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Justiça brasileira não é célere como a dos EUA, mas tem maior qualidade, diz presidente do TJ-RJ

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2 de maio de 2025, 8h53

A Justiça brasileira é constantemente comparada à dos Estados Unidos. Embora o Judiciário nacional não tenha a celeridade do americano, ele gera decisões mais justas e de maior qualidade. A Justiça dos EUA comete muitos erros, especialmente em ações penais — um exemplo é o do boxeador  Rubin “Hurricane” Carter, injustamente condenado por homicídio, que teve sua história contada na música Hurricane, do cantor e compositor Bob Dylan. A afirmação é do presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Ricardo Couto de Castro.

O TJ-RJ é a corte estadual mais produtiva do Brasil há 15 anos, conforme o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça. O sucesso se deve a investimentos em material e pessoal feitos por presidentes do tribunal desde o começo dos anos 2000, sem que um novo gestor desfizesse os feitos do seu antecessor, aponta Couto, que comanda a corte no biênio 2025-2026.

O desembargador Ricardo Couto de Castro

Para aumentar a celeridade dos processos sem reduzir a qualidade das decisões, Couto pretende ampliar os investimentos em tecnologia. A troca do sistema PJe pelo EProc é um importante passo nesse sentido, avalia.

O presidente também pretende reduzir o déficit de juízes de primeira instância, atualmente em cerca de 170 cargos. Mas ele ressalta que é algo difícil de fazer, pois os concursos para a carreira são complexos, demoram e acabam inserindo no Judiciário 30 profissionais, enquanto 25 se aposentam por ano.

O desembargador critica os ataques à remuneração dos magistrados, que muitas vezes não refletem a realidade dos seus ganhos. “Nenhum magistrado pode ganhar mais que um ministro do Supremo Tribunal Federal. Quando isso ocorre, se trata de valores pagos a título de atrasados. A discussão, então, deve ser se esses valores são corretos ou não.”

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Ricardo Couto ainda destacou a importância de respeitar os precedentes do STF e do Superior Tribunal de Justiça, explicou o funcionamento do orçamento do TJ-RJ e disse que a corte busca proferir decisões que inibam a criminalidade, mas sempre dentro dos padrões constitucionais e legais.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Faz 15 anos que o TJ-RJ encabeça o ranking de produtividade do CNJ. Qual a explicação para isso?
Ricardo Couto — A somatória de pessoal com material traz para o Tribunal de Justiça do Rio essa primazia em termos de produtividade. Tivemos presidentes que trabalharam para aumentar a produtividade desde o começo dos anos 2000, observando e divulgando os rankings de cada câmara. Então as câmaras passaram a observar o tempo que levavam para julgar um processo, desde a data da distribuição até a data do julgamento. Isso trouxe um estímulo para as câmaras, no sentido de melhorar o tempo de julgamento dos processos, mas sem perder a qualidade.

Muitas vezes comparam a Justiça brasileira à Justiça dos EUA. Mas a Justiça dos EUA comete muitos erros em processos criminais. Um exemplo é o do boxeador Rubin “Hurricane” Carter, injustamente condenado por homicídio e que teve sua trajetória contada na música Hurricane, do grande cantor Bob Dylan. O Brasil talvez não tenha a celeridade da Justiça dos EUA, mas tem uma Justiça mais justa e de maior qualidade. Isso eu posso afirmar sem dúvida alguma.

Voltando ao TJ-RJ, os investimentos que foram feitos em estruturação dos gabinetes do segundo grau, seja no plano pessoal ou material, somados ao estímulo dos presidentes no início dos anos 2000, estimularam uma espécie de “competitividade” entre as câmaras, o que gerou um aumento de produtividade sem perder a qualidade.

ConJur — O que é possível mudar para aumentar ainda mais a celeridade dos processos?
Ricardo Couto — A tecnologia é uma forma de viabilizar uma Justiça mais ágil, sem perder a qualidade. Recentemente, o TJ-RJ decidiu trocar o sistema PJe pelo EProc, desenvolvido pela Justiça Federal da 4ª Região. Esse será o quarto sistema eletrônico adotado pelo TJ-RJ. Mas não foi um erro. Eram os sistemas que se mostravam melhores à época. O PJe, inclusive, foi chancelado pelo CNJ. E o TJ-RJ sempre procurou seguir as diretrizes do CNJ. Mas o PJe não se mostrou muito adequado.

O melhor sistema, de fato, é o EProc. Vamos uniformizar todos os nossos sistemas em um único. Então, não demorará muito para termos um único sistema, com uma melhora muito grande. Inclusive, é um sistema com o qual os advogados do Rio já têm familiaridade, pois é usado na Justiça Federal da 2ª Região. Então a advocacia está com uma expectativa alta por essa mudança.

ConJur — Como investir em tecnologia, mas ao mesmo tempo combater a exclusão digital tanto dos mais pobres quanto dos advogados mais velhos?
Ricardo Couto — A exclusão digital é uma preocupação de todos os tribunais, dos advogados, da Ordem dos Advogados do Brasil. Os tribunais e a OAB devem agir conjuntamente para oferecer estrutura para que advogados possam se valer dos sistemas informatizados e não serem excluídos da Justiça.

ConJur — Como é a relação do TJ-RJ com o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça?
Ricardo Couto — O TJ-RJ tem uma visão muito adequada da importância dos julgamentos uniformes. A uniformização de entendimentos significa uma Justiça igual, uma Justiça que se faz no mesmo formato para todas as pessoas. O TJ-RJ é cioso quanto à necessidade de se respeitar os julgados de Brasília, as instâncias superiores. Podemos até pensar que algumas soluções poderiam ser diferentes, mas, para efeitos de uma Justiça igualitária, temos que respeitar os julgados. Então é uma relação muito respeitosa.

ConJur — O sistema atual de subida de recursos é satisfatório?
Ricardo Couto — Sim. O TJ-RJ tem duas vice-presidências para cuidar disso. A 2ª Vice-Presidência cuida dos recursos no âmbito criminal, a 3ª Vice-Presidência cuida dos demais recursos. Como respeitamos as decisões do STF e dos tribunais superiores, há um índice pequeno de recursos que sobem para Brasília.

ConJur — Como é a relação com a primeira instância?
Ricardo Couto A relação com a primeira instância também é muito boa. No estado do Rio de Janeiro, o segundo grau tem uma disponibilidade de pessoal e de material muito boa. Mas no primeiro grau não está boa. Nós temos que rever o número de pessoal que está servindo junto a serventias, além do número de juízes. Hoje temos uma carência de cerca de 170 magistrados. É uma carência muito grande, se pensarmos em um estado da dimensão do Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro tem cerca de 720 magistrados de primeiro grau. Se temos uma carência de 170, há quase 25% de carência de magistrados no primeiro grau.

Eu espero melhorar essa situação em meu mandato. Mas é muito difícil porque os concursos para magistratura são concursos de grande dificuldade. Quando procuramos selecionar o melhor quadro técnico, nós diminuímos o número de candidatos que são aprovados. Isso faz com que cada concurso tenha uma média de 30 magistrados aprovados. E nós temos capacidade de fazer no máximo dois concursos por ano. Cerca de 20, 25 magistrados se aposentam por ano, então muitas vezes adicionamos apenas cinco magistrados no ano. É difícil reduzir essa defasagem.

ConJur — Que implicações há na subordinação orçamentária do Judiciário ao Executivo e ao Legislativo?
Ricardo Couto O Judiciário, por força da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), não pode gastar com seu quadro pessoal mais do que 6% dos recursos que o Estado arrecada. A relação do TJ-RJ com o Executivo e o Legislativo, no plano orçamentário, é muito boa. O Executivo transfere ao Judiciário o que a legislação determina. O que subsidia o custeio do TJ-RJ é o fundo especial, que cada tribunal tem. As receitas do fundo vêm das custas, taxas e dos valores a título de emolumento que são cobrados dos usuários de serviços do Judiciário ou das atividades extrajudiciais dos cartórios. Gastos com compras de computadores ou obras são feitos com recursos do fundo do tribunal. Gastos com remuneração de magistrados e servidores são feitos com os 6% que o Executivo transfere ao Judiciário. Ou seja, quando o tribunal tem gastos materiais, assim o faz com recursos que lhe são próprios, de sua própria atividade, e não com recursos advindos do ICMS ou de outras fontes.

ConJur — A Constituição Federal de 1988 deu um novo papel para o Judiciário, novas atribuições para os magistrados, aumentou a carga de trabalho, a responsabilidade, a fiscalização. Mas há um inconformismo, que a imprensa replica, contra a remuneração dos juízes. Vale a pena ser juiz hoje?
Ricardo Couto — É de suma importância a conscientização da população sobre esse tema, e não devemos fugir do debate. Muitas vezes o que é divulgado não reflete a realidade dos ganhos de um magistrado. Nenhum magistrado pode ganhar mais que um ministro do Supremo Tribunal Federal. Quando isso ocorre, se trata de valores pagos a título de atrasados. A discussão, então, deve ser se esses valores são corretos ou não.

Sobre o chamado adicional por tempo de serviço, tecnicamente isso se insere na ideia de irredutibilidade dos vencimentos. Magistrados que ingressaram na carreira antes de dezembro de 2003 acumulavam esse adicional. Com a Emenda Constitucional 45/2004, ficou vedado que qualquer magistrado recebesse acima do teto do STF, por qualquer que fosse a razão, inclusive adicional por tempo de serviço. Quando essa norma entrou em vigor, e o STF disse que ela tinha aplicação imediata, havia diversos tribunais cujos magistrados recebiam esse adicional com base em leis estaduais. Devido ao adicional por tempo de serviço, esses magistrados ganhavam mais do que um ministro do STF. Esses magistrados que ganhavam acima do teto argumentaram que, por força da Constituição, seus vencimentos não poderiam ser reduzidos. O STF decidiu que eles poderiam manter seus vencimentos até o limite do teto. Mas até essa decisão havia dúvidas.

Havia também uma regra na Constituição de subteto nos estados, o que gerava questionamentos sobre qual seria o teto estadual. O salário de um desembargador? O CNJ determinou que o teto estadual era o subsídio de desembargador, mas essa regra foi declarada inconstitucional pelo STF, que decidiu que o teto para magistrados não era o salário de desembargador, mas o de ministro do STF.

Com a decisão de que o teto era o do STF, magistrados estaduais puderam acumular valores até esse limite, o que gerou uma defasagem de 10% em estados como o Rio de Janeiro entre 2005 e 2021. Isso gerou valores altíssimos a título de atrasados. Mas é algo legal e constitucional. O erro foi a resolução do CNJ que impôs como teto o subsídio do desembargador, decisão depois corrigida pelo STF. Esses atrasados, quando pagos, elevaram consideravelmente os valores recebidos por alguns magistrados.

Cada tribunal paga conforme sua capacidade orçamentária. Por exemplo, um magistrado com R$ 1,5 milhão em atrasados pode receber mensalmente seu subsídio mais parcelas desse valor, totalizando, por vezes, até R$ 180 mil líquidos — já que os atrasados são pagos como verba indenizatória. Ao olhar isso, o cidadão comum pode se espantar, mas se consultar a transparência verá que um juiz que acabou de entrar na carreira ganha cerca de R$ 30 mil líquidos. A diferença decorre do pagamento dos atrasados.

Então, repito, o questionamento deve ser: é correto o pagamento desse valor atrasado? Se não for, não tem que pagar. Mas se for, ele deve ser feito. E deve ser feito rapidamente, pois com o atraso incidem juros, elevando ainda mais a dívida do Estado — especialmente com a atual taxa Selic. Quanto mais o tribunal demora, maior o prejuízo para o contribuinte. Por isso, são essenciais a transparência e o debate direto. A mídia e o público precisam compreender que, apesar dos valores parecerem altos, o pagamento rápido gera economia para o Estado.

ConJur — Um dos problemas atuais do Judiciário é a litigância abusiva. Os filtros existentes são suficientes para impedir a litigiosidade desnecessária?
Ricardo Couto — A questão da litigância predatória envolve aspectos culturais e econômicos. Um exemplo: uma instituição financeira cobra uma taxa que o Banco Central não permite. Ela avalia que, mesmo sendo indevida, é economicamente viável cobrar, pois, entre um milhão de clientes, só 20 mil irão à Justiça. Então ela faz um balanço e opta por cobrar, mesmo sabendo que está errada. Se houvesse uma cultura de não litigiosidade, o chefe do jurídico diria: “Isso é incorreto”. Ao permitir a cobrança, eleva-se o custo da Justiça, e quem paga é a população. Esse custo pode inclusive prejudicar investimentos na própria instituição financeira.

O cálculo econômico feito olha apenas para o momento, mas se mudássemos a cultura, todos ganhariam, com redução de custos e de litígios. Como resolver isso? Há várias formas. O TJ-RJ tentou agir pelo valor das custas. Quando se diagnosticava que alguém, pessoa ou empresa, tinha litígios em excesso, se propôs cobrar mais custas judiciais desses litigantes, pois estavam sobrecarregando a Justiça. A ideia era que, pagando mais, se inibisse o volume excessivo de ações.

O Rio tentou isso, mas o Supremo declarou esse formato inconstitucional, apontando que custas são tributos, e tributos não podem ter caráter punitivo. A visão do Rio de Janeiro, porém, não era de punição, mas de reembolso pelo custo que aquela litigância estava gerando ao sistema. São visões interpretativas distintas, e o Rio respeita a decisão do Supremo. Mas há uma expectativa de que o Supremo reveja esse posicionamento. Tomara.

ConJur — Uma característica do desenvolvimento é o crescimento do volume de processos no campo do Direito Privado. Tribunais têm expandido o número de varas e câmaras empresariais. O senhor planeja investir nessa direção?
Ricardo Couto — Hoje, o nosso pensamento está em termos de economia financeira. Ampliar o número de câmaras significa aumentar os custos. O TJ-RJ ocupa o primeiro lugar no ranking de produtividade nacional, conforme o CNJ. Então o TJ-RJ não precisa criar mais câmaras. O TJ-RJ pode eventualmente transformar câmaras, alterando as competências, mas não criar cargos em segundo grau, que representariam um custo para o estado.

Já em primeiro grau, repito que temos carência de juízes. Como eu posso falar em criar mais varas? Primeiro é preciso trazer juízes para ocupar as varas. Depois de ocupados os 170 cargos vagos, seria possível ter a noção exata da necessidade de ampliar o quadro de varas.

ConJur — Como a crise da segurança pública afeta os julgamentos do TJ-RJ?
Ricardo Couto Eu posso falar sobre o Judiciário, mas não posso falar sobre políticas tomadas pelo Executivo e pelo Legislativo. O Judiciário do Rio de Janeiro procura dar as decisões que entende as mais adequadas no sentido de inibir a criminalidade — logicamente que dentro dos padrões constitucionais e legais. Agora, se isso repercute positivamente ou negativamente na sociedade, talvez seja um problema mais de outra esfera de poder do que a minha. Há muitos questionamentos sobre a legislação. A legislação penal é federal. Há questionamentos sobre segurança no plano do Executivo, mas não compete ao Judiciário adentrar essa seara.

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