É possível a resolução por mora do credor?
30 de setembro de 2024, 14h19
Problematização
A empresa X contrata a empresa Y para realizar a entrega e a instalação de pisos de mármore em uma área de 50 m2. No entanto, buscando a renegociação do contrato para remunerar Y em valor inferior ao previsto, X impede a entrada de Y no local acertado para a fixação do piso. A empresa Y é proprietária de apenas um pequeno galpão de armazenamento e contava com a efetiva entrega do material, tendo em vista que logo receberia uma nova remessa de cerâmica.
De acordo com o artigo 394 do Código Civil brasileiro, a situação narrada configura hipótese de mora da empresa X, credora, pois há recusa injustificada no recebimento da prestação (mora creditoris ou mora accipiendi).
Nesta situação, conforme dispõe o artigo 400 do Código Civil, o devedor tem o direito de ser ressarcido pelas despesas empregadas em conservar a coisa, não responde pela conservação da coisa além da hipótese de dolo [1] e pode recebê-la pela estimação mais favorável, se o valor oscilou entre o dia do pagamento e o da sua efetivação.
Em atenção às situações em que o comportamento do credor se mostra relevante para que o devedor possa realizar a sua prestação, objetiva-se saber se seria possível recorrer ao remédio da resolução contratual, tradicionalmente analisada sob a ótica do inadimplemento do devedor e do interesse útil do credor na prestação. Para isso, cumpre investigar, primeiramente, a existência de um “dever geral de receber”.
‘Dever’ de cooperação pelo credor no adimplemento
Apresentada a prestação pelo devedor na forma, tempo e local devidos — isto é, realizada a oblação —, o devedor não está automaticamente liberado do vínculo jurídico. Mesmo diante da recusa injustificada do credor em receber a prestação ou cooperar para que ela seja realizada, o devedor permanece obrigado a prestar, ainda que a mora do credor afaste a mora debitoris [2].
Salvo em casos específicos, como na ausência superveniente de interesse, a recusa ou não colaboração por parte do credor, per se, não extingue a obrigação, que se mantém, ainda que fragilizada [3]
Tem prevalecido amplamente a tese de que, em regra, não se há de falar em um “direito ao cumprimento” [4], titularizado pelo devedor, e oponível ao credor [5]. O devedor possui, no entanto, a fim de se liberar do seu dever de prestar, interesse [6] em que o credor faça o que lhe cabe, nos termos do contrato. A cooperação é, se não um dever, um “ônus” (“Obligenheit”) [7] do credor, cujo descumprimento resultará em desvantagens jurídicas [8], como a atenuação da responsabilidade do devedor [9].
Em certos casos, contudo, tem-se afirmado a existência de um verdadeiro dever de tornar possível o cumprimento [10]. Maria de Lurdes Pereira [11] alude às raras hipóteses em que o devedor tem um interesse na própria execução da prestação, como no caso do artista contratado que almeja a sua promoção por meio da realização do espetáculo. Não basta o interesse comum de adimplir, mas um interesse especial no cumprimento da obrigação [12]. Apenas nessas hipóteses, ou quando acordado pelas partes ou imposto por lei, haveria direito do devedor de exigir judicialmente o recebimento da prestação pelo credor [13], possibilitando, assim, a sua liberação.
No direito brasileiro, seria possível apontar como exemplo a obrigação de o dono da obra em fornecer os materiais ao empreiteiro. Como o artigo 610, §1º, do Código Civil [14], expressamente faz alusão à obrigação de tal fornecimento, a ser livremente pactuada entre as partes, conclui-se que a recusa injustificada pelo dono da obra de entregar os materiais (credor da entrega da obra) poderia ser objeto de cumprimento específico pelo empreiteiro (devedor da entrega da obra).
Pontes de Miranda [15], apesar de não reconhecer que, em regra, o credor tenha o dever de receber, afirma que “as circunstâncias, a natureza da obrigação e a lei podem preestabelecer dever de o credor cooperar no adimplemento” e, portanto, “determinar que o credor tenha de receber”.
Ainda segundo o autor, “a segurança do tráfico, a necessidade de ser protegido o interesse do devedor e as circunstâncias, que se têm por levadas em conta pelos figurantes, podem determinar que o credor tenha de receber”.
Também Larenz [16] entende que, em casos específicos, de acordo com o conteúdo do contrato ou em função da boa-fé objetiva, se o devedor tiver um interesse especial na pronta prestação do serviço, por exemplo, a cooperação do credor se apresenta como dever jurídico.
Resta em aberto saber, contudo, quais seriam os remédios disponíveis ao devedor nas situações em que, por não configurar um dever, mostra-se judicialmente inexigível a colaboração do credor.
Remédio resolutório
A partir da interpretação sistemática do artigo 475 com o artigo 395, parágrafo único, ambos do Código Civil, afirma-se que a resolução é cabível apenas no caso de inadimplemento definitivo, em que a prestação de torna inútil ao credor [17], apesar de opinião em sentido contrário [18].
A partir da análise do direito de resolução focado na perda de utilidade da prestação ao credor, surge a dúvida, então, se o direito de resolução seria cabível também ao devedor, em face da mora creditoris.
O primeiro indicativo da aplicação de referido dispositivo também à hipótese de mora do credor consiste na linguagem empregada pelo artigo 475 do Código Civil, que utiliza a expressão “parte lesada” e não “credor lesado”. Ao analisar os requisitos do direito de resolução, observa-se que a doutrina acaba por se referir unicamente ao credor, em razão da leitura conjunta dos arts. 475 e 395, parágrafo único, ambos do Código Civil, uma vez que este último faz menção apenas à mora do devedor.
A adoção da interpretação restritiva, no entanto, não parece estar de acordo com a ratio legis do direito de resolução e com a própria interpretação sistemática entre o artigo 475 e o parágrafo único do artigo 395 do Código Civil. Isso porque, se, como visto, é a inutilidade da prestação ao credor que fundamenta o exercício do direito de resolução, não seria lógica a manutenção do vínculo se é o credor quem não colabora para receber a prestação voltada a satisfazer o seu próprio interesse. Se nem mesmo o credor, por motivo a ele imputável, coopera para satisfação de seu próprio interesse, por que manter o devedor obrigado, por tempo indeterminado, a satisfazê-lo?
A interpretação que permite o exercício do direito de resolução pelo devedor em situações de mora creditoris está em consonância, também, com os outros remédios postos à sua disposição. Se o legislador criou meio adequado de exoneração do devedor em relação a determinadas obrigações por meio da consignação em pagamento, parece também possível buscar a exoneração nas situações em que não permitida a consignação, eis que, também nelas, persiste o interesse do devedor em se liberar [19].
O programa obrigacional é efetivamente afetado quando ultrapassado o prazo da prestação, permanecendo ainda, em alguns casos, o interesse do credor que, como no exemplo da instalação do piso de mármore, não dá mostras de que o serviço não mais lhe seja mais útil. A própria faculdade de o devedor prestar na data em que queira, desde que antes do prazo estipulado, é sacrificada com a mora accipiendi [20].
Não se mostra razoável, nessa hipótese, “se obrigar o devedor a repetir a oferta, regularmente (todos os dias?) até que o credor se torne acessível” [21], de modo que possível o exercício do direito de resolução por parte do devedor [22].
Dessa forma, nos casos de mora creditoris em que não se apresenta cabível se exigir judicialmente o comportamento favorável do credor [23], e não sendo possível a consignação em pagamento, ou revelando-se alternativa excessivamente onerosa ao devedor, parece cabível o exercício do direito de resolução, previsto no artigo 475 do Código Civil, pelo devedor [24]. Evita-se, assim, que o devedor fique atado indefinidamente a suas obrigações, apenas em razão da vontade do credor [25].
*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
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[1] Diferentemente do direito alemão, que prevê, no § 300, além do dolo, a culpa grave (grobe Fahrlässigkeit), o CC/02 positivou apenas a hipótese de dolo. No direito português, a culpa lata foi extirpada, sem justificação, na 2ª Revisão Ministerial (MENEZES CORDEIRO, António. A mora do credor. Revista de Direito Civil, ano IV, p. 9-45, 2019, p. 30-31).
[2] A oblação isenta o devedor da falta pelo não cumprimento da obrigação (ALVIM, Agostinho Neves de Arruda. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 80).
[3] MENEZES CORDEIRO, António. A mora do credor…, cit., p. 36.
[4] Em sentido contrário, Fernando Cunha de Sá entende que o reconhecimento do direito do devedor em cumprir corresponde à solução mais consentânea com o sistema obrigacional (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Direito ao cumprimento e direito a cumprir. Coimbra: Almedina, 1997, p. 36 e ss). Judith Martins-Costa também reconhece a existência do direito subjetivo do devedor à liberação ou, então, ao cumprimento (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil – do adimplemento e da extinção das obrigações. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coordenador). Comentários ao novo Código Civil. v. V. t. I. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 355).
[5] Na doutrina portuguesa, com ampla referência bibliográfica, cf. PEREIRA, Maria de Lurdes. Conceito de prestação e destino da contraprestação. Coimbra: Almedina, 2001, p. 222, nota 599.
[6] O devedor dispõe de um mero interesse na produção dos efeitos do cumprimento (PIRES, Catarina Monteiro. Contratos I: perturbações na execução. Coimbra: Almedina, 2020, p. 165).
[7] O “ônus” (“Obligenheit”) tem sua origem nas funções que incumbiam aos soberanos, nos séculos XVIII e XIX, e que estavam a seu cargo, mas não podiam ser exigidas judicialmente (MENEZES CORDEIRO, António. A mora do credor…, cit., p. 42). As Obligenheiten constituem regras de comportamento, impostas à parte onerada por meio de lei ou contrato. Podem ser consideradas deveres de menor intensidade coercitiva ou pressupostos para a manutenção de posições jurídicas próprias do onerado. Não tem podem ser objeto de execução específica nem geram o dever de indenizar (HÄNCHEN, Susanne. Obliegenheiten und Nebenplichten. Tübingen: Mohr Siebeck, 2010, p. 2).
[8] LARENZ, Karl. Lehrbuch des Schuldrechts: Allgemeiner Teil. 14. ed. München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1987, v. 1
[9] ERNST, Wolfgang. § 293. In: Münchener Kommentar: Schuldrecht – Allgemeiner Teil I. 8. Auflage. München: C.H. Beck, 2019, v. 2, p. 1.203.
[10] Catarina Monteiro Pires assevera que não se rejeita, em certos casos, um específico dever de colaborar, fundado na natureza da obrigação ou na regra da boa-fé. Dá o exemplo do contrato de empreitada, em que a atividade de colaboração do credor corresponder, na maioria dos casos, a um dever acessório., cuja violação pode ser sancionada em termos de responsabilidade civil (PIRES, Catarina Monteiro. Contratos…, cit., p. 164.)
[11] PEREIRA, Maria de Lurdes. Conceito de prestação e destino da contraprestação…, cit., p. 223, nota 599.
[12] Dernburg defendia não ser o comprador obrigado a aceitar as mercadorias se o interesse do devedor não era previsível no momento em que o contrato foi celebrado (DERNBURG, Heinrich. Pandekten: Obligationenrecht. 4. ed. H.W. Müller, 1894, p. 267).
[13] SCHMIDT-SCHARFF, Wolfgang. Wirkungen des mora accipiendi des Käufers: nach gemeinen und nach Handels-Recht. Frankfurt: Gebrüder Knauer, 1891, p. 30-31.
[14] “Art. 610, §1 o A obrigação de fornecer os materiais não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
[15] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado…, cit., t. 23, p. 209.
[16] LARENZ, Karl. Lehrbuch des Schuldrechts…, cit., p. 389.
[17] Se o credor apenas pode enjeitar a prestação quando ausente o interesse do credor (parágrafo único do art. 395 do CC), então a resolução apenas seria possível diante de inadimplemento definitivo, e não da mora, em que subsiste a utilidade da prestação ao credor (Martins-Costa, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 673; Steiner, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 349; Nanni, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 401; Assis, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, pp. 100-101; Aguiar Jr., Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). Rio de Janeiro: Aide, 1991, pp. 95 e 100; Zanetti, Cristiano de Sousa. A transformação da mora em inadimplemento absoluto. In: Revista dos Tribunais online. v. 942, abr/2014, p. 128).
[18] Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3ª. t. XXIII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 185.
[19] Cunha de Sá, Fernando Augusto. Direito ao cumprimento e direito a cumprir. Coimbra: Almedina, 1997, p. 101.
[20] MACHADO, João Baptista Machado. Risco contratual e mora do credor: risco da perda do valor-utilidade ou do rendimento da prestação e de desperdício da capacidade de prestar vinculada. In: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Ferrer-Correia, p. 71-151, 1989, p. 140.
[21] MENEZES CORDEIRO, António. A mora do credor…, cit., p. 40.
[22] Francisco Medina indica que a mora do credor possibilita, como um de seus efeitos, a resolução do contrato pelo devedor, por aplicação do art. 475 do CC/02, no caso de o credor ter de fato o dever de receber a coisa ou de praticar os atos indispensáveis (MEDINA, Francisco Sabadin. Efeitos da mora do credor no Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Arraes, 2022, p. 120).
[23] Por se tratar, em regra, de mero “ônus” (“Obligenheit”) do credor, como acima analisado.
[24] No direito português, Pedro Romano Martinez entende ser possível a resolução, desde que a mora do credor seja culposa e se o comportamento do credor for suficientemente grave, de modo a afetar o sinalagma contratual (MARTINEZ, Pedro Romano. Da cessação do contrato. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 134). Em sentido contrário, defendendo que a resolução em caso de mora do credor só é admissível em casos excepcionais previstos por lei, cf. FARIA, Rita Lynce de. A mora do credor. Lisboa: Lex, 2000, p. 48.
[25] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 6, t. 2, p. 615.
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