Ecocídio: por que ainda não foi tipificado no âmbito do TPI e na legislação brasileira?
28 de dezembro de 2023, 7h15
A ideia de meio ambiente produz diversos níveis de discussão e compreensão diante de sua complexidade e importância. Além disso, o direito ao meio ambiente equilibrado é enquadrado como direito fundamental de terceira geração, impregnado de um espírito de coletividade, humanismo e universalidade [1]. Mas, observando atentamente a teoria de Karel Vasak, verifica-se que a noção que envolve o meio ambiente está inserida no centro de todas as dimensões (ou gerações) dos direitos fundamentais, porque vinculado à ideia de vida, liberdade, igualdade e fraternidade.
Ainda nesse momento introdutório, interessante a abordagem dada pela professora Tarin, da UFC (Universidade Federal do Ceará) e pelo pesquisador Brochado Neto [2], na orientação de que existe o ecocídio do ponto de vista de política pública, assim entendido como um movimento de estudiosos na busca de proteção e conservação do meio ambiente; bem como, o ecocídio no aspecto penal, instituído em norma jurídica, que vise à sanção criminal dos delinquentes ambientais que causem graves desequilíbrios à natureza.
E na especificidade do tema, surge a necessidade de debate acerca da criminalização de condutas que atentem contra o meio ambiente, concernente à tipificação da novel figura típica do ecocídio, que ainda não está inserida no âmbito do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) [3], promulgado no Brasil a partir do Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002 [4], tampouco está capitulada na legislação interna do país.
No domínio interno, a Constituição de 1988 (CF/88) foi taxativa quando estabeleceu que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cabendo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo. Por igual, o texto constitucional impôs que a propriedade deverá atender à sua função social. Desse modo, o legislador pretextou adotar medidas proativas que objetivem um modelo protetivo sobre a Pachamama e buen vivir [5].
A Opinião Consultiva nº 23/2017, emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos [6], foi no sentido de que o direito ao meio ambiente sadio está proclamado no artigo 11 do Protocolo de São Salvador e, por conseguinte, está incluído ente os direitos econômicos, sociais e culturais que são protegidos pelo artigo 26 da Convenção Americana [7], concluindo que se trata de um direito humano de uma coletividade.
A advogada e ativista Higgins [8] propôs uma emenda ao Estatudo do TPI para acrescentar o ecocídio no seu estatuto como o quinto crime contra a paz [9]. E em julho de 2021, um grupo de juristas comprometidos com questões ambientais produziram uma definição jurídica de ecocídio, com o seguinte preceito incriminador: “atos ilícitos ou arbitrários cometidos com conhecimento de que há uma probabilidade substancial de causar danos graves e generalizados ou de longo prazo ao meio ambiente” (tradução livre) [10].
E para se ter uma ideia concreta acerca da importância ambiental sobre a vida das pessoas, aponta-se o fenômeno atual que está acontecendo no centro urbano de Maceió/AL, ocasionado por um colapso de uma mina da Braskem, cuja exploração desenfreada e descriteriosa vem causando um desastre ambiental, com afundamento do solo e surgimento de tremores de terras em alguns bairros no entorno da empresa (veja outros artigos nesta ConJur) [11].
Ilustre-se, igualmente, outros catástrofes ambientais em grande escala: Chernobyl (1986), na antiga União Soviética e Bhopal, na Índia (1984), bem como de Mariana e de Brumadinho (2015 e 2019), no Brasil, que deixaram rastros de destruição e provocaram o surgimento de uma massa de refugiados ambientais.
Assim, não se consegue entender, com clarividência, sobre os verdadeiros desafios para a criação da novidade legislativa penal que capitule o ecocídio. Isto é, quais as razões que impedem a aprovação tranquila do referido tipo penal. Decerto, os interesses e influências de alguns países ricos, poluidores contumazes, e de pessoas jurídicas ou de grandes empresários, representados pelo poder político, conseguem embarreirar o trâmite normal de projetos legislativos no sentido apontado.
Avançando no tema, em maio de 2023 foi apresentado o PL nº 2933/2023 [12], de iniciativa do deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP), que desde 10/11/2023 [13] se encontra na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, e tem o seguinte texto original para ser acrescentado à Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais):
Do Ecocídio Art. 69-B.
Praticar atos ilegais ou temerários com a consciência de que eles geram uma probabilidade substancial de danos graves e generalizados ou de longo prazo ao meio ambiente:
Pena – reclusão de 5 a 15 anos e multa [14].
Noutro giro, não é tarefa difícil indicar as vantagens ofertadas aos habitantes do planeta com a aprovação do ecocídio como um novo tipo penal, cujas justificativas seriam até mesmo redundantes. Por isso, já é tempo de ir além do princípio poluidor-pagador que visa apenas à responsabilidade civil daquela(s) pessoa(s), física(s) ou jurídica(s), que causa(m) danos à natureza.
A respeito, alguns países já despertaram e iniciaram o debate acerca da tipificação do ecocídio, como o Brasil; enquanto outros, já inseriu a figura típica em seus ordenamentos jurídicos, como o caso do Vietnã, Rússia, Equador e França [15].
À vista das concepções desenvolvidas anteriormente, chega-se a uma conclusão paradoxal acerca da pergunta formulada no título do artigo, que emana uma provocação, aparentemente, simples e que busca descobrir uma resposta que, na prática, parece difícil acerca da titpificação do ecocídio. Por esta razão é preciso superar interesses econômicos e políticos que impedem a efetivação de uma política criminal voltada para a promoção e salvaguarda do meio ambiente.
Portanto, é necessária uma mobilização em busca de solução para os malefícios que o meio ambiente vem sofrendo diante da ação ou omissão humana, daí porque o momento presente já exige a criminalização de condutas praticadas contra a Pachamama, cuja bandeira deve ser levantada por todos como uma nova política de proteção penal em favor da natureza, da qual somos todos guardões e não proprietários, garantindo-se um meio ambiente sadio e equilibrados às gerações futuras.
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[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 35 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 583-584.
[2] BROCHADO NETO, Djalma Alvarez; MONT’ALVERNE, Tarin Cristino Frota. Ecocídio: proposta de uma política criminalizadora de delitos ambientais internacionais ou tipo penal propriamente dito? Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 8, n. 1, p. 209-226, 2018.
[3] Também conhecido como Tribunal de Haia ou Corte Penal Internacional, em vigor desde 2002, cuja criação aconteceu através do Estatuto de Roma, a partir de documento elaborado em Roma, em 1998.
[4] BRASIL. Decreto nº 3.488, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. DOU 26/09/2002. Brasília: Planalto, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em 2 dez. 2023.
[5] SANTOS, Boaventura de Sousa, “La hora de l@s invisibles”, Irene León (coord.), Sumak Kawsay / Buen Vivir y cambios civilizatorios. Quito: Fedaeps, 2010.
[6] CORTE IDH. Opinión Consultiva OC-23/17, de 15 de noviembre de 2017, solicitada por la República de Colombia. Medio ambiente y derechos humanos. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. Acesso em 2 dez. 2023.
[7] BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. DOU 09/11/1992. Brasília: Planalto, 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em 2 dez. 2023.
[8] HIGGINS, Polly. Eradicating Ecocide. 2. ed. Londres: Shepheard-Walwyn LTD, 2012, p. 1167. Ebook. HIGGINS, Polly. Ecocide Law. Disponível em: https://ecocidelaw.com/. Acesso em 2 dez. 2023.
[9] Conforme estipulado no artigo 5º (1) do Estatuto de Roma, o TPI é competente para julgar quatro crimes: o genocídio, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade e o crime de agressão.
[10] “For the purpose of this Statute, “ecocide” means unlawful or wanton acts committed with knowledge that there is a substantial likelihood of severe and either widespread or long-term damage to the environment being caused by those acts.” (STOP ECOCIDE FOUNDATION. Independent Expert Panel for the Legal Definition of Ecocide: Commentary and Core Text. Stop Ecocide Foundation, jun. 2021, p. 15).
[11] “Falha no licenciamento ambiental na tragédia da Braskem em Maceió”: no sítio da Conjur: https://www.conjur.com.br/2023-dez-11/tragedia-da-braskem-em-maceio-e-a-falha-no-licenciamento-ambiental/; e “O desastre-crime da Braskem em Maceió”: https://www.conjur.com.br/2022-ago-23/edesio-fernandes-desastre-crime-braskem2/. Acesso em 5 dez. 2023.
[12] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2367513 ou diretamente:https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2284225&filename=PL%202933/2003. Acesso em 2 dez 2023.
[13] Consulta realizada em 03/12/2023.
[14]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2284225&filename=PL%202933/2003. Acesso em 2 dez 2023.
[15] Cf. na tese acadêmica de Djalma Alvarez Brochado Neto, defendida na conclusão do doutorado na UFC, em 2022, sob a orientação do prof. Gustavo Cabral (UFC). Disponível em: file:///C:/Jefferson/Jefferson/Doutorado%20UFC/Doutorado%20UFC_2023.2/Prote%C3%A7%C3%A3o%20Internacional%20do%20Meio%20Ambiente/Artigo%20Cient%C3%ADfico/Material%20de%20Apoio/TESE%20sobre%20ECOC%C3%8DDIO.pdf. Acesso em 5 dez. 2023.
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