90 ano depois

Ação criminal sobre as mortes do MMDC levou 22 anos para chegar ao Judiciário

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29 de maio de 2022, 12h46

O assassinato de quatro jovens na noite de 23 de maio de 1932 na cidade de São Paulo, que se tornou o estopim da chamada "Revolução de 32" e marcou a historiografia brasileira com a sigla MMDC, levou 22 anos para chegar ao Judiciário.

Tribunal de Justiça de São Paulo
Simulação de júri sobre MMDC no TJ de São Paulo em 2017Tribunal de Justiça de São Pauloz

A demora da polícia para concluir a investigação teve como consequência sua prescrição e a extinção do processo do emblemático crime que envolveu cidadãos comuns, militares e apoiadores do presidente Getúlio Vargas. Ou seja, não foi possível descobrir os autores dos disparos dos homicídios.

Há 90 anos, quatro jovens que participavam de protesto no centro de São Paulo reivindicando democracia, eleições e uma nova constituição foram fuzilados. O ato reunia cerca de 300 pessoas em protesto contra o presidente Getúlio Vargas e foi reprimido com tiros e granadas, que alvejaram e levaram à morte Mário Martins de Almeida, Euclydes Bueno Miragaia, Dráusio Marcondes de Souza e Antônio Camargo de Andrade. Os quatro ficaram conhecidos pela sigla MMDC.

Os autos do processo sobre o crime revelam também as personagens que estiveram envolvidas no "esquecimento" do inquérito nas gavetas da então Repartição Central de Polícia de São Paulo e a participação de militares do Exército leais a Vargas na repressão ao protesto. Conta detalhadamente como os quatro jovens perderam a vida atingidos por tiros e estilhaços de granadas e registra a morte de uma quinta pessoa que participou do protesto.

Além das mortes de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, a polícia também registrou ferimento a bala em Orlando de Oliveira Alvarenga, provocado pelas forças leais a Getúlio. Alvarenga acabou morrendo cerca de três meses depois e não integrou o grupo que passou à história.

A história
A manifestação ocorreu defronte a sede do então Partido Popular Paulista, na esquina da rua Barão de Itapetininga com a Praça da República, em São Paulo, na noite do dia 23 de maio de 1932. Lá funcionou a ex-Liga Revolucionária, que promovera suporte ao golpe de 1930 e dava sustentação ao governo Vargas. A ação foi reprimida por militares que faziam a guarda do local. Além das cinco mortes, outras dez pessoas ficaram feridas.

Os depoimentos angariados pela Polícia Civil apontam que houve um comício com "falas exaltadas" naquela noite em frente à sede do PPP. E o objetivo dos manifestantes era "empastelar" a sede do partido.

Martins tinha 31 anos, era filho de fazendeiros no município de São Manuel, interior paulista, mas residia em São Paulo. Miragaia também morava na capital, tinha 21 anos, trabalhava como auxiliar num cartório no centro da cidade. Camargo era comerciário, com 30 anos. Sua família veio da cidade de Amparo anos antes. Já a letra D da sigla é de Dráusio, um adolescente então com 14 anos, que trabalhava como auxiliar em uma farmácia.

Os três primeiros morreram no confronto durante o protesto. Dráusio chegou a ser internado na Santa Casa de Misericórdia. Prestou depoimento à polícia, embora estivesse em estado grave de saúde. Mas acabou falecendo cinco dias depois em virtude dos amplos ferimentos abdominais e hemorragia.

Prescrição
A prescrição do inquérito policial levou à extinção da punibilidade dos autores dos disparos. A base para a declaração de prescrição e extinção da ação penal foi assinada pelo juiz da Vara Auxiliar do Juri do Tribunal Waldemar César da Silveira, em 7 de dezembro de 1954.

O inquérito para apurar a causa das mortes e seus responsáveis foi aberto no mesmo dia do fato. O processo criminal mostra, por exemplo, que Martins foi atingido por várias perfurações de projéteis de arma de fogo em trajetória diagonal. O que significa que os tiros foram disparados de cima para baixo. A autópsia aponta ainda que seu rosto e outras partes do tórax e corpo também foram atingidos por estilhaços de granada.

Disparos
Nunca se soube quem eram as pessoas que estavam dentro da sede do Partido Popular Paulista na noite daquele dia 23 de maio de 1932. Sabia-se que eram militares do Exército que faziam a segurança do local. A polícia tentou descobrir tais identidades, é o que revela o inquérito.

Mas descobriu apenas que os manifestantes tentaram também atacar a sede do Clube 3 de Outubro, localizada no Edifício Martinelli, onde se encontrava o general Isidoro Dias Lopes, ex-comandante da 2ª Região Militar.

Relatório manuscrito pelo juiz Waldemar César Ferreira mostra que o chefe dos investigadores, Francisco A.C. Franco, delegado de Segurança Pessoal, em ofício datado de 7 de junho de 1932, solicitou ao comando da 2ª Região Militar a relação das pessoas que estavam na guarda da sede do partido na noite do protesto e mortes.

O objetivo era ouvir esses militares no inquérito, uma vez que a polícia tinha conhecimento, segundo Ferreira, da existência de "relação" entre o comando militar da 2ª Região e o Partido Paulista Popular. Mas o ofício foi devolvido 16 dias depois para a polícia, sem nenhuma informação ou autorização para convocar militares para depoimento.

Deste modo, não foi possível descobrir quem eram as pessoas que estavam dentro do prédio na rua Barão de Itapetininga na noite dos tiros, quem foram os autores do fuzilamento e tampouco apreender as armas. O comando da 2ª Região Militar à época estava ocupado pelo general Pedro Aurélio de Gois Monteiro. Legalista, foi um dos comandantes das tropas federais que lutaram contra as tropas paulistas na ofensiva que São Paulo fez contra o governo de Getúlio, e que no estado foi batizada como "Revolução de 32".

A negativa do Exército levou à paralisação do andamento da ação. Quatro anos depois, o inquérito ainda estava sem novidades, sem nenhuma atividade por parte da polícia. Somente em 8 de novembro de 1954, 22 anos depois de ocorridos os crimes, foi remetido para a Justiça.

Em 12 de março de 1954, o delegado auxiliar da 4ª Divisão Policial, Carlos E. Bittencourt da Fonseca, foi o responsável por enviar ao Judiciário os inquéritos parados nos cartórios das delegacias que apuravam o fato de 1932. O objetivo seria regularizar o inquérito. Mas foi apenas um movimento burocrático. Fonseca, mais tarde, passou a integrar o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS), a polícia política de Vargas.

"A polícia formou-se no Brasil mais como órgão de monopólio da violência do governo do que de empreendimento de uma política de segurança de Estado. Isso se reflete até hoje, em sua estrutura e em suas ações, que estão longe de ser imparciais e acabam assegurando as divisões e desigualdades profundas que existem em nossa sociedade. Repressão e qualidade e tempo de investigações, com maior e menor participação, contribuição ou controle de estruturas e órgãos do sistema de justiça, são exemplos disso, que se agrava, evidentemente, em momentos de franco descarte da democracia — como foram a ditadura do Estado Novo e a de 64 a 86, no século passado", analisa Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito.

Promotoria Pública
Despacho da Promotoria Pública feita pelo promotor Alberto Quartim Morais Júnior, sobre a remessa feita por Fonseca, alega necessidade de reconhecer a prescrição penal dos fatos e dos crimes, baseados no artigo 85 do Código Penal vigente à época.

"O fato se regula pelo antigo Código Penal, em cujo artigo 85 se dispõe que prescreve em 20 anos a condenação que impuser pena de igual natureza, por tempo excedente de 12 anos", escreveu Morais Júnior, que também argumentou que a absolvição "apaga o caráter delituoso dos fatos, desaparecendo o direito de punir". E assim requereu o arquivamento dos autos.

Francisco Quartim de Moraes, historiador e doutorando pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e sobrinho de Morais Júnior, conta que em 1954 foram criadas seis Varas Criminais em São Paulo e que foram escolhidos promotores experientes do interior para ocupar as vagas. O tio, que acabara de assumir o posto, tinha cerca de 40 anos de idade, e depois esteve no front de batalha da revolução de 32.

"Alberto Quartim de Moraes é meu tio avô, ele lutou em 1932 no batalhão Borba Gato junto com o meu avô", conta o sobrinho. O promotor esteve na frente de batalha, de acordo com a família, pelo menos entre o fim de julho e fim de agosto de 1932.

Com base nos fatos históricos narrados, Francisco Quartim de Moraes aponta que a retomada do processo sobre a morte de MMDC se deu também em 1950, "o que realça o fator político no tramite judicial". "Em 1950, Getúlio Vargas enfrentava nas eleições o brigadeiro Eduardo Gomes e em 1954 sofria intensa pressão por seu impeachment.  Arrisco dizer que a retomada deste processo pode ser uma forma de aumentar esta pressão", evidencia o historiador.

"Evidentemente, na disputa entre os militares ligados ao PPP — em especial Miguel Costa e João Alberto, que havia sido interventor em São Paulo causando uma enorme disputa com os paulistas — e os manifestantes do 23 de maio — muitos deles oriundos da São Francisco — Getúlio Vargas estava do lado dos militares que eram base de apoio de seu governo desde a Aliança Liberal", conclui Quartim de Moraes.

E no dia 29 de outubro de 1954, sete meses depois de ter saído do cartório do Tribunal de Justiça, o delegado titular da Delegacia de Segurança Pessoal, Nelson da Veiga, determinou a conclusão dos autos. Assim, os processos criminais foram enterrados definitivamente. Veiga se tornou depois diretor geral de Polícia de São Paulo e integrou também o DEOPS.

Após as mortes de MMDC e de Alvarenga, os protestos aumentaram em São Paulo. Cresceram tanto que em 9 de julho de 1932 eclodiu uma revolução, ou uma guerra entre paulistas, contrários ao governo federal, e o regime de Getúlio Vargas. O ex-presidente venceu a contenda, e os paulistas assinaram a rendição em outubro — mas até hoje comemoram o feito com um feriado estadual em 9 de julho.

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