O humanismo penal do papa Francisco
1 de maio de 2025, 6h38
O mundo revisitou nos últimos dias diversos acontecimentos, ideias e histórias do papa Francisco, morto no feriado de Páscoa. Dentre todas não passou desapercebido uma característica pessoal do pontífice: a sensibilidade diante de todo e qualquer tipo de sofrimento.

Esse apanágio permeia os temas mais importantes da humanidade que foram objetos de reflexões cuidadosas: totalitarismo financeiro, crise climática, imigração, justiça social, igualdade, pobreza, marginalização, povos indígenas, desinformação por redes sociais, abusos sexuais, fraternidade, liberdade religiosa, guerras, encarceramento penal massivo, funções da pena e missão do direito penal. Nada, absolutamente nada, passou superficialmente pela mente privilegiada dele.
A insistência no princípio da dignidade humana norteou as preocupações na questão penal. O postulado kantiano de que o homem não pode ser instrumentalizado, porque possui dignidade própria que impede qualquer tipo de utilitarismo, foi defendido corretamente sem cair na armadilha do retributivíssimo moralista.
Aliás, apesar da força religiosa histórica do fundamento absoluto da pena como retribuição da culpabilidade, o repúdio à incitação da vingança parte também da concepção de dignidade humana, que geralmente é usado para impedir instrumentalizações contra os fins preventivos da pena. Isso reafirmou o postulado clássico de Beccaria, segundo o qual “não existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em alguns casos o homem deixe de ser pessoa e se torne coisa” (XX, Violências). [1]
As condições degradantes de vida no cárcere foram denunciadas a partir do contato direto com a realidade (realismo), é dizer, sem intermediação do idealismo penal. No discurso do Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, de 15 de novembro de 2019, isso ficou claro: “O direito penal, também nas suas correntes normativistas, não pode prescindir de dados elementares da realidade, como os que manifestam a operacionalidade concreta da função sancionatória. Qualquer redução dessa realidade, longe de ser uma virtude técnica, ajuda a esconder as caraterísticas mais autoritárias do exercício do poder.”
Lembrança mesmo em estado de saúde ruim
Por isso, tal como descreveu em 1781 Edmund Burke sobre os feitos de John Howard, o pai da reforma do sistema penitenciário, o papa Francisco “mergulhou nas profundezas das masmorras, mergulhou na infeção dos hospitais, inspecionou as mansões da tristeza e da dor, mediu as dimensões da miséria, da depressão e do desprezo, lembrou-se dos esquecidos, assistiu os negligenciados, visitou os abandonados, comparou e coligiu os aflitos de todos os países”.
Não foi por outra razão que os prisioneiros estocados em cavernas modernas foram lembrados mesmo quando o estado de saúde dele não era estável. Nos últimos dias de sua vida, após sair da Policlínica Agostino Gemelli, em Roma, apesar das dificuldades físicas, os pensamentos estavam voltados aos sofrimentos dos presos. Ele não só visitou a prisão Regina Coeli de Roma, conforme revelou o jornal italiano La Repubblica, como também doou 200 mil euros ao centro penitenciário de menores Casal del Marmo de Roma.
O monsenhor Benoni Ambarus recordou que a relação entre o papa e a população carcerária não é nova: “Até poucos dias atrás, o Santo Padre estava arrastando seu corpo para o Regina Coeli, para gritar ao mundo, com toda a sua força, a necessidade de prestar atenção aos prisioneiros. Ele doou seus últimos bens a eles, 200.000 euros de sua conta pessoal”. “Quando conversamos sobre isso, eu o vi perturbado, ele sofria pensando nas condições das prisões.” [2]

Outros momentos foram marcantes para todos aqueles que se interessam pela questão penal: o discurso à delegação da Associação Internacional de Direito Penal, de 23 de outubro de 2014, alertou-se para um fenômeno comum das sociedades modernas: pânicos morais criam, de forma estereotipada, os próprios responsáveis por supostos danos sociais, quase sempre concentrados na vítimas do processo de marginalização social. Sobre isso disse ele:
“A realidade mostra que a existência de instrumentos legais e políticos necessários para enfrentar e resolver conflitos não oferece garantias suficientes para evitar que alguns indivíduos sejam considerados culpados dos problemas de todos. A vida em comum, estruturada em volta de comunidades organizadas, precisa de regras de convivência cuja livre violação exige uma resposta adequada. Contudo, vivemos em tempos nos quais, tanto por parte de alguns sectores da política como de certos meios de comunicação, por vezes se incita à violência e à vingança, pública e privada, não só contra quantos são responsáveis por ter cometido delitos, mas também contra aqueles sobre os quais recai a suspeita, fundada ou não, de ter infringido a lei.”
Luta contra a opressão
A figura do bode expiatório das mazelas sociais é uma forma de acalmar os sentimentos de insegurança de parcela abastada da população, que são alimentados por um discurso politizado do inconsciente. Mas, por outro lado, é também um caminho legitimador da criminalização da pobreza, da manutenção da violência da pena de prisão contra os mais vulneráveis.
Nesse ponto, na luta contra todas as formas de opressão, o papel dos meios de comunicação ganha bastante relevância, porque a liberdade de imprensa tem um papel importante de informar corretamente, mas não pode criar alarme, pânico social e destruir histórias pessoais na divulgação de fatos criminosos.
Isso porque, como disse ele, “estão em jogo a vida e a dignidade das pessoas, que não podem se tornar casos publicitários, muitas vezes até mórbidos, condenando os supostos culpados ao descrédito social antes de serem julgados ou forçando as vítimas, com fins sensacionalistas, a reviver publicamente a dor sofrida”.
A espetacularização de casos penais deveria, há muito, ser completamente abolida, seja mediante proteção da imagem e nome das pessoas supostamente envolvidas no cometimento de um tipo de injusto, seja proibindo programas de rádio e televisão de natureza sensacionalista.
Há também, ao lado desse discurso politizado do inconsciente que representa os criminosos como pessoas perigosas e diferentes, aquilo que atualmente chamamos de populismo penal, de direita e de esquerda, que arranca da pulsão irracional punitiva, como alimento do senso comum, para encarcerar e, de consequência, excluir socialmente.
O apelo convicto nos fins da pena, como remédio recomendado aos vários tipos de problemas sociais, é incorreto sob qualquer ponto de vista. Afinal, asseverou ele, “não se trata de confiança em qualquer função social tradicionalmente atribuída à pena pública, mas antes da convicção de que mediante tal pena se possam obter aqueles benefícios que exigiriam a implementação de outro tipo de política social, económica e de inclusão social”. O fanatismo dos agentes penais e do homem de rua pelas funções declarada da pena de prisão é uma forma de enfermidade do ser. Uma mescla de maldade, vingança e frustração.
Sistemas penais sem controle
Por outro lado, há clara percepção de que os sistemas penais estão fora de controle. O fim de prevenção retratado na mera intimidação (efeito geral negativo) só tem servido para endurecer as penas e causar desproporcionalidade.
Com isso, na prática, implementa-se a finalidade mais deletéria da pena de prisão sobre os condenados e encarcerados, que é a neutralização ou inocuização, sem qualquer utilidade social. De consequência, o debilitamento do direito penal da liberdade gera um direito penal da desigualdade para as classes subalternas e, concomitantemente, um direito penal do privilégio para os grupos sociais economicamente abastados. Essa degeneração do direito penal pelo discurso expansionista da prevenção da pena foi observada por ele:
“Assim, o sistema penal vai além da sua função propriamente sancionatória para se colocar no terreno das liberdades e dos direitos das pessoas, sobretudo das mais vulneráveis, em nome de uma finalidade preventiva cuja eficácia, até agora, não se pôde comprovar, nem sequer nas penas mais graves, como a pena de morte. Corre-se o risco de não conservar nem sequer a proporcionalidade das penas, que historicamente reflecte a escala de valores tutelados pelo Estado. Foi-se debilitando a concepção do direito penal como ultima ratio, como recurso à sanção, limitado aos factos mais graves contra os interesses individuais e colectivos mais dignos de protecção. Debilitou-se também o debate sobre a substituição da prisão com outras sanções penais alternativas.”
Na Carta ao penalista argentino Zaffaroni, o papa Francisco adverte o erro comum de insistir apenas no castigo e confundir justiça com vingança. Recorda que, na esteira da produção científica comprometida com a liberdade, o aumento e endurecimento de penas não resolvem os problemas sociais nem diminuem os índices de delinquência.[3]
Nesse sentido, no discurso do Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, de 15 de novembro de 2019, ele descreve o estado atual do direito penal: “… o direito penal não conseguiu proteger-se das ameaças que, nos nossos dias, dominam as democracias e a plena força do Estado de direito. Por outro lado, o direito penal ignora frequentemente os dados reais, assumindo assim a forma de conhecimento meramente especulativo.”
Desafio ao sistema judiciário
Assim, diante da idolatria do mercado, do mercado divinizado e globalização do capital especulativo, que conduz a um modelo de exclusão, os penalistas “deveriam perguntar-se hoje é o que podem fazer com os seus conhecimentos para combater este fenômeno, que põe em risco as instituições democráticas e o próprio desenvolvimento da humanidade.”
O desafio de cada penalista seria reabilitar o princípio-guia da cautela in poenam, isto é, “conter a irracionalidade punitiva, que se manifesta, entre outras coisas, no aprisionamento em massa, no apinhamento e na tortura nas prisões, na arbitrariedade e no abuso das forças de segurança, no alargamento do âmbito da pena, na criminalização do protesto social, no abuso da prisão preventiva e na rejeição das mais básicas garantias penais e processuais”.
Neste contexto, ele deixou claro que “a missão dos juristas pode ser unicamente a de limitar e conter tais tendências. É uma tarefa difícil, em tempos nos quais muitos juízes e agentes do sistema penal devem desempenhar a sua tarefa sob a pressão dos meios de comunicação de massa, de alguns políticos sem escrúpulos e das pulsões de vingança que se insinuam na sociedade. Quantos têm tal responsabilidade estão chamados a cumprir o seu dever, dado que não fazê-lo põe em perigo vidas humanas, que precisam de ser cuidadas com maior intrepidez de quanta se tem por vezes no cumprimento das próprias funções”.
A partir da primazia da vida e a dignidade da pessoa humana (Primatus principii pro homine), hoje tão esquecidos, o papa Francisco ainda é enfático:
1) rejeita a pena de morte, legais e ilegais (execuções extrajudiciais);
2) rechaça a pena perpétua, que “é uma pena de morte escondida”;
3) propõe a retomada do direito penal mínimo de proteção de bens jurídicos e uma justiça penal restaurativa, sem deixar de insistir na melhoria das atuais condições carcerárias, em respeito ao princípio da dignidade humana das pessoas privadas da liberdade, porque em diversas partes do mundo as deploráveis condições de detenção são um autêntico aspecto desumano e degradante, como produto das imperfeições do sistema penal e resultado do exercício arbitrário e cruel do poder sobre as pessoas privadas da liberdade;
4) denuncia as condições da prisão dos presos sem condenação e dos condenados sem julgamento, porque a prisão preventiva abusiva que procura uma antecipação da pena constitui “outra forma contemporânea de pena ilícita oculta, para além de uma aparência de legalidade;”
5) alerta sobre a tortura e outras medidas e penas cruéis desumanas e degradantes, entre elas a própria reclusão em prisões de máxima segurança;
6) alerta sobre a aplicação das sanções penais a crianças e idosos e a outras pessoas especialmente vulneráveis;
7) define exemplos do campo de legitimidade do direito penal: o delito do tráfico de pessoas como delito contra a humanidade; o delitos de corrupção sempre e quando “causam graves danos sociais, quer em matéria económica e social, quer em qualquer tipo de obstáculo que se intrometa no funcionamento da justiça com a intenção de conseguir a impunidade para as próprias burlas ou para as de terceiros;” os crimes económicos organizados dos mais poderosos, das corporações do capital financeiro internacional, que afetam a propriedade, o meio ambiente e a vida dos povos indígenas, levando as pessoas à fome, à miséria, à migração forçada e à morte por doenças evitáveis; os delitos ambientais quando constitutivos do «ecocídio», ou seja, da perda, dano ou destruição de ecossistemas num determinado território, cujos habitantes são severamente afetado pela contaminação maciça do ar, dos recursos da terra e da água, flora e fauna;
8) denuncia o incentivo involuntário à violência, expressada na ideia de legítima defesa liberal, que justifica os crimes cometidos por agentes das forças de segurança;
9) repudia a cultura do desperdício e a cultura do ódio;
10) constata o uso do lawfare e as falsas acusações contra líderes políticos progressistas, que instrumentaliza a luta contra a corrupção com a finalidade de combater os governos indesejados, reduzir os direitos sociais e promover um sentimento de antipolítica do qual beneficiam aqueles que aspiram a exercer um poder autoritário.
Legado do papa Francisco
Com essas lições preciosas, o legado deixado é imenso: desmarcara os hipócritas que, sedimentes cristãos, são indiferentes aos sofrimentos das pessoas mais vulneráveis, vítimas das agências penais e seus métodos bárbaros. Cristãos de mera fachada e moralistas medievais que, no fundo, gozam do sofrimento humano, não se envergonham do incremento da violência e causam desigualdade na aplicação do direito e injustiça social. Políticas de lei e ordem, armamentistas e de ampliação incontrolável dos poderes policiais (alguns selvagens) estão entre as mais tocas violações dos direitos fundamentais básicos dos cidadãos.
O projeto anti-iluminista em curso, na política e no direito, mas no direito penal em especial, é um retrocesso civilizatório. Portanto, barbárie. É uma programa que atenta contra os valores universais da dignidade humana, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, dos direitos humanos, da separação de poderes e da democracia material. De um lado degenera o direito penal humanista do modelo de Beccaria, pensado justamente para evitar a crueldade e a desproporcionalidade das penas, enquanto que, de outro, abre espaço para um direito penal sem legitimação ético-politica, discriminatório e classista.
No fundo, a luta do papa Francisco contra o poder punitivo irracional em prol dos pobres e do oprimidos é a defesa enfática da refundação (onde já existiu) do garantismo penal, da cultura penalística iluminista e da democracia liberal. Nessa na trincheira entre civilização e barbárie em que se busca um horizonte construtivo de um outro mundo possível, mais inclusivo, mais humano e mais igualitário, ele já faz uma falta imensa.
[1] Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. De José de Faria Costa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 105.
[2] Ossino, Andrea, in Jornal La Reppublica, Monsignor Ambarus: “Prima di morire Papa Francesco ha donato 200mila euro ai detenuti dal suo conto”, 23/04/2025.
[3] Carta do Papa Francisco a E. Raúl Zaffaroni, Boletim IBCCRIM n. 260, 2014, p. 2.
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