica aqui desenvolvida seja clara e devidamente contextualizada, é preciso apresentar os elementos essenciais do julgamento em análise. Trata-se, no caso, de agravo regimental interposto pelo Ministério Público de Minas Gerais contra decisão monocrática que havia dado provimento a recurso em Habeas Corpus, reconhecendo a ilicitude de provas obtidas em busca domiciliar realizada sem mandado judicial. A decisão agravada entendeu que a diligência violou a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, uma vez que baseada exclusivamente em denúncia anônima, sem a devida demonstração de fundadas razões, bem como considerou inválido o alegado consentimento verbal dado pela companheira do investigado.
No julgamento do referido agravo regimental, a 5ª Turma do STJ assentou, em sua fundamentação, a possibilidade de ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial quando presentes fundadas razões — demonstráveis posteriormente — de que estaria ocorrendo a prática de crime no interior da residência. Tal entendimento é particularmente aplicado a hipóteses de flagrante delito relacionadas a infrações de natureza permanente, como o tráfico de entorpecentes.
No caso concreto, a Corte entendeu que a apreensão de uma arma de fogo na posse do investigado, aliada à confissão espontânea quanto à existência de substâncias ilícitas armazenadas no imóvel, configurariam circunstâncias suficientemente aptas a legitimar a atuação policial, dispensando autorização judicial prévia.
Além disso, destacou-se que a autorização verbal concedida pela companheira do acusado, embora não formalizada por escrito ou por meio audiovisual, foi considerada válida, conforme precedentes do STF, servindo como elemento adicional de legitimação da diligência policial.
Outrossim, o Tribunal da Cidadania valorou os depoimentos prestados pelos agentes públicos responsáveis pela abordagem, atribuindo-lhes presunção de veracidade e observando que seus relatos se mostraram coerentes entre si e harmônicos com o conjunto probatório constante dos autos, apesar da mesma quinta turma já ter taxado situação absolutamente análoga de ‘inverossímil’ (v.g. HC 686489/SP). Por fim, Não foram identificados, segundo a 5ª Turma, quaisquer indícios de arbitrariedade ou desvio de finalidade na conduta dos policiais
Com base na fundamentação exposta, a 5ª Turma do STJ deu provimento ao agravo regimental, fixando as seguintes teses: “1. A entrada em domicílio sem mandado judicial é lícita quando há fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem situação de flagrante delito. 2. A autorização verbal de morador é suficiente para legitimar a busca domiciliar, não havendo exigência de consentimento documentado por escrito ou audiovisual”.
Reflexões críticas
Pois bem. Ao reconhecer a licitude de uma busca domiciliar realizada sem mandado judicial, a decisão suscita relevantes reflexões críticas sobre a compatibilidade desse entendimento com os pilares constitucionais do processo penal brasileiro e com a orientação que aparentemente estava se consolidando no próprio STJ. A análise da fundamentação exige uma abordagem para além do caso concreto, que explore os impactos dogmáticos e sistêmicos da decisão — especialmente no que se refere à admissibilidade da confissão informal, à inviolabilidade do domicílio e à injustiça epistêmica pelo excesso de credibilidade ao testemunho policial.. Esses aspectos, embora diversos entre si, estão interligados por um denominador comum: a necessidade de que a jurisprudência seja íntegra e coerente.
A decisão da 5ª Turma do STJ atribui centralidade à suposta confissão feita pelo acusado no momento da abordagem policial, utilizada para validar retroativamente a diligência invasiva. Todavia, a admissibilidade dessa confissão informal — obtida fora dos marcos legais de um interrogatório formal, sem garantias processuais mínimas e à margem da presença da defesa — deve ser vista com cautela.
O uso da fala informal do acusado para justificar a violação do domicílio não apenas afronta a legalidade estrita, mas também representa um retrocesso frente aos parâmetros da jurisprudência mais recente. . Afinal, quando se admite que uma declaração obtida em contexto informal e potencialmente coercitivo possa validar um ato invasivo, desconsidera-se toda a construção garantista acerca dos requisitos mínimos para que a confissão seja considerada juridicamente admissível.
A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do AREsp 2.123.334/MG [2], fez uma inflexão essencial na forma como se compreende, no âmbito da persecução penal, o papel da confissão extrajudicial e os limites constitucionais para sua utilização. De acordo com a primeira tese fixada nesse julgado, somente é admissível a confissão extrajudicial que seja formal, documentada e realizada dentro de estabelecimento estatal oficial. Essa compreensão, embora devesse parecer óbvia à luz do texto constitucional – especialmente no que tange às garantias do contraditório, ampla defesa e devido processo legal – representa uma ruptura necessária com práticas historicamente toleradas, como o famigerado “interrogatório de camburão”.
A confissão informal, feita durante a abordagem policial e posteriormente reproduzida por agentes estatais em juízo, não pode ser admitida como prova lícita. Trata-se de um instrumento de reforço narrativo da acusação que, não raras vezes, é utilizado como substitutivo de uma real atividade investigatória. Nesse ponto, a crítica vai além da discussão jurídica: trata-se de uma exigência civilizatória.
Ao rejeitar a admissibilidade dessa prova obtida à margem das garantias processuais, o STJ reafirmou o compromisso com um modelo de processo penal que repudia a lógica inquisitorial e reconhece que o espaço processual deve ser delimitado por práticas transparentes, fiscalizáveis e respeitosas à dignidade do imputado. Afinal, como bem afirmou o ministro Ribeiro Dantas no voto condutor do AREsp 2.123.334/MG, confissões colhidas em locais não oficiais, sem controle institucional e sem a presença de defensor, não podem ter qualquer valor probatório no ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito. Outrossim, a inadmissibilidade da confissão informal está intrinsecamente ligada à necessidade de combate à tortura e outras formas de violência institucional.
Sob o ponto de vista jurídico, o AREsp 2.123.334 reafirma a centralidade do princípio da legalidade da prova, vedando a correção da informalidade da confissão por meio de testemunho policial. A prática comum de incluir na narrativa dos autos o conteúdo de um suposto diálogo informal entre acusado e policial, com o objetivo de reforçar a versão da acusação, encontra agora uma barreira expressa e insuperável: a ilicitude originária da prova contamina qualquer tentativa de “validá-la” por meio de subterfúgios.
Sob essa ótica, a inadmissibilidade da confissão informal não é uma tecnicalidade processual: é um imperativo ético e jurídico que impede o uso do processo penal como instrumento de opressão. O filtro da admissibilidade é, como diz o professor Prado [3], parametrizado pelo princípio da desconfiança, impondo ao Estado o ônus de demonstrar a licitude e a confiabilidade de seus meios de prova.
Assim, ao reconhecer que a mera palavra dos policiais não é critério idôneo para comprovar a licitude da confissão, o Judiciário afasta-se da tradição acrítica que sustentava condenações baseadas em provas de origem duvidosa e reafirma um compromisso com a verdade processual construída sob condições legítimas e verificáveis.
A inadmissibilidade da confissão informal é, portanto, um passo decisivo para romper com o ciclo de investigações precárias, sentenças injustas e violações de direitos, permitindo a construção de um processo penal mais digno, democrático e comprometido com a justiça. .
Entretanto, ao julgar o AgRg no RHC 200.123/MG e reconhecer a legalidade da busca domiciliar com base na suposta confissão feita no momento da abordagem policial, a 5ª Turma do STJ adotou um entendimento que contraria frontalmente as teses fixadas pela 3ª Seção no AREsp 2.123.334/MG. Enquanto o colegiado unificado decidiu de forma categórica que a confissão extrajudicial somente seria admissível se formalizada em ambiente estatal oficial e com observância das garantias processuais mínimas — sendo inadmissível sua introdução no processo por meio indireto, como o testemunho de policiais — a 5ª Turma validou uma confissão informal e verbal realizada no curso de abordagem policial, totalmente dissociada do devido processo legal, sem qualquer menção a overruling ou distinguishing.
Essa ausência de fundamentação para afastar precedente específico da própria Corte revela não apenas uma violação ao princípio da colegialidade, mas compromete diretamente a integridade e a coerência do sistema jurisprudencial. A jurisprudência, enquanto instrumento de concretização do direito e de uniformização da interpretação judicial, deve observar os princípios da estabilidade, coerência e integridade. Julgados contraditórios, especialmente quando emanados do mesmo Tribunal, minam a confiança dos jurisdicionados e operadores do Direito, instaurando um cenário de insegurança jurídica incompatível com o Estado de Direito.
A coerência das decisões judiciais não é uma expectativa meramente idealista; trata-se de exigência imposta pelo princípio da segurança jurídica e pelo dever de fundamentação das decisões judiciais (CF, artigo 93, IX). A previsibilidade das decisões judiciais, em especial nos tribunais superiores, é essencial para garantir que cidadãos e instituições possam orientar suas condutas segundo parâmetros minimamente estáveis e verificáveis. Quando a jurisprudência se fragmenta sem justificativa plausível, o resultado é um campo fértil para arbitrariedades, desigualdades e descrédito institucional.
Diante disso, é urgente que os tribunais superiores reafirmem o compromisso com a integridade da jurisprudência, respeitando os precedentes fixados em sede colegiada e promovendo o debate técnico necessário sempre que se cogitar um eventual distinguishing. No caso do AgRg no RHC 200.123/MG, a ausência desse esforço interpretativo não apenas fragilizou os direitos do acusado, mas também comprometeu a credibilidade da atuação jurisdicional e o avanço normativo conquistado com o julgamento do AREsp 2.123.334/MG.
Em continuidade aos debates acima apresentados, na segunda parte deste artigo, que será publicada aqui na coluna semana que vem, o foco recairá sobre a inviolabilidade do domicílio, com especial atenção aos requisitos constitucionais e legais para o ingresso estatal em residências, à luz dos recentes debates sobre consentimento, registro audiovisual e a proteção contra abusos no âmbito das atividades investigativas.
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[1] STJ, AgRg no RHC 200.123-MG, Rel. Ministra Daniela Teixeira, Rel. para acórdão Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, por maioria, julgado em 26/2/2025, DJEN 12/3/2025.
[2] STJ, AREsp 2123334/MG, Relator Ministro Ribeiro Dantas, 3ª Seção, julgado em 20/06/2024, DJe 02/07/2024.
[3] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p.94-97.
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