PENSAR FORA DA CAIXINHA

Novo membro da ABL diz que arte é essencial para profissionais do Direito entenderem o 'fenômeno humano'

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3 de junho de 2025, 10h16

Certa vez, um cliente do advogado José Roberto de Castro Neves ficou indignado com uma decisão desfavorável de um desembargador. “Ele ficou bravíssimo, disse que o desembargador era isso e aquilo. Eu tentei o acalmar, falei que o desembargador era uma ótima pessoa, apenas tinha entendido que nós não tínhamos razão no caso, o que é do jogo”, conta Castro Neves. Não adiantou muito, e o cliente continuou bastante chateado.

Advogado José Roberto de Castro Neves foi eleito integrante da ABL

Tempos depois, o cliente telefonou para o advogado e afirmou que tinha lido o artigo do desembargador no livro Os advogados vão ao cinema (Nova Fronteira). Na obra, organizada por Castro Neves, profissionais do Direito analisam seus filmes preferidos. “Eu adorei o texto. O sentimento que o desembargador descreve foi exatamente o que eu tive quando assisti ao filme”, disse o cliente.

O episódio fez Castro Neves pensar, e ele percebeu que a reflexão que o cliente teve, fazendo-o mudar de ideia sobre o desembargador, era o que gostaria de proporcionar em seus livros.

“Meus livros, que não se destinam apenas à comunidade jurídica, têm artigos de advogados, professores, ministros, magistrados. Não são entes inalcançáveis. São seres humanos que assistem a filmes, leem livros, vão ao teatro, se emocionam. Essa humanização do sistema jurídico é muito importante para a sociedade. Até para compreender suas falhas, porque nós, humanos, estamos condenados a errar”, avalia Castro Neves.

José Roberto de Castro Neves foi eleito, na última quinta-feira (29/5), integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL). Ele irá ocupar a cadeira 26, que está vaga desde a morte do jornalista Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça, e recebeu 27 votos de um total de 34. O advogado declarou à revista eletrônica Consultor Jurídico que ainda está processando a eleição, mas “imensamente feliz”.

“A Academia Brasileira de Letras é uma instituição pela qual eu tenho uma veneração há muitos anos. Sempre admirei as grandes pessoas que integraram a ABL. Começando por Machado de Assis, é claro, mas diversos grandes advogados passaram por lá, como Raymundo Faoro. Eu li muito a vida inteira, gosto muito de ler. E acredito que tudo que eu compreendi na minha vida se deve a esse hábito.”

Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados. Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, é doutor na mesma área pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), além de ser titular da cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

O advogado é autor de 18 livros, que transitam entre Direito, Literatura e História. Suas obras somam cerca de 200 mil exemplares vendidos. Entre os títulos mais conhecidos estão Como os advogados salvaram o mundo, Medida por medida: o Direito em Shakespeare e Os grandes julgamentos da História, todos eles publicados pela Nova Fronteira. Em abril de 2025, Castro Neves lançou Ozymandias (Intrínseca), seu primeiro romance.

Advocacia e escrita

José Roberto de Castro Neves é entusiasmado pelas três grandes vertentes de sua atuação. Para ele — que atua na resolução de conflitos —, o “grande barato” da advocacia é ajudar alguém a resolver um problema e retomar sua paz.

Na docência, aponta, não há nada melhor do que dividir o conhecimento com os alunos e instigar a curiosidade deles. “E escrever é um momento de muito estímulo, muita alegria”, destaca.

As profissões jurídicas são “ciumentas”, afirma Castro Neves. “Elas nos absorvem. O lado bom é entrar no universo jurídico. O lado ruim é que, às vezes, você se distancia muito das outras coisas da vida”.

Um bom profissional jurídico, na visão dele, é o que tem interesses para além da área, que oxigenam sua interpretação do Direito. E a arte é essencial para aguçar a sensibilidade e ajudar advogados, magistrados e demais trabalhadores da área a compreender melhor o “fenômeno humano”.

Entre os escritores preferidos de Castro Neves estão Machado de Assis, Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Clarice Lispector e o inglês William Shakespeare.

Direito e arte

O “Bardo de Avon” é objeto de diversos livros de José Roberto de Castro Neves. Ele é dono de uma das maiores bibliotecas do escritor no país, com cerca de 5 mil títulos.

Em Medida por medida: o Direito em Shakespeare, Castro Neves analisa as questões jurídicas presentes em obras do escritor inglês. Em Macbeth, explora o tribunal da consciência; em Júlio César, a retórica; em O mercador de Veneza, o abuso de direito; em Otelo, o mouro de Veneza, o problema da prova.

“Shakespeare usava muito o recurso do julgamento para criar força dramática. Em cerca de dois terços das peças dele há um julgamento. Também se valia de muitos temas jurídicos. E fazia críticas sociais. Por exemplo, apontando como a Justiça da época fazia distinções nas decisões. Shakespeare era um grande leitor da humanidade, por isso suas peças são tão interessantes. Ele não estava preocupado em tratar de um tema da época, e sim em discutir os grandes eixos da nossa natureza”, avalia o escritor.

Na obra Como os advogados salvaram o mundo, Castro Neves conta como advogados foram essenciais em diversos grandes acontecimentos da História.

“Quando o Estado é enviesado, injusto, quando o arbítrio começa a ganhar força, os advogados são os primeiros a sentir. Porque eles deixam de poder ajudar quem os procura. Em um Estado ditatorial, em que não há liberdade, ninguém pode se defender. Até por isso, advogados tomaram a frente em diversos movimentos cujo propósito era garantir a liberdade, que é a grande luta da humanidade”, explica, citando a participação da advocacia na Revolução Puritana, na Revolução Americana e na Revolução Francesa.

Os grandes julgamentos da História reúne artigos de figuras importantes do mundo jurídico sobre alguns dos casos mais importantes de todos os tempos. O texto de Castro Neves examina o julgamento de Martinho Lutero pela Igreja Católica, por questionar a cobrança de indulgências, uma heresia. Lutero rejeitou a autoridade do papa, foi excomungado e declarado herege. Porém, seus atos passaram a mensagem de que “a graça de Deus era um presente que não reclamava qualquer contraprestação”, de acordo com o escritor.

“Foi Lutero quem, pela primeira vez, defendeu a separação entre Estado e Igreja. Para ele, a questão religiosa era pessoal, um assunto privado. Segundo o monge, embora o Estado devesse atuar em harmonia com os princípios colhidos do Evangelho, como o amor, o perdão e a tolerância, deveria também ser forte o suficiente para manter a ordem pela força.”

O que os grandes livros ensinam sobre Justiça tem ensaios de advogados, magistrados e professores sobre as questões jurídicas de clássicos da literatura. Castro Neves escreve sobre O processo, de Franz Kafka.

Na obra, K., o protagonista, “recebe ordens desconexas e jamais consegue compreender qual lei que o pune e como se coordena seu processo de julgamento”, ressalta o escritor. “Ele não se encontra com qualquer juiz ou com um tribunal, mas apenas com funcionários subalternos e figuras curiosas, como o sacristão do presídio e um pintor, que lhe dão conselhos confuso e desconexos”.

Conforme Castro Neves, O processo é uma “poderosa parábola da burocratização, da massificação, da perda de humanidade”.

“A plena compreensão dos seus direitos é uma garantia fundamental do cidadão. O tratamento digno pelo Estado, sempre que interagir com qualquer pessoa e em qualquer nível, consiste em um pressuposto básico da cidadania. Em um governo autoritário, pessoas são processadas sem transparência, portanto, sem condição de se defenderem minimamente. O devido processo legal representa uma das mais marcantes conquistas da civilização. O Processo, portanto, é um grito, que nos alerta aos abusos de viver fora de um Estado de Direito.”

Lançamentos

O recém-publicado Ozymandias é a primeira incursão de José Roberto de Castro Neves na ficção. O romance conta a estória da cidade de Ateninhas, onde, subitamente, os livros desaparecem da biblioteca local, a principal estrutura do município. Os habitantes não se preocupam com isso. Em certo momento, as mulheres de Ateninhas ficam histéricas e não conseguem mais ter filhos. Daí os locais ficam indignados e passam a querer achar culpados.

“Eu queria colocar a metáfora de que uma sociedade que não tem livros é uma sociedade histérica. Sem cultura, não se vai longe”, afirma Castro Neves. Outro tema central do livro é a questão do destino. Acima de tudo, a obra aborda a importância da cultura e da literatura.

O advogado considera que o processo de escrita do romance é bem mais árduo do que dos textos de não ficção.

“No ensaio, é preciso pesquisar, estudar. Mas há um certo distanciamento do que você está escrevendo. O romance te absorve mais, é diferente. Você leva o romance para o chuveiro. Você está na rua, começa o romance. Os personagens tomam força e começam a discutir com você. Reclamam. ‘Eu não falaria isso, diria outra coisa’. É uma experiência mais profunda” compara.

Na quinta, mesmo dia em que foi eleito membro da ABL, Castro Neves lançou Que é ser advogado? Para ele, existem três requisitos essenciais. O primeiro é cultura geral, que permite ao profissional entender o ser humano e interpretar melhor as normas. O segundo é o conhecimento técnico. Se o Direito é uma ciência, é preciso dominar suas ferramentas para ser útil e ajudar os cidadãos. O terceiro — e mais importante — ponto é a ética.

“Um dos grandes problemas do Brasil é que nós discutimos pouco ética. Quando leio o jornal todo dia, a minha sensação é que muitas das coisas que acontecem se dão porque não falamos de ética”.

O advogado enfrenta questões éticas o tempo todo na profissão, destaca. Quanto aos clientes, aos juízes, às relações profissionais e pessoais, às coisas que faz. Segundo Castro Neves, o caminho da ética conduz a uma civilização melhor.

“Esse livro diz ao advogado que, se quiser ter uma carreira longeva, ter respeito e prestar um bom serviço, então cuide de fazer a coisa certa”.

Castro Neves diz ter sempre ter diversos projetos na mente. O próximo deve ser uma coletânea de artigos sobre Direito e humor.

Colegas do advogado comemoram

Profissionais do Direito ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico comemoraram a eleição de José Roberto de Castro Neves para a ABL, ressaltando a sua cultura e contribuição para explicar questões jurídicas por meio da arte.

O criminalista Luís Guilherme Vieira conhece Castro Neves desde os primórdios da carreira dele, no Sérgio Bermudes Advogados, onde atuou até fundar, com outros sócios, o Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados, “um dos maiores escritórios de advocacia do país”. Vieira afirma que o novo imortal é “um dos mais brilhantes da sua geração, um professor da PUC notável e respeitado por todos, renomado e uma pessoa extremamente carinhosa e afável com todo mundo”.

“A Academia Brasileira de Letras ganha com a sua chegada, a sociedade brasileira ganha com a sua chegada, a cultura brasileira ganha com a sua chegada e, por certo, a advocacia brasileira está em êxtase, em razão de Castro Neves ter ingressado na Academia.”

A genialidade de Castro Neves está em pensar o Direito a partir das artes, aponta Simone Schreiber, desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Ela menciona o uso de Shakespeare e das tragédias gregas para se compreende o fenômeno jurídico.

“Sua contribuição fundamental é romper com a ideia de que o sistema de justiça só pode ser compreendido por especialistas. Castro Neves tem a incrível capacidade de mobilizar pessoas das mais diversas áreas e perfis para produzir obras coletivas preciosas. Quando propõe que falemos sobre o Direito e a Justiça a partir da literatura, da música, do cinema, ele nos ajuda a desmitificar essas categorias. E sua obra vai na contramão da superficialidade com que se ensina Direito hoje, em que estudantes se limitam a memorizar normas e precedentes sem qualquer reflexão crítica e formação humanística.”

O advogado Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, autor do livro Direito e História — uma relação equivocada (Edições Humanidades), ressalta que a eleição de Castro Neves para a ABL retoma uma ponte entre jurisprudência e literatura.

“Há uma sucessão de juristas que ocuparam a Academia, a exemplo de Miguel Reale, Raimundo Faoro, Clóvis Beviláqua, Gilberto Amado, Candido Mota Filho, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Rodrigo Octávio, Lúcio de Mendonça, Hermes Lima, Alfredo Pujol. A escolha de Castro Neves de algum modo resgata essa relação entre direito e literatura. A presença de Castro Neves na ABL retoma um elo que comprova que direito e literatura são expressões congêneres da condição humana, sob a forma de técnica de resolução de conflitos e sob a forma de imaginação criativa”.

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