Responsabilização de gestor por erro grosseiro é incentivo à eficiência
9 de julho de 2024, 17h25
No final do último mês de março, chegou ao final o julgamento das ADIs 6.421 e 6.428, que discutiam a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), na redação dada pela Lei 13.655/2018, artigos 12 e 14 do Decreto nº 9.830/2019 e a Medida Provisória nº 966/2020.
Referidas ADIs propostas, no contexto da pandemia de Covid-19, respectivamente pela Rede Sustentabilidade e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), tinham como principal argumento a suposta violação do artigo 37, § 6º, CF [1].
Em razão da relevância do tema em debate – a limitação da responsabilidade do gestor público – o julgado acabou contando com a participação de alguns importantes amici curiae, o Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e a Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) [2], trazendo argumentos contrários a declaração de inconstitucionalidade.
A participação do IBDA, capitaneada pelos professores Cristiana Fortini e Maurício Zochun, contou com a realização de sustentação oral, por ocasião do julgamento no Plenário Virtual da Corte, pelo professor Rodrigo Valgas, assim como a entrega de parecer elaborado pela sua Comissão de Estudos sobre a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro [3], tendo como principais argumentos:
Princípio da Legalidade e proporcionalidade: O princípio da legalidade é uma pedra angular do Estado de Direito, garantindo que ninguém seja responsabilizado por condutas não previstas em lei. Responsabilizar o gestor apenas por dolo ou erro grosseiro está em conformidade com esse princípio, pois exige que haja uma clara violação intencional ou negligência grave para que a responsabilização ocorra. Isso evita a imposição de penalidades excessivas ou injustas, garantindo a proporcionalidade da punição em relação à gravidade da conduta.
Estímulo à atuação administrativa eficiente: a responsabilidade do gestor apenas por dolo ou erro grosseiro incentiva uma atuação mais proativa e eficiente por parte dos administradores públicos, já que a responsabilidade fosse ampliada para incluir negligência simples, por exemplo, muitos gestores poderiam se sentir inibidos em tomar decisões necessárias, temendo possíveis consequências jurídicas. Com a restrição da responsabilidade a condutas mais graves, o gestor tem maior margem de manobra para atuar em prol do interesse público sem receios excessivos;
Eficiência e desenvolvimento administrativo: a restrição da responsabilidade a dolo ou erro grosseiro contribui para a eficiência administrativa e o desenvolvimento institucional. Gestores públicos desempenham funções complexas e, ocasionalmente, podem enfrentar situações ambíguas ou incertas. Ao permitir que atuem com maior liberdade, desde que ajam de boa-fé e sem negligência grave, pode-se alcançar resultados mais eficazes e inovadores na administração pública;
Segurança jurídica: a clara definição de quais condutas são passíveis de responsabilização – dolo ou erro grosseiro – proporciona maior segurança jurídica aos gestores públicos. Eles podem orientar suas ações com base em critérios mais objetivos, evitando interpretações subjetivas que poderiam surgir se a responsabilidade fosse estendida a outros graus de negligência. Isso também evita litígios desnecessários e promove uma administração mais confiável e previsível;
Recomendações dos órgãos de controle externo: nos últimos anos foram editadas diversas recomendações de órgãos de controle (CNJ, CNMP e TCU) com explícita menção à Lindb, demonstrando sua compatibilidade com o texto constitucional.
Normas infraconstitucionais
O artigo 28 da Lindb, em face da falibilidade do ser humano, declara que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”, nada mais tendo feito do que reconhecer um “espaço de tolerância jurídica ao erro” por parte de gestores públicos [4].
Sendo importante ressaltar que a limitação da responsabilidade do gestor público por norma infraconstitucional não é nenhuma novidade, pois outros dispositivos legais já traziam tal orientação. O Código de Processo Civil de 2015, por exemplo, traz diversos dispositivos com restrições à responsabilidade pessoal de certos agentes públicos: magistrados (artigo 143) [5], integrantes do Ministério Público (artigo 181) [6], membros da Advocacia Pública (artigo 184) [7], membros da Defensoria Pública (artigo 187) [8]. Nada obstante, não houve declaração de inconstitucionalidade de tais dispositivos legais.

O artigo 143, CPC, por exemplo [9], refere que “o juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando: I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude”. Ou seja, referido artigo impõe restrição à responsabilidade muito superior à fixada no artigo 28 da Lindb, “pois sequer a culpa em quaisquer de seus graus pode gerar responsabilidade pessoal do magistrado, mas apenas dolo ou fraude, que têm por premissa a intenção em causar dano” [10].
Outro exemplo que poderia ser dado é o da Lei 12.527/2011 (mais conhecida como Lei de Acesso à Informação). O citado diploma, ao tratar da responsabilidade do agente público civil ou militar, elege como conduta ilícita suscetível de responsabilização: “agir com dolo ou má-fé na análise das solicitações de acesso à informação” (artigo 32, III).
Culpa grave
Demais disso, a graduação da culpa, de longa data, é adotada pela doutrina pátria, distinguindo-a em grave, leve e levíssima [11], sendo o erro grosseiro equivalente à culpa grave.[12]. No Código Civil, inclusive, a graduação da culpa encontra previsão expressa no parágrafo único do artigo 944: “Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”.
O artigo 37, § 6º, CF/88, por sua vez, segundo Gustavo Binenbojm e André Cyrino, ao se referir à culpa, “não fechou questão sobre o grau ou intensidade de sua incidência para a configuração da responsabilidade do agente público. Assim, logo à partida, a crítica adota uma versão de maximalismo constitucional incompatível tanto com a letra expressa da Lei Maior, quanto com uma visão aberta e democrática do constitucionalismo. Por evidente, não existe uma interdição a que o legislador democrático densifique o conceito de culpa ou adote uma certa modalidade ou intensidade para que a responsabilidade reste configurada” [13].
Resposta ao ‘apagão das canetas’
O artigo 28 da Lindb veio, na verdade, suprir lacuna legislativa, tendo em vista a ausência de norma protetiva do agente público honesto que porventura cometa algum erro. O sistema normativo prevê diversos instrumentos legais para lidar com o gestor público desonesto (v. g., Lei de Improbidade Administrativa), mas não havia norma para disciplinar, em caráter geral, o erro do gestor de boa-fé. Aliás, na linha da tese firmada pelo julgado, havia violação a proporcionalidade, em especial na sua vertente de vedação à proteção insuficiente.
A Lei 13.655/2018 é uma resposta legislativa para enfrentar o chamado “apagão das canetas” e o “direito administrativo do medo” [14] e tem como uma de suas marcas o fortalecimento do dever de motivação. Daqui para a frente, por expressa exigência legal, decisões que venham sancionar o gestor público reclamam considerar as “circunstâncias fáticas, o grau de responsabilidade com que o administrador decidiu, a realidade que estava diante quando da decisão etc.” [15], em razão do dever de contextualização, previsto no artigo 22 da Lindb [16].
Mais: a partir do artigo 28 da Lindb, a responsabilidade pessoal do agente público fica limitada a situações em que houver a prática de um ato intencional (dolo) ou um erro de natureza grave (grosseiro).[17] Nesse sentido, o Decreto 9.830/2019, declara que “considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia” (ar. 12, § 1º).
Abordagem é adequada
Aliás, o Supremo Tribunal Federal, em julgado de 2007, quando tratou de analisar a responsabilidade de um parecerista, empregou expressamente o termo “erro grosseiro”: “É lícito concluir que é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa” [18]. Ou seja, não há nenhuma novidade na utilização da expressão erro grosseiro.
O STF ao concluir o julgamento das ADIs 6.421 e 6.428, seguindo o voto condutor do julgado da lavra do ministro Luís Roberto Barroso, fixou a seguinte tese: “1. Compete ao legislador ordinário dimensionar o conceito de culpa previsto no art. 37, § 6º, da CF, respeitado o princípio da proporcionalidade, em especial na sua vertente de vedação à proteção insuficiente; 2. Estão abrangidas pela ideia de erro grosseiro as noções de imprudência, negligência e imperícia, quando efetivamente graves”.
Em suma, a limitação da responsabilidade do gestor apenas por dolo ou erro grosseiro (artigo 28 da Lindb) não desborda dos limites da liberdade de conformação normativa deferida ao legislador, mostrando-se, na verdade, uma abordagem constitucionalmente adequada, pois preserva princípios fundamentais do Estado de Direito, incentiva a atuação administrativa responsável, eficiente e promove segurança jurídica.
Referências
BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Art. 28 da LINDB – A cláusula geral do erro administrativo. Revista de direito administrativo, [S. l.], p. 203–224, 2018. DOI: 10.12660/rda.v0.2018.77655. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/77655. Acesso em: 19 jun. 2024.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. 1ª ed. Editora GZ: Rio de Janeiro, 2019.
HEINEN, Juliano. Comentários ao art. 28 da LINDB. In: DUQUE, Marcelo Schenk; RAMOS, Rafael. (Org.). Segurança jurídica na aplicação do direito público. Comentários à Lei nº 13.655/18. 1ed.Salvador: Juspodivm, 2019, p. 161-176.
MENDONÇA, José Vicente Santos de; ALBUQUERQUE, Lucca Fernardes. Art. 22 da LINDB: decifrando o dever de contextualização. In: Ramos, Rafael (Coord.). Comentários à Nova LINDB: Lei 13.655/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 67-80.
MIRAREM, Bruno. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito Administrativo do Medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. São Paulo: RT, 2020.
SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Art. 28 da LINDB: a cláusula de proteção decisória do agente público no direito brasileiro. In: Ramos, Rafael (Coord.). Comentários à Nova LINDB: Lei 13.655/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 161-180.
[1] A análise da decisão do STF deixará de lado a alegação da inconstitucionalidade da MP 966, tendo em vista que a medida provisória questionada (MP nº 966/2020) perdeu a eficácia em decorrência do término do prazo para sua votação pelo Congresso Nacional.
[2] A Manifestação da SBDP foi subscrita por Carlos Ari Sundfeld, Juliana Palma, André Rosilho, entre outros.
[3] Composta pelos seguintes membros: Rafael Ramos (Presidente), Alessandra Wegermann, Alice Voronoff, André Cyrino, André J. Rosilho, Camila Morais Azevedo, Daniela Zago, Eurico Bitencourt, Juliano Heinen, Luís Manoel Borges do Vale, Patrícia Baptista, Phillip Gil França, Raquel Carvalho e Vladimir da Rocha França.
[4] DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. 1ª ed. Editora GZ: Rio de Janeiro, 2019, p. 2.
[5] “Art. 143. O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando: I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; (…)”.
[6] “Art. 181. O membro do Ministério Público será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude no exercício de suas funções”.
[7] “Art. 184. O membro da Advocacia Pública será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude no exercício de suas funções”.
[8] “Art. 187. O membro da Defensoria Pública será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude no exercício de suas funções”.
[9] Diversos outros exemplos poderiam ser dados: art. 32, III, Lei 12.527/2011, art. 38, § 2º, Lei nº 13.327/2016, art. 40, Lei nº 13.140/2015 etc.
[10] SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Art. 28 da LINDB: a cláusula da proteção decisória do agente público no direito brasileiro. In: RAMOS, Rafael (Coordenador). Comentários à nova LINDB: Lei 13.655/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 164.
[11] Ver, por exemplo, CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 61/62; MIGAREM, Bruno. Responsabilidade Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 141-143.
[12] Na 1ª Jornada de Direito Administrativo promovida pelo IBDA, realizada em 2019 na cidade de Tiradentes (MG), que teve por tema a “LINDB e seus impactos no Direito Administrativo”, foi aprovado o seguinte enunciado: “O art. 28 da LINDB, para os casos por ele especificados (decisões e opiniões técnicas) disciplinou o §6º do artigo 37 da Constituição, passando a exigir dolo ou erro grosseiro (culpa grave) também para fins da responsabilidade regressiva do agente público.” Disponível em: https://ibda.com.br/wp-content/uploads/2023/06/Enunciados-IBDA-publicacao-Forum-2.pdf.
[13] BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Art. 28 da LINDB – A cláusula geral do erro administrativo. Revista de Direito Administrativo, 203–224. https://doi.org/10.12660/rda.v0.2018.77655.
[14] Ver, por todos, SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito Administrativo do Medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. São Paulo: RT, 2020.
[15] HEINEN, Juliano. Comentários ao art. 28 da LINDB. In: DUQUE, Marcelo Schenk; RAMOS, Rafael. (Org.). Segurança jurídica na aplicação do direito público. Comentários à Lei nº 13.655/18. 1ed.Salvador: Juspodivm, 2019, p. 166.
[16] Ver MENDONÇA, José Vicente Santos de; ALBUQUERQUE, Lucca Fernardes. Art. 22 da LINDB: decifrando o dever de contextualização. In: Ramos, Rafael (Coord.). Comentários à Nova LINDB: Lei 13.655/2018. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 67-80.
[17] DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. 1ª ed. Editora GZ: Rio de Janeiro, 2019, p. 93.
[18] MS 24631, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 09-08-2007.
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