Opinião

Responsabilização ambiental na atividade de dragagem

Autores

  • Rafael Lima Daudt D'Oliveira

    é advogado procurador do Estado do Rio de Janeiro e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade de Coimbra/Portugal especialista em Direito Ambiental pela PUC/RJ e autor de A simplificação no Direito Administrativo e Ambiental (Lumen Juris 2020).

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  • Simone Cristina Bissoto

    é advogada sócia de BVCL Advogados especialista em Direito Ambiental pela PUC RJ e MBA em ESG pela Trevisan Escola de Negócios.

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10 de agosto de 2024, 13h19

Quando falamos em competitividade para portos e terminais portuários, a dragagem é um fator de extrema importância. Um terminal que investe no aumento do calado e na expansão de sua área navegável consegue receber navios maiores e, por consequência, movimentar mais cargas e aumentar a variedade de produtos movimentados.

Vale do Rio Doce

A dragagem se faz necessária em razão do assoreamento dos canais de navegação. A deposição de sedimentos torna esses canais mais rasos e dificulta, quando não impede, a movimentação de navios com calado maior. Além da atuação de fatores climáticos, é natural que as próprias correntes marítimas tragam mais sedimentos para uma área costeira, ao longo do tempo, causando o assoreamento.

É pelo processo de dragagem que se realiza a remoção desses sedimentos, com a utilização de máquinas e procedimentos apropriados. A dragagem pode servir para manutenção da profundidade, aprofundamento, alargamento ou desobstrução dos canais de navegação e das operações portuárias. Existe, ainda, a dragagem de recuperação ambiental, que visa à remoção de uma camada superficial de sedimento contaminado por compostos orgânicos e inorgânicos, sem que haja a ressuspensão destes contaminantes. Neste caso, são aplicados procedimentos rigorosos tanto à operação de dragagem, quanto ao transporte e manejo do material dragado, assim como de sua disposição.

Para a execução de serviços de dragagem, são necessários elevados recursos financeiros, dragas e equipamentos adequados, e técnicas bastante especializadas. É, portanto, de suma importância o planejamento cuidadoso de todo o processo.

A operação de dragagem submete-se a rígidas normas técnicas e ambientais de controle. A Norman 11/DPC [1] é a regulamentação técnica emitida pela Marinha do Brasil, exclusivamente quanto aos aspectos relativos ao ordenamento do espaço aquaviário e a segurança da navegação, não eximindo o interessado das obrigações perante outros órgãos competentes das esferas federal, estadual e municipal, especialmente o licenciamento ambiental [2].

A Norman-11/DPC exige a apresentação de relevantes informações sobre a área a ser dragada: volume estimado de material recolhido; duração da operação; alteração prevista de profundidade; tipo de equipamento a ser utilizado; destinação do material dragado; sinalização náutica a ser empregada durante o processo, entre outras.

Já a Resolução Conama 454/2012 estabelece as diretrizes gerais e os procedimentos referenciais para o gerenciamento do material a ser dragado em águas sob jurisdição nacional e a sua disposição final. O artigo 3º. da resolução define o conjunto de dados e informações que deverão ser apresentados ao órgão licenciador para caracterizar as intervenções e os processos de dragagem, que envolve o levantamento batimétrico da área a ser dragada, definição das cotas atuais e pretendidas, a delimitação da área a ser dragada e das áreas de disposição propostas, com suas coordenadas georreferenciadas, as características dos equipamentos de dragagem, o volume a ser dragado e o cronograma de execução.

Manutenção em portos

No que se refere aos processos de licenciamento envolvendo dragagens de manutenção em portos, é importante citar a OTN (Orientação Técnica Normativa) nº 1/2022-Comar-CGMac-DILIC [3], que estabeleceu procedimentos técnicos a serem adotados no âmbito do licenciamento ambiental federal (LAF). Desse modo, é comum as licenças ambientais emitidas pelo Ibama exigirem que as dragas utilizadas na atividade sejam dotadas de sistema de rastreamento por satélite e de sistemas de mitigação de efeitos ambientais adversos, tais como válvula verde e defletores (para evitar acidentes envolvendo tartarugas e outros animais marinhos).

Embora imprescindível para a atividade portuária e para a recuperação ambiental, a dragagem, principalmente quando não segue os procedimentos previstos nas normas aplicáveis, pode gerar riscos associados à responsabilidade civil por danos ambientais possivelmente causados durante ou em razão da operação, além da responsabilização administrativa e penal, caso presentes os seus pressupostos.

Os maiores riscos são na esfera da responsabilidade civil ambiental, eis que, com base no entendimento do STJ e dos tribunais, ela é objetiva, solidária, ilimitada, baseada no risco integral e que não admite excludentes de responsabilidade. Para a sua configuração, é necessária uma ação ou omissão (atividade poluidora), o nexo de causalidade entre a conduta comissiva ou omissiva, direta ou indireta, e o resultado danoso e a configuração de dano ambiental.

Spacca

Recentemente, ganhou notoriedade ação civil pública (ACP) movida pelo Ministério Público Federal do Paraná, para reparação dos danos ambientais causados pelo uso excessivo da técnica de dragagem em terminal portuário localizado em Paranaguá, com pedido de indenização por danos coletivos de R$ 119 milhões.

De acordo com o MPF-PR, durante a fase de inquérito, foi constatado o descumprimento do plano de execução de dragagem, desenvolvido por empresa terceirizada, devido à utilização das dragas por tempo superior ao indicado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). A técnica utilizada durante a dragagem — o overflow — exige uma série de testes preliminares de enchimento de cisternas, imprescindíveis para a definição do tempo mais adequado para a aspiração das grandes quantidades de água e sedimentos.

A utilização do overflow, por si só, já costuma causar impactos ou danos ambientais, e, ainda mais por isso, deve ser feita de forma controlada e licenciada. Se utilizada sem critérios e por tempo excessivo, acaba por lançar uma grande quantidade de sedimentos de volta ao oceano, impactando o meio ambiente e prejudicando a própria eficiência da dragagem.

Segundo consta da ACP, a infração teria sido reiterada, pois o descumprimento do plano de dragagem continuou mesmo após notificação do Ibama e teria sido suficiente para causar danos ambientais e ao modo de vida das comunidades tradicionais, que dependem de atividades como a pesca artesanal nas águas do litoral norte do Paraná. Relatos de moradores apontaram que a dragagem do porto teria causado o aprofundamento da vida marinha e, por consequência, a diminuição da quantidade de peixes, siris e outros animais que garantem a sua subsistência.

Diante de tais fatos, o MPF-PR arguiu a responsabilidade civil tanto da empresa contratada quanto da contratante e, ante a impossibilidade da recuperação do meio ambiente afetado, requereu a reparação civil em pecúnia.

Em precedente relevante sobre a responsabilidade civil pela dragagem, o STJ manteve acórdão do TRF-4, que considerou a existência de nexo causal entre a conduta de determinado porto — o qual não era o contratante nem o executor da dragagem que fora terceirizada — por conta da tolerância da dragagem do canal de acesso sem controle dos seus efeitos e a degradação atribuível à atividade portuária. A responsabilidade do porto, de acordo com o STJ, adviria do dever de controle dos efeitos da dragagem, assim como dos princípios da responsabilidade objetiva fundada no risco integral e no dever de indenizar em razão do princípio do poluidor-pagador. [4]

Responsabilidade civil ambiental

A responsabilidade civil ambiental poderia ocorrer, desse modo, pela possibilidade de o dano ambiental recair em componentes do meio ambiente que gozam de proteção especial pela lei, como praias, dunas e vegetação do bioma mata atlântica, sobre espécies da fauna e flora ou, ainda, na comunidade pesqueira, visto que a responsabilidade seria integral daquele que causa danos materiais (inclusive os danos difusos intercorrentes) e morais, individuais e coletivos, causados direta ou, até mesmo, indiretamente ao meio ambiente.

Com efeito, as dunas e a vegetação de restinga são consideradas APPs por força do artigo 4º, VI, do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) e do artigo 3º, IX, da Resolução Conama 303/2002. Assim sendo, seja por ação ou por omissão, os danos causados às dunas e restingas podem ensejar a responsabilização civil ambiental, especialmente por envolver APPs. Há precedentes do STJ que consideram o dano ambiental em APP presumido. [5]

Da mesma forma, os possíveis danos ambientais causados pela atividade de dragagem nas espécies da fauna e flora, sobretudo se ameaçadas de extinção, poderiam ensejar responsabilização civil ambiental. Nesse caso, poderia haver condenação quanto aos danos materiais difusos causados no meio ambiente, os danos materiais difusos intercorrentes devido ao atraso na integral reparação do dano e danos morais coletivos.

Os danos ambientais na comunidade pesqueira também teriam o condão de gerar responsabilidade civil. O STJ possui precedente vinculativo neste sentido. Com efeito, o Tema 439 prevê: “É devida a indenização por dano moral patente o sofrimento intenso do pescador profissional artesanal, causado pela privação das condições de trabalho, em consequência do dano ambiental”.

Noutro precedente, o STJ considerou que são devidos danos materiais, indenizáveis mediante prova efetiva de sua ocorrência, e morais aos pescadores afetados pelo dano ambiental. [6] Neste caso, poder-se-ia cogitar da configuração de: danos materiais individuais causados aos pescadores em razão do dano ambiental, danos morais individuais dos pescadores, especialmente se houver privação das condições de trabalho, em consequência do dano ambiental.

Quanto à responsabilidade administrativa ambiental, em tese, em razão do princípio da intranscendência das penas, apenas a execução direta da dragagem poderia ensejar a aplicação de infrações administrativas ambientais previstas na Lei nº 9.605/98 e tipificadas pelo Decreto Federal nº 6.514/2008, caso a conduta do agente se enquadre num desses tipos.

Se houver danos em APP ou em vegetação nativa objeto de especial proteção, eles poderiam ensejar a aplicação de multa por infração aos artigos 43, 44 e 49 do Decreto federal nº 6.514/2008. Da mesma forma, a possível fatalidade de espécimes da fauna, sobretudo se houver espécie em extinção, poderia ensejar responsabilização administrativa ambiental passível de multa por infração aos artigos 24, 29 e 30 do Decreto Federal nº 6.514/2008.

Caso ocorram acidentes gerando poluição no mar, principalmente envolvendo derramamento de óleo, poderiam restar configuradas as sanções administrativas previstas no artigo 61 Decreto federal nº 6.514/2008 e, ainda, aquelas previstas nos artigos 22, 37 e 44 da Lei nº 9.966/2000. Quanto ao embargo, seria cabível, em tese, para impedir a continuidade do dano ambiental.

Quanto à responsabilização penal ambiental, em tese, em razão do princípio da intranscendência das penas, apenas a execução direta da dragagem poderia ensejar a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, e, em situações específicas, alcançar sócios, acionistas, diretores, administradores, membros dos conselhos de administração, integrantes de órgãos técnicos, auditores, gerentes, prepostos e mandatários, especialmente em caso de omissão, ou na hipótese de terem tido ciência de conduta criminosa em progressão na empresa, sem, contudo, terem impedido sua prática (quando poderiam agir para evitá-la). De todo modo, é necessário que a conduta se enquadre em um dos tipos penais previstos na Lei e que o agente aja com dolo ou culpa (elemento subjetivo).

Em tese, caso haja danos na flora, especialmente se for APP, podem restar configurados os crimes ambientais descritos nos artigos 48, 49 e 50 da Lei nº 9.605/98. Da mesma forma, a fatalidade de espécimes da fauna poderia ensejar responsabilização penal ambiental, especialmente dos crimes ambientais descritos nos artigos 29 e 33 da lei.

Já possíveis acidentes que gerem poluição no mar, principalmente envolvendo derramamento de óleo, poderiam caracterizar o crime de poluição previsto no artigo 54 da Lei nº 9.605/98, caso ocorra a destruição significativa da flora ou venha a impedir o uso público das praias, ou, ainda, aquele previsto no artigo 50.

Em suma, embora imprescindível para as atividades portuárias e para a recuperação ambiental, a dragagem deve ser realizada com cautela, valer-se das melhores técnicas disponíveis, seguir as normas aplicáveis e respeitar as diretrizes fixadas pelo órgão ambiental, a fim de evitar danos ambientais e a responsabilização ambiental civil, administrativa e criminal.

 


[1] NORMAN 11/DPC: emitida pela Marinha do Brasil, Diretoria de Portos e Costas, constitui-se em norma da Autoridade Marítima para obras, dragagens, pesquisa e lavra de minerais sob, sobre e às margens das águas jurisdicionais brasileiras, no que concerne ao ordenamento do espaço aquaviário e à segurança da navegação. As Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) são elaboradas com base na legislação nacional e nas Convenções Internacionais do IMO, ratificadas pelo Brasil. Pela Norman-11/DPC, vê-se que o Capitão dos Portos é quem autoriza a execução das atividades de dragagem de implantação, de manutenção, de mineração e de recuperação ambiental, após a obtenção, pelo interessado, do respectivo licenciamento ambiental junto ao órgão ambiental competente (NORMAM-11/DPC, Capítulo 2, itens 0203 e 0204).

[2] A atividade de dragagem se sujeita ao licenciamento ambiental, nos termos do Anexo 1 da Resolução CONAMA n° 237, de 12 de dezembro de 1997.

[3] A citada OTN buscou padronizar os procedimentos que vêm sendo aplicados no licenciamento de dragagens de manutenção no âmbito do LAF, estabelecendo as informações necessárias a serem apresentadas para subsidiar avaliação da viabilidade ambiental destas atividades, tendo parte do seu conteúdo proveniente do detalhamento da Resolução Conama nº 454/2012, e parte proveniente da literatura técnica especializada, da incorporação de boas práticas internacionais e da experiência adquirida pelo corpo técnico do Ibama nas dragagens atualmente licenciadas.

[4] STJ – REsp 1899893/SC, Segunda Turma, Relator: Ministro Herman Benjamin. Data de Publicação: 16.08.2021.

[5] STJ/ 2ª Turma – REsp 1397722/CE – Rel. Min. Herman Benjamin – Publicação: 26.08.2020.

[6] REsp 1354536 / SE – STJ/ 2ª Seção – Rel. LUIS FELIPE SALOMÃO – j. em 26/03/2014 – DJe DJe 05/05/2014

Autores

  • é advogado, sócio do Departamento de Ambiental e Sustentabilidade do BCVL Advogados, procurador do Estado do Rio de Janeiro, doutorando em Direito Público, mestre em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade de Coimbra, Portugal, especialista em Direito Ambiental, bacharel em Direito pela PUC-Rio e professor de Direito Administrativo e Ambiental da ESAP-Escola Superior da Advocacia Pública.

  • é advogada, sócia de BVCL Advogados, especialista em Direito Ambiental pela PUC RJ e MBA em ESG pela Trevisan Escola de Negócios.

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