Opinião

O problema é a litigância abusiva reversa, não a abusiva

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  • é advogado professor doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP (2020) pós-doutorando pela USP membro titular efetivo da Academia de Letras de Londrina (PR) mestre em Direito pela UEL (linha de Processo Civil) pós-graduado em Processo Civil (2009) pós-graduado em Filosofia Jurídica e Política pela UEL (2011) coordenador da Comissão de Processo Constitucional da OAB Londrina membro do IBPD e IAP conselheiro da OAB Londrina e editor-chefe da Editora Thoth.

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1 de maio de 2025, 6h03

Em alguns momentos, conforme tenho observado em determinadas publicações, há confusão entre litigiosidades ilícitas, litigiosidades repetitivas e litigiosidades abusivas. E, em quase todos os casos, esquece-se da litigiosidade abusiva reversa — esta, sim, a mais preocupante e danosa para o Poder Judiciário, como passo a fundamentar a seguir.

Qual é o impacto na Justiça causado pelos grandes litigantes? Em rápida pesquisa baseada em dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [1], constata-se que os números são alarmantes. Alguns exemplos: “Bancos e empresas de telefonia representam 95% do total de processos dos 100 maiores litigantes nacionais; A Caixa Econômica Federal, juntamente com os grupos Itaú e Bradesco, detém mais da metade dos processos do setor bancário entre os maiores litigantes; No âmbito da Justiça Estadual, bancos e telefonia concentram 94% do total de ações entre os 100 maiores litigantes; O setor bancário representa 54% dos processos atribuídos aos 100 maiores litigantes da Justiça Estadual”.

Publico este artigo no contexto da recente conclusão (em 13/3/2025) do julgamento do Tema 1.198 (REsp 2.021.665/MS) pelo Superior Tribunal de Justiça, que discutiu a possibilidade de os juízes exigirem documentos adicionais para a petição inicial nos casos de suposta “litigância abusiva”. O STJ decidiu que o magistrado pode, diante de elementos concretos, solicitar tais documentos para melhor instrução da causa.

Essa decisão conferiu grande margem de discricionariedade ao julgador, o que representa um perigo ao exercício da advocacia — já sendo possível constatar abusos cometidos tanto por advogados quanto por julgadores [2]. Não é esse, porém, o foco deste artigo. Meu objetivo aqui é destacar que o verdadeiro problema é outro: a litigância abusiva reversa.

A litigiosidade repetitiva é, inegavelmente, uma característica marcante do Judiciário brasileiro — como demonstram o IRDR (CPC, artigo 976) e o recurso repetitivo (CPC, artigo 1.036). Tais litígios, em regra, não decorrem de conduta de advogados, mas sim de desídia de grandes litigantes. E o que se faz para enfrentá-los? Pouco, ou quase nada.

Durante o julgamento do Tema 1.198, o ministro Herman Benjamin alertou para o risco da litigância predatória reversa (posteriormente denominada de litigância abusiva reversa):

“É importante que nós alertamos a doutrina, e os juízes, que existe a litigância predatória reversa. Grandes litigantes, empresas normalmente, que se recusam a cumprir decisões judiciais, súmulas, repetitivos, texto expresso de lei. Quando são chamados, não mandam representante – ou então, mandam sem poderes para transigir, nos casos dos órgãos administrativos, que fazem a mediação. E nós estamos, muitas vezes, falando de 200 mil, 500 mil litígios provocados por um comportamento absolutamente predatório por parte de um dos agentes econômicos, ou do próprio Estado – porque o próprio Estado pode praticar, e pratica, comportamentos predatórios” (grifo nosso).

Este é o ponto central do presente artigo: os grandes litigantes são os principais responsáveis pela litigiosidade massiva no Brasil. O próprio ministro Herman Benjamin chamou atenção para esse fenômeno, que desafia a efetividade do sistema judicial.

Em pesquisa empírica recente que realizei no STJ e no STF [3], uma de minhas principais indagações foi verificar se existia algum mecanismo voltado ao monitoramento e prevenção da conduta reiterada desses grandes litigantes. A conclusão foi preocupante: há pouquíssimo ou nenhum esforço estruturado nesse sentido.

Spacca

Trata-se de uma questão de enorme impacto para o sistema judicial, pois esses litígios respondem por significativa parte do acervo processual, exigindo recursos financeiros e estruturais, além de comprometerem a celeridade e a efetividade de milhares de outras demandas.

Retirando os processos penais, observa-se que, no STJ, a maior incidência recai sobre “contratos bancários (8.147)”, sendo que instituições públicas lideram como maiores litigantes. Um exemplo citado é o INSS, com 22.203 ações ao longo de 2023.

Mas como monitoramos esses grandes litigantes? Qual o impacto real, em termos de custos e estrutura, no Judiciário? Aparentemente, ainda se destina muito pouco esforço a esses estudos, embora se trate, possivelmente, de um dos principais desafios contemporâneos da Justiça brasileira.

Principal risco

O verdadeiro problema (ou maior problema) não está na litigância abusiva de poucos, que deve, sim, ser rigorosamente combatida por meio dos mecanismos legais, inclusive com eventual responsabilização penal e ética.

Recentemente, também observei confusões conceituais em matérias e notícias que associam [4] “litigiosidade abusiva” a “litigiosidade ilícita” — temas distintos. O ilícito deve ser apurado pelas autoridades competentes; a litigância abusiva, combatida com critérios concretos e bem definidos.

O precedente do Tema 1.198 poderá, se mal interpretado, fornecer um instrumento perigoso aos grandes litigantes [5]. A desídia desses agentes gera litigiosidade repetitiva, e depois o próprio causador dessa repetição acusa o advogado que ajuíza a ação de litigância abusiva. Ora, como vimos desde o início deste artigo, é fundamental distinguir a litigância abusiva da litigância repetitiva.

Além disso, sob o pretexto de coibir abusos, tem-se observado decisões que exigem emendas à petição inicial [6] com documentos não previstos em lei, especialmente em demandas consumeristas — invertendo a lógica do sistema processual e presumindo má-fé em ações legítimas.

Embora o tema seja complexo, o recorte aqui proposto é direto: o Judiciário está combatendo adequadamente os grandes litigantes? Há centros de inteligência voltados ao estudo desse comportamento nocivo? Há estimativas do impacto financeiro da litigância predatória reversa?

Como já afirmado, o maior risco é permitir o uso deturpado de um precedente qualificado, o que termina por confundir litigância abusiva com repetitiva, dando margem para que os verdadeiros causadores da litigiosidade imputem, indevidamente, condutas abusivas a terceiros: afirmar que litigiosidade repetitiva é litigiosidade abusiva.

Para a litigância ilícita, as penalidades legais. Para a litigância abusiva, a devida investigação e responsabilização. Para as demandas repetitivas legítimas, que haja livre acesso à Justiça, sem obstáculos indevidos. E para os grandes litigantes — possivelmente os maiores causadores de impacto ao Judiciário —, que haja estudo, prevenção e sanção efetiva, tanto na esfera administrativa quanto judicial.

 


[1] Fonte aqui.

[2] Exemplo amplamente divulgado aqui.

[3] Apresentei o resultado em palestras e eventos. Ao final depois sintetizei a pesquisa e publiquei nesta ConJur, aqui

[4] Como exemplo, título da reportagem “Magistrada observou indícios de litigância predatória e multou em um salário-mínimo o advogado da autora.” aqui

[5] Exemplo amplamente divulgado aqui

[6] Conclusão, por exemplo, vislumbrada por muitos palestrantes em evento sobre o tema promovido no dia 27 de março de 2025, em Brasília, no Auditório da OAB/DF, Congresso Pré-XIV FPPC.

Autores

  • é advogado e professor, doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP (2020), pós-doutorando pela USP, membro titular efetivo da Academia de Letras de Londrina, mestre em Direito pela UEL (linha de Processo Civil), pós-graduado em Processo Civil (2009) e em Filosofia Jurídica e Política pela UEL (2011), ex-coordenador e fundador da Comissão de Processo Civil da OAB-Londrina (PR), ex-coordenador da pós-graduação em Processo Civil do IDCC Londrina (2018-2022), membro do IBPD, IAP e IPDP, conselheiro da OAB Londrina e editor chefe da Editora Thoth.

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