Opinião

Responsabilidade ambiental nas estruturas de prestação regionalizada de saneamento

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23 de maio de 2024, 20h56

Um dos temas mais discutidos após a promulgação da Lei nº 14.026/2020, comumente conhecida como novo Marco do Saneamento Básico, é o das estruturas de prestação regionalizada. Não se trata, no entanto, de novidade no ordenamento jurídico, uma vez que tais estruturas já estavam presentes na Lei  nº 11.445/2007 (Lei Nacional de Saneamento Básico) e no Estatuto da Metrópole (Lei nº 13.089/2015). A instituição dessas estruturas, todavia, tornou-se regra com o advento do marco, inclusive sendo importante requisito para o repasse de verbas federais [1].

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Diante dessa união de entes federados para a prestação de um serviço público, importante que se delimite a responsabilidade ambiental de cada ente, bem como do próprio prestador de serviço público (concessionário).

No que se refere à responsabilidade ambiental, tem-se que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente acarretam na chamada tríplice responsabilidade ambiental [2]. Portanto, quando ocorre um dano ambiental, o poluidor, seja pessoa física ou jurídica, está sujeito a sanções penais, administrativas e civis. É importante destacar que qualquer atividade, por mais simples que seja, pode ter impactos no meio ambiente. Assim, o dano ao meio ambiente se materializa quando atingimos um determinado nível de impacto, que ultrapassa os limites de tolerância estabelecidos na legislação.

É essencial ressaltar que nem toda infração administrativa ambiental resulta em danos, e que os danos ambientais podem decorrer até mesmo de atividades legalmente permitidas. Por exemplo, um empreendedor que opera dentro dos limites de sua licença ainda pode ser responsabilizado se o meio ambiente não suportar os impactos da atividade. Nesse sentido, é adotada a teoria do risco da atividade, o que exclui a possibilidade de alegar excludentes de responsabilidade.

Da disposição constitucional (artigo 225), deriva-se outra característica da tutela ambiental, que é a sua aplicação tanto ao agente público quanto ao privado, como um dever fundamental em preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Porém, antes mesmo da Constituição, essa responsabilidade compartilhada já era prevista no ordenamento jurídico brasileiro, em decorrência de sua disposição na Política Nacional do Meio Ambiente — PNMA (Lei nº 6.938/1981) [3].

Dessa forma, como forma de delimitação do tema, considerando a existência de diversos entes inseridos numa mesma estrutura de prestação regionalizada (município, estado, consórcio, concessionário etc.), discute-se, pois, a responsabilidade no âmbito civil e administrativo.

Da prestação regionalizada e do titular do serviço público

A prestação regionalizada, prática já consolidada no saneamento básico brasileiro, proporciona ganhos de escala que viabilizem a ampliação, a melhoria das condições da prestação dos serviços ou, ainda, a manutenção, de maneira permanente ou transitória, de subsídios cruzados que os sustentem [4].

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O texto da Lei de Saneamento, na redação do marco, afirma que as estruturas de prestação regionalizada seriam apenas as regiões metropolitanas, as aglomerações urbanas e as microrregiões (artigo 25, § 3º, da Constituição), e, doutro lado, os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre entes federados [5], desde que reconhecidos como unidade regional de saneamento ou como bloco de referência. Já para os casos de manejo de resíduos sólidos urbanos, os consórcios também estão inseridos nas chamadas estruturas de prestação regionalizada.

A lei, já com as alterações do novo marco, seguiu o mandamento constitucional ao prever que a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico “poderá ser realizado também por gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação” [6], não restando dúvidas que a titularidade será então exercida pela estrutura de prestação regionalizada.

Já no que tangem as especificidades inerentes às estruturas de microrregião, aglomerações urbanas e regiões metropolitanas, o entendimento sobre a titularidade decorre do Estatuto da Metrópole, bem como de julgado paradigma do STF (ADI 1.842/RJ), onde restou claro o entendimento de que tais estruturas exercem a titularidade (de forma colegiada) dos serviços públicos de interesse comum. Tal questão da titularidade é importante para que não restem questionamentos ao se tratar, especificamente, sobre as responsabilidades civil e administrativa em caso de dano ambiental.

Responsabilidade civil ambiental

Inicialmente, é importante, uma vez mais, deixar claro que a responsabilidade ambiental aqui discutida será aquela em decorrência de um dano ambiental. Ou seja, a partir de um dano lesivo ao meio ambiente, há a responsabilidade em repará-lo.

As principais características da responsabilidade civil ambiental estão presentes na CF/88 e na PNMA [7], sendo que ela será:

  • Objetiva, ou seja, independente de culpa, e;
  • Solidária, uma vez que se aplica a entes públicos e privados.

Sobre a responsabilidade civil por danos ambientais ser objetiva, se dá, pois, fundada na teoria do risco integral, onde o dever de indenizar está sempre presente pelo simples fato de constatar atividade potencialmente danosa ao meio ambiente, sendo irrelevantes as excludentes de responsabilidade [8].

Ou seja, quando ocorre dano ambiental e, por conseguinte degradação ao bem jurídico “recurso ambiental”, basta identificar o dano ocasionado, seu autor e o nexo causal entre a ação e a lesão. Não interessando, como visto, se o autor do dano estava pautando sua conduta dentro dos padrões ambientais estabelecidos pelos órgãos de gestão ambiental; se, por exemplo, havia licença ambiental para operar ou adotou medidas mitigadoras além das recomendadas, Nada deverá excluir sua responsabilidade, pois o risco da atividade conduz a imputação do dever de reparar o meio ambiente.

De outro lado, a responsabilidade civil é de caráter solidário, mas a sua execução se dá de forma subsidiária. Tal disposição decorre de súmula específica do STJ:

SÚMULA nº 652 STJ

A responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária.

Tal previsão é muito importante para uma estrutura de prestação regionalizada, uma vez que se trata de um arranjo com diversos entes/atores, envolvendo a figura do concessionário (prestador direto do serviço público) e dos titulares (municípios) representados pela estrutura regionalizada, na forma de gestão associada.

Na prática, em caso de dano ambiental, o primeiro ente a ser responsabilizado será o concessionário (devedor principal) e, na impossibilidade de fazê-lo, então o ente da estrutura regionalizada e, se ainda assim for impossível a execução, todos os municípios que o compõem, de forma solidária (devedor reserva).

Por exemplo, em arranjo de Consórcio Intermunicipal de Resíduos Sólidos Urbanos, após ocorrência de um dano ambiental, pode haver a promoção de ação civil pública por parte do Ministério Público estadual (principal competente para tanto), sendo que, em caso de procedência da ação, a indenização pelo dano ambiental deverá ser suportada, inicialmente, pelo concessionário. Na impossibilidade e/ou incapacidade do concessionário ressarcir o dano, o consórcio será o responsável. Se ainda persistir a incapacidade, então os municípios que compõem o consórcio serão os responsáveis.

Veja que da súmula do STJ, decorrem dois saberes importantes para o projeto:

  • O “dever-poder de controle e fiscalização ambiental”, e;
  • O afastamento de onerosidade direta ao ente público.

Em relação ao dever-poder de controle e fiscalização ambiental, é de se destacar que, a partir da leitura das disposições do ordenamento jurídico brasileiro, é dever do poder público preservar o meio ambiente, bem como garantir meios para que assim o seja. Nesse sentido, a atuação preventiva dos entes públicos, seja por meio de fiscalização ou outros meios pertinentes, é de suma importância para que danos ambientais não ocorram. O entendimento para tanto é que, em caso de omissão do poder público, abdicando seu dever de fiscalização, ele deve ser instado a responder solidariamente pela reparação ambiental.

De outro lado, essa previsão sumulada, também propõe um certo “conforto” ao ente público, uma vez que, ao se conceder um serviço público de extrema importância e potencialmente poluidor, um ato da concessionária na execução do serviço que gere dano ambiental, poderia evitar que a estrutura regionalizada e municípios tenham que executar diretamente e de forma solidária o ressarcimento/recomposição do dano ambiental ocorrido. Isso pois, se assim fosse, poderia afastar, inclusive, a responsabilidade da concessionária sobre o dano, onerando demasiadamente o poder público e elevando o risco de tais projetos.

Responsabilidade administrativa ambiental

Como visto anteriormente, a CF/88 dispõe que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções administrativas. Trata-se de tutela administrativa que tem por objetivo fazer com que as infrações ambientais sejam apuradas e sancionadas diretamente pela administração pública, sem necessidade, em regra, de intervenção do Poder Judiciário. Ela tem, portanto, caráter sancionatório e não reparatório.

A tutela administrativa ambiental, que representa a atuação direta do Poder Executivo em prol dos interesses públicos ambientais, seja mediante provocação, seja de ofício, tem previsão legal nos artigos 70 a 76 da Lei nº 9.605/1998, os quais dispõem sobre as infrações, o procedimento e as sanções administrativas, sem prejuízo de outras leis que disciplinem a tutela administrativa ambiental nas respectivas áreas de atuação.

Assim, nota-se que, no caso da responsabilidade administrativa, é necessária uma ação ou omissão que seja contrária ao ordenamento jurídico. Dessa forma, diferentemente da responsabilidade civil, na responsabilidade administrativa não há dispensa da ilicitude da conduta para que se configure a infração administrativa (além de ser pessoal), pois é fundada na violação de normas de proteção ambiental. Havendo conduta lesiva ao meio ambiente e contrária às regras ambientais, há infração administrativa ambiental.

A partir de uma infração administrativa ambiental, decorre a imposição da sanção correspondente, podendo ser aplicadas duas ou mais sanções de forma simultânea nos termos do que determina o parágrafo 1º do artigo 70 da lei mencionada. Assim, é tanto possível a aplicação simultânea e cumulativa de mais de uma sanção, como sequencialmente, na progressão das condutas e perpetuação da lesão ambiental, não sendo necessária a aplicação anterior de sanção menos severa para ser possível a aplicação de uma mais severa.

Com os ensinamentos acima, temos que a responsabilidade administrativa ambiental é subjetiva[9], uma vez que demanda uma conduta (seja ativa ou omissiva) diretamente contrária ao ordenamento jurídico ambiental. Em outras palavras, para que haja responsabilização administrativa, é necessário que exista dolo ou culpa na conduta do autuado.

Levando ao caso concreto das estruturas de prestação regionalizada, são duas as questões inerentes à responsabilidade administrativa ambiental:

  • Concessionário responsável por suas ações (no exercício da atividade), e;
  • Poder público responsável por suas omissões (no não exercício do poder de polícia).

A partir do momento em que se está diante de uma responsabilidade subjetiva, que demanda uma conduta, certo é que esta conduta (ativa ou omissiva) decorre do exercício de alguma atividade. Por conta disso que a concessionária, ao estar exercendo este serviço (mesmo que no modelo de concessão), será a responsável em caso de ação ou omissão que cause algum dano ambiental. Por exemplo, no serviço público de manejo de resíduos sólidos urbano, na fase de disposição final, em que o aterro causa dano ambiental por má execução de obra ou, até mesmo, por não adotar precauções de ordem operacional. A infração administrativa decorrente desta conduta gerará responsabilidade administrativa diretamente à concessionária.

De outro lado, como dito anteriormente, o poder público tem o poder-dever de controle e fiscalização ambiental, de forma que o seu não exercício configura uma conduta omissiva. Tal apontamento encontra guarida, inclusive, nos precedentes [10] que levaram à formulação da Súmula nº 652 do STJ, já citada anteriormente.

Portanto, tem-se que, mesmo com a possibilidade de aplicação de infração administrativa ambiental diretamente à concessionária, deve restar, de igual forma, comprovado que o poder público agiu no seu poder-dever de controle e fiscalização ambiental, sob pena de ser considerado co-responsável na infração impetrada.

Conclusão

O tema da responsabilidade ambiental, tanto na esfera cível quanto na administrativa, demonstra ser de grande importância para as chamadas estruturas de prestação regionalizada de saneamento básico, uma vez que, além de envolver vários municípios e atores diversos, também abrange uma grande população, principalmente.

Em conclusão, temos que:

  • A responsabilidade civil ambiental é de caráter objetivo, independente de culpa, com responsabilização solidária, porém de execução subsidiária;
  • A responsabilidade administrativa ambiental é de caráter subjetivo, demandando conduta ativa ou omissiva (do privado e do poder público), e demonstração de culpa.

Assim, como o tema da regionalização do saneamento básico ainda é recente no ordenamento jurídico brasileiro, inovações e previsões legislativas específicas são esperadas, bem como definições regulatórias. A se espelhar pelo nível de investimento esperado para o setor, é imprescindível que tais temas sejam abordados de maneira séria e clara, garantindo não apenas a segurança jurídica desses arranjos, mas, principalmente, a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

 


[1] Vide Art. 50 do NMSB.

[2] Vide Art. 225 da CF/88.

[3] Vide Arts. 2º e 3º da PNMA.

[4] Vide Art. 2º, inciso XVI da LNSB.

[5] Vide Art. 241 da CF/88.

[6] Vide Art. 8º do NMSB.

[7] Vide Art. 225 CF/88 e art. 3º, inciso IV da PNMA.

[8] Vide PNMA, Art. 14, §1º.

[9] Conforme entendimento da considerando o entendimento da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.318.051, no qual restou assentado o caráter subjetivo da responsabilidade administrativa ambiental mediante comprovação de dolo ou culpa.

[10] STJ. Recurso Especial nº 1.071.741-SP (2008/0146043-5)

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