Responsabilidade civil do poluidor indireto e obrigação propter rem
1 de maio de 2025, 11h16

A tutela jurídica do meio ambiente no Brasil conta com um aparato normativo sofisticado, que busca não apenas reprimir danos ambientais, mas também preveni-los. Neste contexto, a responsabilidade civil ambiental assume papel central, destacando-se pela sua natureza objetiva e pela possibilidade de responsabilização do poluidor indireto.
Em paralelo, o ordenamento jurídico pátrio prevê as chamadas obrigações propter rem, que em matéria ambiental, recaem sobre o proprietário de imóveis degradados, independentemente de ter sido o causador ou não do dano.
Embora ambos os institutos sejam importantes para a garantia da reparação ambiental, é fundamental distingui-los para evitar confusões conceituais que podem levar a injustiças e insegurança jurídica.
Responsabilidade civil ambiental objetiva
A responsabilidade civil ambiental, estabelecida no §1º do artigo 14 da Lei 6.938/1981, dispensa a comprovação de culpa, exigindo apenas a demonstração do dano e do nexo de causalidade entre este e a atividade do poluidor: “é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.”
Conforme ensina Sérgio Cavalieri Filho, o que justifica a responsabilidade objetiva é o princípio do risco, segundo o qual “quem causa dano deve reparar, porque (e esta é a justificativa) se o ordenamento reconhece ou atribui às pessoas determinados direitos, sobre ela mesma ou sobre bens externos, não devem ser toleradas violações deles, mesmo quando o causador tenha procedido com todos os cuidados exigíveis.”
Esta forma de responsabilização se aplica tanto ao poluidor direto – aquele que executa materialmente a atividade causadora de degradação ambiental — quanto ao poluidor indireto — aquele que, de alguma forma, contribui para a ocorrência do dano sem desenvolvê-lo diretamente.
O poluidor indireto: conceito e limites

A Lei 6.938/1981, em seu artigo 3º, IV, define poluidor como “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental“.
Aqui reside o primeiro desafio interpretativo: qual a extensão do conceito de poluidor indireto? Seria qualquer pessoa que mantém alguma relação com o empreendimento, ou existem limites para esta responsabilização?
A resposta, conforme a doutrina, reside no conceito de dever de segurança. Só se considera poluidor indireto aquele que, tendo um dever legal específico de evitar ou controlar o dano, deixa de observá-lo.
Dr. Tiago Cardoso Zapater leciona que:
“O poluidor indireto será considerado causador do dano apenas na medida em que se possa vislumbrar um dever de segurança que vincule a sua atividade à atividade daquele terceiro que diretamente causou o dano e que esse deve foi violado.”
A interpretação está alinhada com o que ensina Ana Maria de Oliveira Nusdeo, para quem “a caracterização de um causador indireto de dano ambiental, que não está ligado ao dano pelo exercício de uma atividade de risco, exige sua vinculação ao dano por um nexo de causalidade caracterizado: 1) pela efetiva contribuição ao dano e 2) pela violação de um dever legal específico cujo cumprimento teria evitado a ocorrência do dano ou promovido sua mitigação“.
Portanto, não basta uma relação qualquer com o poluidor direto ou com o empreendimento poluidor. É necessário que o suposto poluidor indireto tenha um dever legal específico de controle da atividade e que o descumprimento desse dever tenha contribuído para o dano.
Obrigação propter rem ambiental
O ordenamento jurídico reconhece a existência de obrigações ambientais de natureza propter rem, que derivam diretamente da função socioambiental da propriedade.
Conforme a definição clássica de Silvio Rodrigues, obrigação propter rem é “aquela em que o devedor, por ser titular de um direito sobre uma coisa, fica sujeito a determinada prestação que, por conseguinte, não derivou da manifestação expressa ou tácita de sua vontade. O que o faz devedor é a circunstância de ser o titular do direito real, e tanto isso é verdade que ele se libera da obrigação se renunciar a esse direito”.
No Direito Ambiental, estas obrigações estão fundadas no princípio da função socioambiental da propriedade, consagrado nos artigos. 5º, XXIII, e 186, II, da Constituição Federal, e materializado nos artigos 2º, §2º, e 7º, §2º, do Código Florestal (Lei 12.651/2012), que estabelecem a natureza real da obrigação de recuperar a APP e a Reserva Legal.
O STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem reiteradamente reconhecido esta natureza:
“A obrigação de reparação dos danos ambientais é propter rem, sem prejuízo da solidariedade entre os vários causadores do dano, descabendo falar em direito adquirido à degradação. O novo proprietário assume o ônus de manter a integridade do ecossistema protegido, tornando-se responsável pela recuperação, mesmo que não tenha contribuído para o desmatamento ou destruição”.
Necessária distinção
Apesar de ambos os institutos contribuírem para a reparação de danos ambientais, é fundamental distingui-los conceitualmente.
A responsabilidade civil do poluidor indireto baseia-se no princípio do poluidor-pagador e exige comprovar nexo causal entre conduta e dano, enquanto a obrigação propter rem deriva da função socioambiental da propriedade, independentemente de relação causal com o dano.
Em termos de abrangência, a responsabilidade civil pode incluir reparação in natura, compensação e indenização por todos os danos da conduta, mas a obrigação propter rem limita-se à recuperação do recurso ambiental no imóvel.
Esta distinção é sintetizada por Tiago Vaitekunas Zapater:
“O fundamento teórico dessa distinção e das suas consequências não repousa apenas na estrutura lógica da obrigação propter rem, mas também nos princípios do Direito Ambiental. A obrigação de conservação ambiental do imóvel deriva do princípio da função socioambiental da propriedade, e por esse motivo, adere à propriedade. A responsabilidade civil por danos ambientais deriva do princípio do poluidor-pagador e, por isso, adere ao risco assumido ou gerado por determinadas atividades”.
Com muita precisão, o professor Édis Milaré arremata o assunto, quando afirma que, “de modo algum tais obrigações propter rem se confundem com a responsabilidade civil ambiental que é imposta a pessoas físicas ou jurídicas consideradas poluidoras, direta ou indiretamente, quando se está à frente de ocorrência de danos”.
Problemas práticos na aplicação dos institutos
Na prática, as decisões judiciais frequentemente tratam o possuidor do imóvel como poluidor indireto, impondo-lhe a obrigação de reparar os danos causados por terceiros. Esta abordagem apresenta problemas significativos, sendo considerada injusta quando não há nexo causal entre a conduta do proprietário e o dano ambiental.
O proprietário não deve ser automaticamente tratado como poluidor indireto, a menos que haja um nexo de causalidade entre sua conduta e o dano. Esta confusão conceitual acaba por onerar excessivamente proprietários que não contribuíram para o dano, impondo-lhes custos elevados de recuperação ambiental.
Uma solução equilibrada para este problema consistiria na correta identificação do poluidor direto, que deve arcar com as despesas de restauração ambiental (Prad, remediação, etc.), enquanto o proprietário do imóvel ficaria apenas com o ônus de permitir a execução dos procedimentos de recuperação em sua propriedade.
Em julgamento de relatoria da ministra Eliana Calmon, o STJ abordou com muita tecnicidade o assunto, mantendo a responsabilidade civil da empresa poluidora, mesmo não sendo mais a proprietária do imóvel.
“4. Se possível identificar o real causador do desastre ambiental, a ele cabe a responsabilidade de reparar o dano, ainda que solidariamente com o atual proprietário do imóvel danificado. 5. Comprovado que a empresa Furnas foi responsável pelo ato lesivo ao meio ambiente a ela cabe a reparação, apesar de o imóvel já ser de propriedade de outra pessoa jurídica”.
Evidentemente, nos casos em que a reparação in natura for impossível, a compensação ou indenização deve recair exclusivamente sobre o real poluidor, sem onerar o proprietário que não concorreu ou se beneficiou do dano ambiental causado anteriormente em sua propriedade.
Conclusão
Diante do exposto, a correta distinção entre a responsabilidade civil do poluidor indireto e as obrigações propter rem é essencial para a adequada aplicação do direito. A responsabilidade do poluidor indireto, baseada no princípio do poluidor-pagador, exige comprovação de nexo causal entre a violação de um dever legal específico e o dano ambiental. Por outro lado, a obrigação propter rem ambiental decorre da função socioambiental da propriedade, independentemente de nexo causal com a dano.
A aplicação indiscriminada destes institutos tem gerado decisões que oneram injustamente proprietários não causadores do dano. A solução juridicamente adequada consiste em atribuir ao efetivo causador do dano a responsabilidade pela reparação integral, cabendo ao proprietário apenas o dever de permitir as medidas recuperativas em seu imóvel.
Referências:
BECHARA, Erika. A responsabilidade civil do poluidor indireto e a obrigação propter rem dos proprietários de imóveis ambientalmente degradados. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, ano 20, nº 48, p. 137-165, Março-Abril/2019.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. São Paulo: Gen/Atlas, 2015.
MILARÉ, Édis; MORAIS, Roberta Jardim de; DIAS, Maria Camila Cozzi Pires de Oliveira. Reencontrando Derrida. Revista do Advogado, São Paulo, n. 134, p. 37, jul. 2017.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Parte Geral das Obrigações, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 79.
NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Instituições financeiras e danos ambientais causados por atividades financiadas. In: YOSHIDA, Consuelo Y. M. et al. (Coords.). Finanças sustentáveis e a responsabilidade socioambiental das instituições financeiras. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
STJ – REsp 1241630 – PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, j. 23.06.2015.
ZAPATER, Tiago C. Vaitekunas. Áreas Contaminadas e reparação integral – diferença entre obrigação propter rem e responsabilidade civil por dano ambiental. Revista do Advogado, São Paulo, n. 133, p. 225-226, 2017.
STJ, REsp 1.056.540 – GO, Rel. Ministra Eliana Calmon, j. 25.08.2009.
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