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Papa Francisco, a liderança da resistência cultural (parte 1)

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30 de abril de 2025, 8h00

1. O ser humano. Francisco — nosso Jorge Mario Bergoglio (1936-2025) para os argentinos — foi uma pessoa de extraordinária dimensão humana que soube voar muito alto e, com tons admiráveis e gestos informais, tentou eliminar muitos preconceitos e lutou por um mundo mais humano, denunciando os poderosos com o olhar voltado para suas vítimas. Suas palavras que se espalharam pela superfície do planeta pediam — entre outras coisas — que cumpríssemos o mais elementar de nossos deveres: cuidar do único lar cósmico que temos à nossa disposição.

Essa pessoa espiritualmente gigantesca viajava no “subte” e ônibus em Buenos Aires e, quando se tornou papa, não quis ocupar os quartos que lhe correspondiam no Vaticano, porque ficaria deprimido na solidão desses enormes espaços. Parece estranho dizer isso, porque não nos ocorre imaginar a solidão de um papa, sobre a qual, no entanto, haveria muito a acrescentar e a refletir.

Francisco foi o primeiro papa do Sul, algo impensável até poucas décadas atrás. Se expressou com a naturalidade e até mesmo com certa despreocupação típica de quem sabe que somos os marginalizados — ou colonizados — do planeta. Seu jeito cordial e afável, seu sorriso fácil e seu bom humor não o impediam de eliminar formas adocicadas de sua prosa quando tinha de se referir à realidade cruel do mundo e apontar os responsáveis por ela. Assim, sem reservas, ele foi capaz de escrever:

“Guerras, ataques, perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantos abusos da dignidade humana são julgados de forma diferente, de acordo com a conveniência ou não de certos interesses, essencialmente econômicos. O que é verdade quando convém aos poderosos deixa de ser verdade quando não é do interesse deles. Essas situações de violência estão se multiplicando dolorosamente no mundo, até assumirem as características do que poderia ser chamado de uma terceira guerra mundial” [1].

2. A crueldade do poder. O primeiro capítulo da Laudato si, referente a “O que está acontecendo com a nossa casa”, é escrito sem muitos rodeios, quando se trata de apontar para o poder e o que ele está fazendo: produzir “os descartáveis da sociedade”, enfraquecer a solidariedade ao substituir a comunicação humana por máquinas e telas, por meio da aliança da tecnologia e da economia  que exclui tudo o que não responde aos seus interesses imediatos [2].

Não posso deixar de transcrever o brilhante 56º parágrafo, quando, depois de analisar várias dessas atrocidades, ele diz, no mais puro estilo “bergogliano“: “Enquanto isso, os poderes econômicos continuam a justificar o atual sistema mundial, em que a especulação e a busca pelo lucro financeiro são predominantes e tendem a ignorar qualquer contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e o meio ambiente. Isso mostra que a degradação ambiental, a degradação humana e ética estão intimamente ligadas”. Afirmou claramente que não há duas crises, uma ambiental e outra social, mas uma única crise socioambiental.

E. Raúl Zaffaroni, professor emérito da Universidade de Buenos Aires

Francisco sempre foi profundamente crítico em relação ao poder arbitrário e, especialmente, ao poder financeiro dominante: “Há regiões”, escreve ele, “que já estão particularmente em risco e, para além de qualquer previsão catastrófica, o que é certo é que o sistema mundial atual é insustentável sob vários pontos de vista, porque deixamos de pensar nos fins da ação humana: se olharmos para as regiões do nosso planeta, percebemos imediatamente que a humanidade não conseguiu corresponder às expectativas divinas”.

3. O líder da resistência na “batalha cultural”. Toda a sua pregação foi centrada na defesa da dignidade humana, do respeito à pessoa, plenamente consciente de que aqueles que mais sofrem com as crueldades do poder são os mais fracos e vulneráveis: os pobres, os “descartáveis”, os migrantes, os refugiados, os famintos, as populações civis em guerras, os povos nativos e um longo etc.

Estas poucas linhas, que talvez eu as tenha escrito com a saudade devida ao efeito emocional de sua recente partida, mas uma reflexão parece inevitável, especialmente agora em que tanto se fala de uma “guerra” ou “batalha” cultural. Com isso quero dizer que a disseminação e o ataque de discursos e mensagens midiáticas prejudiciais à dignidade dos seres humanos, não é seja um fenômeno atual, longe disso, já que, visto em uma perspectiva temporal, o confronto histórico entre aqueles que lutam com a premissa de que todos os seres humanos são humanos e aqueles que querem apontar como não totalmente humanos aqueles que escravizam, exploram e matam quando são perturbados, vem de longa data.

Por outro lado, não se trata de exagerar o “cultural” de modo a subestimar a dimensão econômica do fenômeno, pois, embora não seja único, é de fundamental importância: quando Francisco afirma que “isso não é sustentável”, ele chama nossa atenção para um mundo de concentração incessante de riqueza, onde o colonialismo em uma versão financeira ainda está em vigor, transformando o orgulhoso berço mediterrâneo da civilização ocidental em um cemitério, erguendo muros no México, aglomerando refugiados no Panamá, expulsando migrantes em massa dos Estados Unidos. Há guerras que só podem ser explicadas pelos lucros da indústria de armas, inventando julgamentos contra líderes populares, invadindo embaixadas, sequestrando asilados, aprovando legislação por decreto, derrubando tribunais etc.

O confronto entre guerra e paz, ódio e amor, intolerância e tolerância, coexistência e conflito, não é novo e, mesmo que agora seja chamado de “guerra cultural”, não há dúvida de que Francisco foi o maior líder da “resistência cultural” e seu exemplo, seus atos e suas ideias continuarão a ser a bandeira dessa luta.

4. Francisco e o poder punitivo. A doutrina franciscana dará muito o que falar e analisar. Tomo a liberdade de apontar, com a máxima brevidade imposta pelo espaço, as linhas gerais de uma de suas muitas implicações, que é a do poder punitivo. Nisso, Francisco não se limitou a visitar prisões, a agir como um pastor formal, mas adotou uma linha real de política criminal, tão cristã quanto racional, abertamente confrontada com o punitivismo populista que permeia nossa América e o mundo, com seu interminável refrão de instigação à vingança letal.

Embora sua administração tenha dado início a uma importante transformação da Igreja Católica, sua posição resoluta em questões criminais não se desviou do interesse que também ocupou outros antecessores, embora em contextos globais e ideológicos diferentes. Quando a visão reducionista — e basicamente racista e policial — do Direito Penal da “periculosidade” ainda em vigor, a Igreja também foi capaz de alertar e reivindicar o direito penal da culpabilidade, ou seja, de um direito penal que considerava o ser humano como uma “coisa perigosa” para outro que o considera como uma entidade com uma consciência moral [3].

Em um contexto muito diferente — como o atual — Francisco se posicionou contra o punitivismo vingativo, típico do atual momento de regressão do respeito à dignidade humana, no qual o aparato de poder financeiro transnacional, apoiado por oligopólios de comunicação e políticos inescrupulosos ávidos pelo poder ou amedrontados pelo risco de perdê-lo, defendem uma extensão do poder punitivo para se encarregar da eliminação dos “descartáveis”.

Há vários documentos nos quais fez referência a isso, que terão de ser analisados com muito mais detalhes, embora o próprio Francisco os tenha resumido no último deles de 2019 [4]. Por isso, vou segui-lo e comentá-lo, visto que aqui as linhas são informativas.

5. O apelo ao Direito Penal. Nesse “discurso”, embora Francisco reconheça certo grau de abertura epistemológica do direito penal — talvez por cortesia —, ele afirma que “o direito penal não conseguiu se proteger das ameaças que, em nosso tempo, pesam sobre as democracias e a plena vigência do Estado de Direito” e, por outro lado, ressalta que “muitas vezes ignora os dados da realidade e, assim, assume a forma de um conhecimento meramente especulativo”, o que, tendo em vista os desenvolvimentos neokantianos e neo-hegelianos, é inquestionável.

Em seguida, ele não hesita em se referir, de modo geral, à “idolatria do mercado”, ou seja, descrever o contexto do poder financeiro, o que obviamente não faria sentido para qualquer versão puramente especulativa do direito penal, que rapidamente o estigmatizaria como um “criminologista crítico”. “Hoje, alguns setores econômicos exercem mais poder do que os próprios Estados: uma realidade que se torna ainda mais evidente em tempos de globalização do capital especulativo. O princípio da maximização do lucro, isolado de qualquer outra consideração, leva a um modelo de exclusão que é pernicioso para aqueles que sofrem seus custos sociais e econômicos no presente, enquanto condena as gerações futuras a pagar seus custos ambientais”.

Imediatamente Francisco “joga a culpa” nos juristas: “A primeira coisa que os juristas devem se perguntar hoje é o que eles podem fazer com seu próprio conhecimento para combater esse fenômeno, que coloca em risco as instituições democráticas e o próprio desenvolvimento da humanidade” e, em particular, os penalistas: “o desafio atual para todos os penalistas é conter a irracionalidade punitiva, que se manifesta, entre outras coisas, no encarceramento em massa, na superlotação e na tortura nas prisões, na arbitrariedade e nos abusos das forças de segurança, na expansão do escopo da punição, na criminalização do protesto social, no abuso da prisão preventiva e no repúdio às garantias penais e processuais mais básicas”.

Em seguida, volta a apelar para o realismo em detrimento do puro normativismo: “Um dos maiores desafios da ciência penal na atualidade é superar a visão idealista que assimila o dever ser à realidade“, o que parece apontar para o neo-hegelianismo penal: “A imposição de uma sanção não pode ser moralmente justificada pela suposta capacidade de reforçar a confiança no sistema normativo e na expectativa de que cada indivíduo assuma um papel na sociedade e se comporte de acordo com o que se espera dele”. Ele destaca a função dissimuladora desse idealismo: “O direito penal, também em suas correntes normativas, não pode desconsiderar dados elementares da realidade, como os que se manifestam pela operacionalidade concreta da função punitiva. Qualquer redução dessa realidade, longe de ser uma virtude técnica, contribui para ocultar as características mais autoritárias do exercício do poder”.

Continua na parte 2

* tradução: Carolina Cyrillo


[1] Tutti insieme ce la faremo, Roma, 2021, p. 101.

[2] Carta Encíclica Laudato si’ do Santo Padre Francisco sobre o cuidado da casa comum, Conferência Episcopal Argentina, 2015.

[3] Discurso de Sua Santidade Pio XII aos participantes do Sexto Congresso Internacional de Direito Penal, sábado, 3 de outubro de 1953.

[4] Veja, entre outros: Discurso a uma delegação da Associação Internacional de Direito Penal, 23 de outubro de 2014; Discurso a uma delegação da Comissão Internacional contra a Pena de Morte, 17 de dezembro de 2018; Carta aos participantes do XIX Congresso Internacional da Associação Internacional de Direito Penal e do III Congresso da Associação Latino-Americana de Direito Penal e Criminologia, 30 de maio de 2014; Discurso do Santo Padre Francisco aos participantes do Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, 15 de novembro de 2019.

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