Opinião

Papa Francisco condenou punitivismo midiático, pediu inclusão social e reparação às vítimas

 

28 de abril de 2025, 11h16

Em 2014, o papa Francisco (Jorge Mario Bergoglio, 1936-2025) participou em pessoa do debate na Argentina em torno do novo Código Penal e das diversas propostas de combate ao crime. No fim de semana do evento, o Sumo Pontífice contatou o chefe da comissão encarregada de elaborar o anteprojeto de lei, Roberto Carlés, para enviar uma carta dirigida ao juiz Eugenio Raúl Zaffaroni, na qualidade de secretário executivo da Associação Latino-Americana de Direito Penal e Criminologia. Na mensagem, o papa expressou posição contrária a sentenças mais duras, criticou a cobertura da mídia sobre casos policiais e pediu trabalho em prol da inclusão social de criminosos e reparação para as vítimas.

“Vaticano, 30 de maio de 2014

Senhor presidente e senhor secretário executivo:

Com estas palavras, desejo enviar meu cumprimento a todos os participantes do 19º Congresso Internacional da Associação Internacional de Direito Penal e do 3º Congresso da Associação Latino-Americana de Direito Penal e Criminologia, dois importantes eventos que permitem aos profissionais da Justiça Penal se reunir, trocar pontos de vista, compartilhar preocupações, aprofundar temas comuns e atender a problemáticas regionais, com suas particularidades sociais, políticas e econômicas. Junto com os melhores votos para que seus trabalhos colham frutos abundantes, gostaria de expressar meu agradecimento pessoal, e também o de todos os homens de boa vontade, por seu serviço à sociedade e sua contribuição ao desenvolvimento de uma Justiça que respeite a dignidade e os direitos da pessoa humana, sem discriminação, e que tutele devidamente as minorias.

Vocês bem sabem que o Direito Penal requer uma abordagem multidisciplinar, que busque integrar e harmonizar todos os aspectos que convergem na realização de um ato plenamente humano, livre, consciente e responsável. Também a Igreja gostaria de dizer uma palavra como parte de sua missão evangelizadora, e em fidelidade a Cristo, que veio “anunciar a liberdade aos cativos” (Lc 4,18). Por isso, me sinto encorajado a compartilhar com vocês algumas ideias que carrego na alma e que fazem parte do tesouro da Escritura e da experiência milenar do Povo de Deus.

Desde os primeiros tempos cristãos, os discípulos de Jesus se esforçaram para enfrentar a fragilidade do coração humano, tantas vezes débil. De diversas maneiras e com variadas iniciativas, têm acompanhado e sustentado aqueles que sucumbem sob o peso do pecado e do mal. Apesar das mudanças históricas, três elementos têm sido constantes: a satisfação ou reparação do dano causado; a confissão, pela qual o homem expressa sua conversão interior; e a contrição para chegar ao encontro com o amor misericordioso e curador de Deus.

1. A satisfação. O Senhor tem ensinado, pouco a pouco, ao seu povo, que há uma assimetria necessária entre o delito e a pena, que um olho ou um dente quebrado não se remedia quebrando outro. Trata-se de fazer justiça à vítima, não de ajustar contas com o agressor.

Um modelo bíblico de satisfação pode ser o Bom Samaritano. Sem pensar em perseguir o culpado para que assuma as consequências de seu ato, ele atende a quem ficou à margem do caminho malferido e se encarrega de suas necessidades (cf. Lc 10,25-37). Em nossas sociedades, tendemos a pensar que os delitos se resolvem quando se captura e condena o criminoso, passando ao largo dos danos cometidos ou sem prestar suficiente atenção à situação em que ficam as vítimas. Mas seria um erro identificar a reparação apenas com o castigo, confundir a justiça com a vingança, o que só contribuiria para aumentar a violência, mesmo que esteja institucionalizada. A experiência nos diz que o aumento e endurecimento das penas com frequência não resolvem os problemas sociais, nem conseguem diminuir os índices de criminalidade. E, além disso, podem gerar graves problemas para as sociedades, como as prisões superlotadas ou os presos detidos sem condenação… Quantas vezes se viu o réu expiar sua pena objetivamente, cumprindo a condenação, mas sem mudar interiormente ou se restabelecer das feridas de seu coração.

A esse respeito, os meios de comunicação, em seu legítimo exercício da liberdade de imprensa, desempenham um papel muito importante e têm uma grande responsabilidade: deles depende informar corretamente e não contribuir para criar alarme ou pânico social quando se dão notícias de fatos delituosos. Está em jogo a vida e a dignidade das pessoas, que não podem se tornar casos publicitários, muitas vezes de caráter mórbido, condenando os supostos culpados ao descrédito social antes de serem julgados ou forçando as vítimas, com fins sensacionalistas, a reviver publicamente a dor sofrida.

2. A confissão é a atitude de quem reconhece e lamenta sua culpa. Se ao criminoso não se oferece ajuda suficiente, não se lhe dá uma oportunidade para que possa se converter, acaba se tornando vítima do sistema. É necessário fazer justiça, mas a verdadeira justiça não se contenta em simplesmente punir o culpado. É preciso avançar e fazer o possível para corrigir, melhorar e educar o homem para que amadureça em todas as suas vertentes, de modo que não se desanime, enfrente o dano causado e consiga replanejar sua vida sem ficar esmagado pelo peso de suas misérias.

Um modelo bíblico de confissão é o bom ladrão, ao qual Jesus promete o paraíso porque foi capaz de reconhecer sua falta: “Nós estamos sendo justiçados, pois recebemos a paga de nossos delitos; este, em troca, não cometeu nenhum crime” (Lc 23,41). Todos somos pecadores; Cristo é o único justo. Também nós corremos o risco de nos deixar levar em algum momento pelo pecado, pelo mal, pela tentação. Em todas as pessoas convive a capacidade de fazer muito bem com a possibilidade de causar tanto mal, mesmo que uma pessoa queira evitar (cf. Rm 7,18-19). E precisamos nos perguntar por que alguns caem e outros não, sendo da mesma condição.

Não poucas vezes a criminalidade afunda suas raízes nas desigualdades econômicas e sociais, nas redes da corrupção e no crime organizado, que buscam cúmplices entre os mais poderosos e vítimas entre os mais vulneráveis. Para prevenir esse flagelo, não basta ter leis justas; é necessário construir pessoas responsáveis e capazes de colocá-las em prática. Uma sociedade que se rege somente pelas regras do mercado cria falsas expectativas e necessidades supérfluas, descarta aqueles que não estão à altura e impede que os talentosos, os fracos ou os menos dotados abram caminho na vida (cf. Evangelii Gaudium, 209).

3. A contrição é o pórtico do arrependimento, é essa senda privilegiada que leva ao coração de Deus, que nos acolhe e nos oferece outra oportunidade, sempre que nos abramos à verdade da penitência e nos deixemos transformar por sua misericórdia. A Escritura Sagrada nos fala sobre isso quando se refere à atitude do Bom Pastor, que deixa as 99 ovelhas que não precisam de cuidados e sai a buscar a que anda errante e perdida (cf. Lc 15,4-7), ou a do Pai misericordioso, que recebe seu filho mais novo sem recriminações e com perdão (cf. Lc 15,11-32). Também é significativo o episódio da mulher adúltera, a quem Jesus diz: “Vá e não peques mais” (Jo 8,11). Aludindo, assim, ao Pai comum, que faz o sol nascer sobre maus e bons, e chover sobre justos e injustos (cf. Mt 5,45), Jesus convida seus discípulos a serem misericordiosos, a fazer o bem a quem lhes faz mal, a rezar pelos inimigos, a dar a outra face, a não guardar rancor…

A atitude de Deus, que prioriza o homem pecador oferecendo-lhe seu perdão, se apresenta assim como uma justiça superior, ao mesmo tempo equânime e compassiva, sem que haja contradição entre esses dois aspectos. O perdão, de fato, não elimina nem diminui a exigência da retificação, própria da justiça, nem prescinde da necessidade de conversão pessoal, mas vai além, buscando restaurar as relações e reintegrar as pessoas na sociedade. Aqui me parece que está o grande desafio que devemos enfrentar juntos, para que as medidas adotadas contra o mal não se contentem em reprimir, dissuadir e isolar aqueles que o causaram, mas que ajudem a repensar, a transitar pelos caminhos do bem, a ser pessoas autênticas que, longe de suas misérias, se tornem elas mesmas misericordiosas. Por isso, a Igreja propõe uma Justiça que seja humanizadora, genuinamente reconciliadora, uma Justiça que leve o criminoso, através de um caminho educativo e de sincera penitência, à sua reabilitação e total reintegração na comunidade.

Quão importante e belo seria acolher esse desafio, para que não caísse no esquecimento. Quão bom seria que fossem dados os passos necessários para que o perdão não ficasse apenas na esfera privada, mas que alcançasse uma verdadeira dimensão política e institucional e assim criasse relações de convivência harmoniosa. Quanto bem se obteria se houvesse uma mudança de mentalidade para evitar sofrimentos inúteis, sobretudo entre os mais indefesos.

Queridos amigos, sigam em frente nesse sentido, pois entendo que aqui reside a diferença entre uma sociedade inclusiva e outra excludente, que não coloca a pessoa humana no centro e prescinde dos restos que já não lhe servem.

Despeço-me, encomendando-os ao Senhor, que nos dias de sua vida terrena foi preso e condenado injustamente à morte, e se identificou com todos os encarcerados, culpáveis ou não (“Estive preso e me visitaram”, Mt 25,36). Ele desceu também a essas escuridões criadas pelo mal e pelo pecado do homem para levar ali a luz de uma justiça que dignifica e enaltece, para anunciar a Boa Nova da salvação e da conversão. Ele, que foi despojado iniquamente de tudo, lhes conceda o dom da sabedoria, para que seus diálogos e considerações sejam recompensados com o acerto.

Peço que orem por mim, pois preciso bastante.

Cordialmente,

Francisco”

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